“Paris Sempre” – por António
Valdemar, in Caderno E, revista do Expresso
A França constituiu o paradigma cultural de várias gerações de
artistas, escritores, cientistas e políticos portugueses. Muitos jovens, na
primeira e segunda década do século XX, dirigiram-se para Paris. Uns, formados
nas Escolas de Belas-Artes de Lisboa e do Porto e a usufruir de bolsas de
estudo; outros, a beneficiar da generosidade de mecenas; outros, a receber mesadas
das famílias; outros, ainda, à sua própria custa. Foi este o caso de Almada
Negreiros, durante pouco mais de um ano. Repleto de contrariedades incidentes.
Antes, porém, da viagem que lhe permitiu um contacto direto com
artistas, galerias e a realidade quotidiana de Paris e outras cidades, José de
Almada Negreiros já se considerava fruto da irradiação da cultura francesa. A
16 de novembro de 1917, em “A Engomadeira”, uma das mais prodigiosas ficções da
língua portuguesa, Almada Negreiros afirmou, ao concluir a dedicatória a José
Pacheko, numa carta prefácio:
“Escuso de repetir-me neste assunto que o nosso Mário de
Sá-Carneiro sabia tão justamente classificar:
— Nós três somos de Paris!
E somos. Temos esta elegância, esta devoção, este farol da Fé”.
A correspondência de Mário de Sá-Carneiro para Fernando Pessoa
refere, em 1914, em 1915 e em 1916, projetos de viagens de Almada a Paris.
Queria viver por dentro a viragem introduzida no desenho, na pintura, na escultura,
na literatura, no teatro, na dança, no bailado e outras áreas, não apenas por franceses
mas personalidades originárias de países diferentes, tais como Picasso,
Brancusi, Modigliani, Chagall, Apollinaire ou Blaise Cendrars.
Numa carta a Pessoa, Sá-Carneiro, conhecedor da energia revolucionária
de Almada, manifestava o desejo de o ter, a seu lado, em Paris. Estava bastante
só. (Cinquenta anos depois, Almada definiu esse isolamento e angústia, num
desenho, que também viria a inspirar Lagoa Henriques no monumento a Pessoa no Chiado...).
Sá-Carneiro sentava-se horas e horas no café, a ver passar as horas. Emergia o
tédio e o mal-estar. Despertava obsessões que o conduziram, dia após dia, ao
suicídio.
“Seria muito agradável” — escreveu Sá-Carneiro — “ver aqui Almada,
quanto mais não fosse para fazer escândalo nos cafés”. A virulência torrencial
de “A Cena do Ódio” de Almada destinada ao “Orpheu 3” invadiu e empolgou
Sá-Carneiro que não hesitou em reconhecê-la como “soberba”. Pessoa já
classificara Almada de “homem de génio. Ele é mais novo do que os outros, não
só em idade como também em espontaneidade e efervescência. Possui uma
personalidade muito distinta — para admirar é que a tivesse adquirido tão
cedo”.
DELAUNAYS E BAILADOS RUSSOS
Desde junho de 1915 a janeiro de 1917, instalaram-se em Portugal
Sonia e Robert Delaunay, a fugirem à guerra. Também o pintor russo Daniel
Rossiné e o pintor americano Samuel Halpert. A eles se juntaram Amadeo de
Souza-Cardoso, Eduardo Viana, Pacheko e Almada. Pretenderam formar a Corporation
Nouvelle, incluindo Apollinaire e Blaise Cendrars, para “expositions mouvantes”
e outras ações culturais. O objetivo não se realizou. No entanto, permitiu um convívio
estimulante em torno das estéticas da vanguarda. Vivendo cá, Almada sabia o que
se passava em Paris. Os textos que inseriu no “Portugal Futurista” refletem o
domínio que já possuía da cultura europeia contemporânea.
Intensificou essa amplitude, na relação pessoal, em Lisboa, com
Serguei Diaguilev e Massine, seu coreógrafo e bailarino, quando a companhia dos
Bailados Russos se deslocou a Portugal, em fins de 1917 e princípios de 1918, no
auge da revolução de Sidónio Pais. A propósito deste acontecimento memorável, Almada
lançou um manifesto com aplausos exuberantes e realizou um conjunto de desenhos
de figuras e cenas dos espetáculos que decorreram no Coliseu dos Recreios e no
Teatro de São Carlos. Foram publicados na revista “Atlântico”. Para “O Século
da Noite”, Jorge Barradas fez, com o seu estilo, outra série de desenhos. Quase
50 anos depois, quer Almada quer Barradas, evocaram-me — ainda fascinados — o
impacto dos Bailados Russos na arte e na literatura portuguesas.
Estes dois acontecimentos, o contacto com os Delaunays e a vinda
dos Bailados Russos a Portugal, trouxeram a Almada o universo de Paris.
CONCRETIZAÇÃO DO DESEJO
A concretização do desejo de ir a Paris só ocorrerá de janeiro
de 1919 até abril de 1920. Recusou-se, então, a procurar o pai, o jornalista
António Lobo de Almada Negreiros, que se radicara, definitivamente, em 1900, em
França para organizar o Pavilhão das Colónias Portuguesas, na Exposição
Universal de Paris. Depois ficou como correspondente de “O Século”. Falecera a
mulher, em 1896, com 24 anos, em São Tomé, quando esperava um terceiro filho.
Casou-se com uma francesa. Almada e um irmão mais novo foram internados dez
anos no Colégio de Campolide dos Jesuítas. Concluídos os estudos secundários, ficou
entregue ao seu destino. Visitava, de vez em quando, os avós e tios maternos
que moravam, em Lisboa, na Rua Castilho e tinham casa em Cascais. Pai e filho,
após longa ausência, só se viram e falaram uma única vez, em Sevilha. Almada
ganhara o 1º Prémio do cartaz da representação portuguesa naquela exposição. O
pai estava como jornalista. “Havia muita gente à volta. Limitaram-se a muito
poucas palavras” — contou-me Jorge Barradas — “alta tensão recíproca”.
Almada enfrentou inúmeras dificuldades, apesar dos amigos
disponíveis para o ajudar nos momentos maus e no acolhimento quotidiano. “Os
amigos pela vida fora” — disse-me — “valem mais do que uma universidade”. Sem
meios de fortuna, vivendo de ilustrações em jornais, da realização de cartazes e
outras situações precárias, habituou-se, muitos anos, à dura experiência dos
quartos de aluguer.
HOMEM CRISTO FILHO
Ao permanecer em França, em Paris, Biarritz e outras cidades,
Almada trabalhou como bailarino de salão e empregado de armazém. Teve, contudo,
apoios de Francisco Homem Cristo (1892-1928), o admirado e detestado
jornalista, filho de Homem Cristo, o implacável panfletário que tanto era
contra a monarquia e a República, e bisavô de Guy-Manuel de Homem-Christo, do duo
de música eletrónica francês Daft Punk.
Em Paris e em Lisboa, Homem Cristo Filho desenvolveu intensa
conspiração monárquica. Esteve ligado ao jornal “Autorité”, dos irmãos
Cassagnac, porta-voz da extrema-direita, numa França ainda eletrizada pelo caso
Dreyfus. Escrevia artigos de combate, ora com o seu nome, com as iniciais HCF, ora
com os pseudónimos Alithinos e Libertador. Assumirá protagonismo político no consulado
de Sidónio Pais. Pertencerá, em Itália, ao círculo íntimo de Mussolini e
contribuiu para a construção do fascismo, com o livro “Mussolini Bâtisseur
d’Avenir” que obteve projeção internacional. Ao falecer, a caminho de Roma, num
desastre de automóvel, Mussolini ordenou honras fúnebres a Homem Cristo Filho
(in Miguel Castelo Branco, “Homem Cristo Filho — Do Anarquismo ao Fascismo”,
edição Nova Arrancada, 2001).
Homem Cristo Filho privou com artistas e intelectuais que
participaram na aventura do modernismo. Almada trabalhou na revista “Ideia
Nacional”, da qual Homem Cristo Filho era diretor. Era uma publicação monárquica
e bissemanal. O primeiro número tem a data de 18 de março de 1915. Foi
suspensa, pouco depois, devido à grave crise política que depôs a ditadura de
Pimenta de Castro. Reaparecerá a 4 de abril de 1916 e vai prosseguir até 15 de
junho de 1916. A orientação artística é de José Pacheko, autor da capa do
“Orpheu 1”.
A GRANDE AFRONTA
Almada já se comprometera como diretor artístico do “Papagaio
Real”, revista satírica, ilustrada por modernistas, em oposição frontal não só
à estética de Bordalo e seus epígonos, mas fundamentalmente à República e aos
republicanos, aos chefes dos três partidos — António José de Almeida, Partido
Evolucionista; Brito Camacho, Partido Unionista; e, sobretudo, Afonso Costa,
Partido Democrático. Também já ilustrara “Republicaníadas”, um verrinoso
panfleto monárquico, em verso, subscrito por Marco António, pseudónimo de António
Correia Pinto de Almeida.
Se a presença de Almada no primeiro número do “Orpheu” não provocou
a controvérsia suscitada por Fernando Pessoa/Álvaro de Campos e Mário de Sá-Carneiro,
uma das colaborações de Almada para a “Ideia Nacional” desencadeou forte
polémica nos sectores religiosos e políticos. Foi quando desenhou a capa da
edição de 20 de abril de 1916 — “Semana Sancta”, ao representar, no auge das
celebrações da Quaresma, um Cristo verde, esquálido, sem rosto. E sem lágrimas.
Acossado por católicos e monárquicos, a reagirem à blasfémia onde
menos esperavam, numa revista que subsidiavam para combater uma República jacobina
e ateia que atacava a Igreja, desterrava o cardeal-patriarca e outros bispos,
agredia padres, boicotando atos de culto, Homem Cristo Filho resolveu intervir
no debate. Procurou separar-se dos modernistas. Apontou-os como “novos arautos
da Anarquia”, “iconoclastas impenitentes sem Fé nem Pátria”.
Perante estas acusações, José Pacheko, em carta para o pintor
Eduardo Viana, classificou-as como “tudo quanto há de mais intransigente sobre
a arte moderna”; e Almada Negreiros, em carta a Sonia Delaunay disse, muito
indignado, que se afastava da Ideia Nacional”. Acentuou, perentoriamente: “Je
suis sorti de cette chose ignoble”. Saí desta coisa ignóbil.
Contudo, a relação de Almada Negreiros e Homem Cristo Filho
caracterizou-se por distanciamentos e aproximações. Ao ir para França, em 1919,
voltou a ligar-se a Homem Cristo Filho. Tanto mais que ele tivera com o pai de
Almada um conflito de grande repercussão e que terminou num duelo. “Almada
(pai) assestou um golpe, ferindo-o no antebraço e no cotovelo”. O embaixador
João Chagas exigiu a expulsão de Homem Cristo. A imprensa francesa impediu (in Miguel
Castelo Branco, idem).
RELAÇÃO ATRIBULADA
José de Almada Negreiros convergia em muitas opções ideológicas
com Homem Cristo Filho. Ambos coincidiam na exautoração da maçonaria e dos
judeus por serem “forças do cosmopolitismo apátrida, contra os fundamentos da civilização
cristã e ocidental, que teria nas pátrias, na religião católica e na família
tradicional os seus alicerces mais sólidos”. Ambos dividiam Portugal entre os
‘homens dignos’ e os ‘bandidos’. Este critério derivava, aliás, de Homem Cristo
Pai que rotulava,por exemplo, António José de Almeida de “pulha de bem” (in Miguel
Castelo Branco, ibidem).
Provocador incorrigível, com um sentido inveterado do risco e da
aventura, Homem Cristo Filho fazia vida faustosa. Morava na Rue Royalle.
Sá-Carneiro, numa carta a Pessoa pormenorizou: “Vive em casa atapetada, com
telefone, chaufage central e cigarros de luxo. (...) Ergue-se na verdade em
Europa, essa figura do Homem Cristo Filho, nascido em Aveiro!”. Tinha um salão
que recebia com aparato personalidades políticas e literárias de nomeada. Uma
delas, o escritor Maurice Barrès, nacionalista integral. Este ambiente confortável,
opulento, sensual, gastronomia requintada, vinhos e champanhes dos melhores,
mulheres sedutoras e a imaginação magnética do anfitrião, cativaram Almada Negreiros.
Declarou-se rendido: “As circunstâncias fizeram-me o maior amigo do Homem Cristo
Filho” (in “Escritor nº 2”, APE, 1993).
Deixou-se envolver e agarrar nos projetos e guerrilhas de Homem
Cristo Filho, conforme se verifica em duas cartas, de 13 e 15 de setembro de
1916, enviadas ao poeta e advogado Acácio Leitão a solicitar-lhe, e com a
máxima urgência, seis mil francos. O empréstimo destinava-se a encerrar um
negócio de Homem Cristo Filho e José de Almada Negreiros e que implicava, na
outra parte, o advogado e professor universitário Martinho Nobre de Melo
(1891-1985) e o banqueiro José Espírito Santo (1895-1968), gerente em Paris e filho
do fundador do clã Espírito Santo, e que também dava “apoio moral”. (in
“Escritor”, idem)
O ARRASO A MARTINHO
Martinho Nobre de Melo (diretor do “Diário Popular” de 1958 até
27 de abril de 1974), natural de Cabo Verde, era, na época, o mais jovem
catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa. Tinha sido, aos 26 anos, ministro
da Justiça, no consulado de Sidónio Pais. Almada e Martinho conheciam-se desde
a revista “Sátira”, antecâmara dos Salões dos Humoristas, efetuados, em 1912 e
1913, no Grémio Literário. Martinho andara na roda do “Orpheu”. Fora colega de
liceu de Alfredo Guisado e depois seu professor na Faculdade de Direito.
Publicara o livro “Ritmos do Amor e do Silêncio” (que Vitorino Nemésio enalteceu
no “Jornal do Observador”). Colaborara na “Exílio”, com Pessoa, Alfredo Guisado,
Cortes Rodrigues e António Ferro, uma revista, como a “Centauro”, entre o
“Orpheu” e o “Portugal Futurista”.
Também se encontrava associado aos primórdios da dança e bailado
em Portugal, promovidos por Helena Castelo Melhor e ativa participação de Almada
Negreiros. O bailado “Princesa de Sapatos de Ferro”, representado em 1918, no
Teatro de São Carlos, baseava-se num poema de Martinho Nobre de Melo. Tinha
música de Rui Coelho e cenários de José Pacheko. O próprio Almada realizara os
figurinos, a coreografia e dançava com os outros intérpretes.
Apesar de todos os vínculos literários, estéticos, geracionais e
até políticos e ideológicos, a insólita operação financeira concebida por Homem
Cristo Filho, que enredou Almada, também lhe incutiu um ódio de estimação a Martinho
Nobre de Melo. Até ao fim da vida. Nas cartas a Acácio Leitão, mostra-se
revoltado por deparar em Paris “surpresas que um raciocínio puro como o meu não
pode prever. É o facto de que em Paris, também havia portugueses, mas portugueses,
d’aqueles portugueses que não me perdoarão nunca que eu os não admire (eles que
nada têm para que eu admire). Um d’estes portugueses, o meu maior inimigo, chama-se
Martinho Nobre de Mello”. (in “Escritor” ibidem)
Promete, então, uma desforra e envia, para sair nos jornais, um
manifesto a desancar Martinho Nobre de Melo. É um ataque cruel. Pessoal.
Intelectual. Considera Martinho Nobre de Melo “pulha” e “safado”. Almada,
nascido em São Tomé, na Roça Saudade, e cuja mãe Elvira Freire Sobral era filha
de uma angolana negra, não se coíbe de reduzir Martinho Nobre de Melo, a um
“desclassificado” e a rebaixá-lo por ser “cor de café com leite”; a desprezá-lo
por ser importador do batuque mulato, a morna de Cabo Verde. Insiste: como se
poderá chamar “Nobre”? Mais ainda: “verdadeira demonstração da nossa
competência intelectual d’ além-mar”. (in “Escritor” ibidem)
O manifesto que tencionava “publicar brevemente”, intitulava-se
‘PA-TA-POOM’. Presumo ser o último manifesto de Almada após o outro arraso
impetuoso do “Manifesto Anti-Dantas”. Esta versão manuscrita, na posse da escritora
Leonoreta Leitão, filha de Acácio Leitão — autora do recente livro de memórias “Era
Uma Vez Uma Boina” — foi por ela entregue, em 1993, e para publicação na
revista “Escritor”, da Associação Portuguesa de Escritores.
Todavia, o semanário “O Domingo Ilustrado”, divulgará outra versão,
sem especificar o nome de Martinho Nobre de Melo: “Uma Novela da Minha Vida
PA-TA-POOM — Recordação de Paris — Capítulo III por Almada Negreiros”. Leitão de
Barros, diretor do semanário, inseriu a seguinte nota: “Almada, o maior nome da
arte modernista, dá-nos hoje uma novela na sua forma originalíssima. O público tem
ali de saborear um estilo pessoal e uma prosa cujo bas-fonds é sempre valioso e
tem qualquer coisa de subtil e filosófico. ‘O Domingo’, fiel ao seu programa, vai
renovar-se de dia para dia.”
A edição de “O Domingo Ilustrado” é de 8 de agosto, de 1926. A
28 de maio fora implantada a Ditadura Militar, chefiada pelo general Gomes da
Costa. Martinho Nobre de Melo (antigo ministro na ditadura de Sidónio), tinha
35 anos incompletos e fez parte do governo, como ministro dos Negócios
Estrangeiros. Salazar também fora convidado mas só entrará em 1928. Para durar
até 27 de setembro de 1968.
SEMPRE PARIS
Regressou Almada Negreiros de Paris, a 7 de abril de 1920. No
dia em que completava 27 anos. Só voltará, numa rápida passagem, em 1950, mas
continuou a ter Paris dentro de si. Porventura, sem a exacerbação carnal e
possessiva do seu amigo Mário de Sá-Carneiro: “Paris da minha ternura/(...)
Minha cidade com rosto,/ minha fruta mal madura.../ Mancenilha e bem-me-quer./
Paris — meu lobo e amigo — /quisera dormir contigo,/ ser todo a tua mulher”.
Almada, em certos dias da semana, depois do almoço, na sua casa
de família, no Rato, antes de se refugiar no ateliê ia, a pé, em direção ao
Rossio. Acompanhei-o, muitas vezes. Em especial, entre janeiro e junho de 1960,
quando me concedeu as entrevistas para o “Diário de Notícias”, recuperadas no
recente livro “Almada, os Painéis, a Geometria e Tudo” (edições Assírio &
Alvim). Entrava na tabacaria Mónaco para comprar jornais e revistas franceses.
Seguia-se um café, de saco, tomado ao balcão, na Casa Chinesa, no início da Rua
do Ouro. Via logo os títulos. Começava pelo “Paris-Match”. Uma das suas
leituras obrigatórias. Lembro-me, de olhar e exclamar: “Horrível este acidente
de automóvel que matou Albert Camus. Repare nesta fotografia trágica...”.
Noutra ocasião, no mesmo local, folheando vagarosamente o “Paris-Match”,
exclamava: “Morreu Georges Braque. Merece honras nacionais. Não pode ficar
eclipsado por Picasso”. (Pouco depois, no Louvre, prestaram-lhe a homenagem
devida. André Malraux, ministro da Cultura, proferiu um discurso histórico). E
Almada prosseguia: “Penso muito em Braque...” E repetia a diretriz enunciada
por Braque: “‘J’aime la règle qui corrige l’emotion. J’aime l’emotion qui
corrige la règle’. Penso nisto todos os dias. Talvez várias vezes por dia.
Diante de Nuno Gonçalves, da obra-prima da pintura primitiva portuguesa”.
Estas e outras circunstâncias, demonstram o interesse e o
conhecimento de Almada a propósito do que se passava em Paris. Recolhia
informação nas revistas, nos jornais, nos livros, nos catálogos que lhe
ofereciam ou comprava. Via com atenção os principais filmes. Assistia aos espetáculos
de teatro de companhias francesas que vinham a Lisboa. Escutava, com atenção
crítica, notícias que ouvia de amigos que chegavam de Paris: Vieira da Silva,
Júlio Pomar, Merícia de Lemos, Manuel Cargaleiro. Tudo isto conjugava e recriava
a imaginação transfiguradora em contínuo estado de alerta. Assim conseguia
Almada Negreiros sentir e estar em Paris, residindo em Portugal
Paris Sempre –
por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências], revista
E, Expresso, 4 de Fevereiro de 2017, pp. 33/35 – com sublinhados
nossos.
J.M.M.
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