“Academia e Instituições de Cultura”
– por Diogo Ramada Curto, in Caderno E, Expresso, 17 de Fevereiro de 2018
Onde se defende que se no projeto de levar a cabo um estudo
sobre academias o objetivo é propor a renovação de uma espécie de conformismo
institucional, o melhor seria sugerir que o público não soubesse nada do que se
passa dentro de tais instituições
"Instituições de cultura há que não têm merecido a devida atenção
por parte da opinião pública. Faltam estudos ou simples notícias que as deem a conhecer.
Será, por ora, escusado saber a quem assacar responsabilidades para explicar a falta
de estudos sobre as mesmas: se às instituições que não informam, por viverem em
vaso fechado, ou se a uma opinião pública que vive dissociada da vida de certas
instituições.
Três situações aparentemente díspares, em termos de conhecimento
por parte de um público mais alargado, podem ser utilizadas como laboratórios
de estudo: um livro destinado a repensar a universidade em Portugal; os
estatutos de uma academia criada em 1965, mas que sobreviveu até aos nossos
dias; e um ‘pequeno’ instituto de investigação
de uma universidade privada, fundado em 1997. Nos três casos, detetam-se
disfuncionalidades e demonstrações de elitismo simbólico, que nada têm que ver
com a investigação, o ensino e a transmissão do conhecimento e da cultura.
Estudá-los e comunicá-los a uma esfera de opinião mais alargada constitui, só
por si, um modo de ultrapassar os problemas encontrados.
A Universidade como deve ser
O recente livro de António Feijó e Miguel Tamen, intitulado “A
Universidade Como Deve Ser” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2017), é um excelente
contributo para conhecermos o que se passa dentro da universidade. Nele, será
possível distinguir um estudo da universidade tal como funciona e o programa de
um curso, interdisciplinar, de Estudos Gerais. O livro comporta tanto aspetos
corajosos como outros que se afiguram discutíveis.
A sua coragem está em pôr o dedo na ferida, considerando que o ensino
universitário não tem de andar subordinado a objetivos práticos ou a meros
interesses de mercado. O ensino universitário, feito no contacto com a
investigação, tem de se pautar por outros critérios e manter, sempre, um elevado
nível de independência em relação a outros poderes. As universidades devem
igualmente ser pensadas como unidades, situadas acima deste ou daquele curso
(embora este propósito dos autores entre, depois, em contradição com o
centramento num único curso). Corajosa é também a crítica dos autores em relação
à burocratização da investigação e dos seus centros, bem como à generalização
dos projetos coletivos com dotações gigantescas, os quais poucos resultados
alcançam, sobretudo na áreas de humanidades e ciências sociais.
Muito discutíveis são os sinais de uma espécie de elitismo
anglo-americano, num momento em que abundam as tendências dentro da universidade
de desprezo pelas práticas democráticas. De igual modo, é chocante que a
proposta de introdução de um modelo inspirado nos “liberal arts colleges” surja
numa espécie de deserto criado pelos próprios autores. Isto é, em nenhum
momento do livro se encontram referências às inúmeras discussões sobre a universidade
que, pelo menos desde Miller Guerra, têm
sido recorrentes em Portugal. Ao circunscreverem-se a um único curso, Feijó e
Tamen assemelham-se a náufragos numa ilha deserta, que, tal como Robinson
Crusoe, só conseguem salvar do navio encalhado alguns livros (não em português,
como no livro de Daniel Defoe, língua que o protagonista não sabia decifrar,
mas em inglês, o idioma em que mergulham as raízes mais profundas do livro em
causa). Facto que denota uma incapacidade para pensar de modo mais realista — e
menos como uma robinsonada — a universidade como um todo.
A expansão da cultura portuguesa
De um teor completamente diferente são as notas esparsas que
recolhi acerca da Academia Internacional de Cultura Portuguesa. Elas constituem
um minúsculo contributo para colmatar a lacuna dos estudos sobre instituições
de cultura. Pelo menos podem servir como chamada de atenção para a necessidade
de querer saber mais acerca do que se passa na vida de tal instituição. A começar
pelo seu financiamento, que não sabemos se será ou não de natureza pública. Os
seus estatutos, aprovados por decreto de 1965, mantêm-se em vigor. O primeiro
aspeto que neles importa sublinhar diz respeito ao principal objetivo da mesma
instituição: difundir a cultura portuguesa no mundo. A consulta do “Boletim da
Academia Internacional de Cultura Portuguesa”, cuja publicação começou em 1966,
revela bem qual a conceção de cultura que ali se defende: do luso-tropicalismo,
em tempos coloniais, à sua continuidade, sob a forma de lusofonia, adaptada aos
tempos democráticos. Vinho novo em odres velhos...
O segundo aspeto prende-se com as áreas pelas quais se distribui
esse mesmo labor difusionista. De um modo que, hoje, interpretaríamos como
sendo da ordem da interdisciplinaridade, estabeleceram-se três secções: das
artes e letras, das ciências e da missionologia. Aliás, esta última formulação,
sobre a qual tanta tinta correu na década de 1960, entendida em estreita
relação com a mensagem católica, compreende-se bem à luz da política colonial
portuguesa da época.
Do Tarrafal à Academia Internacional
O terceiro aspeto a não perder de vista diz respeito aos
fundadores da Academia e como são postos limites ao número dos sócios académicos
ou correspondentes. Inegável será, em todo este processo, o papel dinâmico
desempenhado por Adriano Moreira, seu fundador e presidente, ao lado do padre
Silva Rego, de Jorge Dias e de Virgínia Rau. Estes últimos professores universitários
com capacidade para controlar as suas áreas disciplinares, da antropologia à
história. A simples evocação de outros nomes da confiança do regime de Salazar,
entre os quais se contavam Azeredo Perdigão e Franco Nogueira, faz-nos lembrar
que não existe apenas uma lista de nomes que formam o que, hoje, os cientistas
sociais designam como uma rede de relações. Há, também, uma rede de outras
instituições a ter em conta.
Por exemplo, Adriano Moreira, licenciado em Direito pela
Universidade de Lisboa, iniciou a sua carreira na antiga Escola Colonial, onde
começou por realizar estudos sobre o sistema prisional nas antigas colónias.
Seguiu o processo de transformação daquela Escola impulsionado por Mendes Correia
e, em 1961, favoreceu a sua integração na Universidade Técnica, o que lhe valeu
a equivalência a professor catedrático, mesmo sem possuir um doutoramento (com o
“Diário de Notícias” de Augusto de Castro a atribuir-lhe o título de professor
doutor a partir de 14 de abril). Desempenhou papel de relevo na Junta de
Investigações do Ultramar e envolveu-se, igualmente, nas atividades da Sociedade
de Geografia de Lisboa (onde a mesma Academia Internacional veio a ficar
sediada). Enquanto subsecretário de Estado e depois ministro do Ultramar, na
altura do início da Guerra em Angola, manteve ligações de estreita colaboração
com muitas outras instituições, incluindo o Gabinete de Negócios Políticos do
Ministério do Ultramar e o por ele criado “campo de trabalho” de Chão Bom, vulgo,
Tarrafal.
Conforme procurei demonstrar noutro local, Adriano Moreira
esteve, por volta de 1961, bem no centro do processo de tomada de decisões das
políticas coloniais de Salazar. A legislação laboral promulgada durante a sua
passagem pelo Ministério do Ultramar constituiu, sobretudo, “uma carapaça legal
com que Portugal pudesse defender-se” internacionalmente (José Capela, “O
imposto de palhota...”, Afrontamento, 1977, p. 259). E, por mais que ele
próprio tivesse tentado construir a sua própria versão dessa passagem pelo
Governo de Salazar, em sucessivas memórias, aconselhou, na altura, a adoção de
medidas violentas de aterrorização das populações do Norte de Angola
(“Políticas Coloniais em Tempo de Revoltas — Angola circa 1961”, Afrontamento, 2016). Ora a Academia Internacional de
Cultura Portuguesa foi criada no interior dessa malha. Nela, sobrepuseram-se
uma carreira individual, uma série de instituições e de legislação orientadas
para a execução de políticas coloniais e, ainda, um quadro de justificação de
fortíssima carga ideológica suscitado pela guerra colonial em Angola, e depois
na Guiné e em Moçambique (que de nenhum modo pode ser reduzido a noções de
integração ou assimilação luso-tropical).
Questões de indumentária
Há um quarto aspeto que inclui várias minudências acerca do
vestuário, difíceis de traduzir por outras palavras. Vale, por isso, a pena
citar diretamente da fonte que seguimos, no ponto relativo às vestes
académicas, mesmo que infelizmente se tenha perdido o rasto ao desenho: “A
farda académica constará de casaca de gola alta, fechada por uma ordem de botões,
e de calça, aquela e esta, de pano verde. A casaca terá, bordado a ouro, no
peito, gola e portinholas, canhões e remates, assim como na cintura, por cima
do começo das abas, um rebordo, que no peito será acompanhado de uma simples
fieira de ramos de oliveira folhados e frutados, segundo os desenhos anexos. A
calça terá galão estreito, dourado, nas costuras laterais. O chapéu armado, de
pasta, será orlado superiormente de plumas pretas e com presilhas das cores
académicas verde e encarnado. O espadim, de copos e guarnições douradas,
suspende-se de pala de pano verde, com ramos de oliveira, bordados a ouro. Os
botões serão ornados com as armas nacionais. A capa será de pano preto com gola
voltada”.
Para comparar padrões de dress code, sigo as diferentes maneiras
de trajar no quotidiano ou em dias de festa, dentro e fora das instalações ou,
no interior destas, em salas diversas ou entre membros e visitantes da
instituição em causa. De notar, também, que se trata de um resquício para
cobrir com sinais de nobreza, inventando tradições e exibindo um elitismo de
pacotilha, certas instituições de criação recente. É aqui que vem a propósito
referir as normas que regem o Instituto de Estudos Políticos (IEP) da
Universidade Católica, criado em 1997, mais de três décadas depois da citada
Academia Internacional, mas inspirado na putativa Escola de Sagres, que nos
traz à memória o chapéu de aba larga do Infante D. Henrique:
“Todos os colaboradores permanentes do IEP adotam um código de
vestuário com a decência e formalidade adequadas às responsabilidades que
detêm, o que inclui, para os homens, casaco e gravata, e, para as senhoras,
decência correspondente. Na sala Sir Winston Churchill e nos gabinetes de
trabalho é esperado que os homens possam tirar o casaco, mas não a gravata. Na
sala D. Henrique é esperado o uso de casaco e gravata. Em todo o espaço do IEP,
não é autorizado o uso de shorts, T-shirts ou chinelos, sapatos de ténis ou
blue-jeans. Estas regras aplicam-se apenas aos colaboradores permanentes do IEP
e não aos alunos ou a visitantes, cuja eventual vulgaridade não deve, em princípio,
merecer reparo. Em contrapartida, trajes nacionais, regionais, locais ou
específicos de instituições, por mais excêntricos, serão sempre respeitados e
bem-vindos. Todos os docentes do IEP, incluindo docentes convidados, são
enfaticamente encorajados a usar casaco e gravata nas suas aulas e tutorias,
podendo tirar o casaco, mas não a gravata”...
Conformismo institucional ou Gentlemanship
O estudo monográfico de instituições como a Academia
Internacional de Cultura Portuguesa terá ainda de compreender um quinto e
último aspeto. Trata-se de tentar compreender como é que instituições criadas
durante o Estado Novo, mais a mais num contexto aberto de guerra colonial,
promoveram formas de conformismo de sentido institucional. Senão, vejamos como
é que os estatutos impõem formas de controlo e de censura: é “proibido aos académicos
contrariar os fins do instituto; imprimir trabalhos fora das publicações
académicas com indicação de provirem da Academia; e criticar trabalhos feitos
por encargo da mesma ou a ela apresentados por outros académicos, a não ser nas
suas sessões ordinárias”.
Que esse conformismo institucional se intensificou na década de
1960, para dar sentido à atuação das elites cooptadas pelo regime de Salazar,
num quadro internacional de forte pressão sobre a política colonial portuguesa,
parece um dado evidente. O que já não me parece ser possível de aceitar é que
as mesmas regras possam subsistir em democracia. Mesmo aceitando que, na vida
das instituições, existem arcaísmos, o seu ridículo cresce na medida em que se
descobre que eles são invenção recente e, em geral, determinados por quem não
tem terra, família, nem vontade para viver numa sociedade democrática. Aliás,
os que procuram transformar essas mesmas instituições culturais em veículos da
sua promoção são quase sempre os mesmos que têm vergonha de reconhecer o mérito
individual. É o que sucede com o curioso ponto sobre “Gentlemanship”, de uma
fedúncia insuportável, digna de um qualquer parvenu, e que suscita uma
gargalhada digna de uma personagem de Gil Vicente:
“Nenhuma regra pode substituir o sentido de responsabilidade
pessoal, o common sense e o sentido de
humor de cada pessoa. As regras acima expostas deverão ser aplicadas sem
rigidez prussiana e sem laxismo mediterrânico. Portugal é um país atlântico (e
não mediterrânico), fundador da mais velha aliança do mundo, bem como do mais
velho tratado de comércio livre, e pioneiro dos Descobrimentos. No nosso
pequeno IEP da UCP, apreciamos tentar cumprir o dever de honrar as nossas
nobres tradições” (Instituto de Estudos Políticos, nº 24).
Enfim, no projeto de levar a cabo um estudo sobre academias,
‘pequenas’ instituições de cultura e
universidades, se o nosso principal objetivo fosse propor a renovação de uma
espécie de conformismo institucional, o melhor seria sugerir que o público não
soubesse mesmo nada do que se passa dentro de tais instituições. Às urtigas,
pois, com a mania da informação e com a famigerada opinião pública! O
secretismo impõe-se como uma urgência... É que permanecer na ignorância ou dar
ao desprezo qualquer tipo de estudo sobre o funcionamento de tais instituições
talvez seja, em suma, a única maneira de uma opinião pública escapar a tamanhas
aberrações.
Academias e Instituições de Cultura – por Diogo Ramada Curto, [Historiador
e professor da Universidade Nova], revista
E, Expresso, 17 de Fevereiro de 2018,
pp. 66/67 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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