domingo, 25 de fevereiro de 2018

ACADEMIAS E INSTITUIÇÕES DE CULTURA



Academia e Instituições de Cultura” – por Diogo Ramada Curto, in Caderno E, Expresso, 17 de Fevereiro de 2018
Onde se defende que se no projeto de levar a cabo um estudo sobre academias o objetivo é propor a renovação de uma espécie de conformismo institucional, o melhor seria sugerir que o público não soubesse nada do que se passa dentro de tais instituições

"Instituições de cultura há que não têm merecido a devida atenção por parte da opinião pública. Faltam estudos ou simples notícias que as deem a conhecer. Será, por ora, escusado saber a quem assacar responsabilidades para explicar a falta de estudos sobre as mesmas: se às instituições que não informam, por viverem em vaso fechado, ou se a uma opinião pública que vive dissociada da vida de certas instituições.
Três situações aparentemente díspares, em termos de conhecimento por parte de um público mais alargado, podem ser utilizadas como laboratórios de estudo: um livro destinado a repensar a universidade em Portugal; os estatutos de uma academia criada em 1965, mas que sobreviveu até aos nossos dias; e um ‘pequeno’  instituto de investigação de uma universidade privada, fundado em 1997. Nos três casos, detetam-se disfuncionalidades e demonstrações de elitismo simbólico, que nada têm que ver com a investigação, o ensino e a transmissão do conhecimento e da cultura. Estudá-los e comunicá-los a uma esfera de opinião mais alargada constitui, só por si, um modo de ultrapassar os problemas encontrados.
A Universidade como deve ser
O recente livro de António Feijó e Miguel Tamen, intitulado “A Universidade Como Deve Ser” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2017), é um excelente contributo para conhecermos o que se passa dentro da universidade. Nele, será possível distinguir um estudo da universidade tal como funciona e o programa de um curso, interdisciplinar, de Estudos Gerais. O livro comporta tanto aspetos corajosos como outros que se afiguram discutíveis.
A sua coragem está em pôr o dedo na ferida, considerando que o ensino universitário não tem de andar subordinado a objetivos práticos ou a meros interesses de mercado. O ensino universitário, feito no contacto com a investigação, tem de se pautar por outros critérios e manter, sempre, um elevado nível de independência em relação a outros poderes. As universidades devem igualmente ser pensadas como unidades, situadas acima deste ou daquele curso (embora este propósito dos autores entre, depois, em contradição com o centramento num único curso). Corajosa é também a crítica dos autores em relação à burocratização da investigação e dos seus centros, bem como à generalização dos projetos coletivos com dotações gigantescas, os quais poucos resultados alcançam, sobretudo na áreas de humanidades e ciências sociais.
Muito discutíveis são os sinais de uma espécie de elitismo anglo-americano, num momento em que abundam as tendências dentro da universidade de desprezo pelas práticas democráticas. De igual modo, é chocante que a proposta de introdução de um modelo inspirado nos “liberal arts colleges” surja numa espécie de deserto criado pelos próprios autores. Isto é, em nenhum momento do livro se encontram referências às inúmeras discussões sobre a universidade que, pelo menos desde  Miller Guerra, têm sido recorrentes em Portugal. Ao circunscreverem-se a um único curso, Feijó e Tamen assemelham-se a náufragos numa ilha deserta, que, tal como Robinson Crusoe, só conseguem salvar do navio encalhado alguns livros (não em português, como no livro de Daniel Defoe, língua que o protagonista não sabia decifrar, mas em inglês, o idioma em que mergulham as raízes mais profundas do livro em causa). Facto que denota uma incapacidade para pensar de modo mais realista — e menos como uma robinsonada — a universidade como um todo.
 
 
A expansão da cultura portuguesa
De um teor completamente diferente são as notas esparsas que recolhi acerca da Academia Internacional de Cultura Portuguesa. Elas constituem um minúsculo contributo para colmatar a lacuna dos estudos sobre instituições de cultura. Pelo menos podem servir como chamada de atenção para a necessidade de querer saber mais acerca do que se passa na vida de tal instituição. A começar pelo seu financiamento, que não sabemos se será ou não de natureza pública. Os seus estatutos, aprovados por decreto de 1965, mantêm-se em vigor. O primeiro aspeto que neles importa sublinhar diz respeito ao principal objetivo da mesma instituição: difundir a cultura portuguesa no mundo. A consulta do “Boletim da Academia Internacional de Cultura Portuguesa”, cuja publicação começou em 1966, revela bem qual a conceção de cultura que ali se defende: do luso-tropicalismo, em tempos coloniais, à sua continuidade, sob a forma de lusofonia, adaptada aos tempos democráticos. Vinho novo em odres velhos...
O segundo aspeto prende-se com as áreas pelas quais se distribui esse mesmo labor difusionista. De um modo que, hoje, interpretaríamos como sendo da ordem da interdisciplinaridade, estabeleceram-se três secções: das artes e letras, das ciências e da missionologia. Aliás, esta última formulação, sobre a qual tanta tinta correu na década de 1960, entendida em estreita relação com a mensagem católica, compreende-se bem à luz da política colonial portuguesa da época.
Do Tarrafal à Academia Internacional
O terceiro aspeto a não perder de vista diz respeito aos fundadores da Academia e como são postos limites ao número dos sócios académicos ou correspondentes. Inegável será, em todo este processo, o papel dinâmico desempenhado por Adriano Moreira, seu fundador e presidente, ao lado do padre Silva Rego, de Jorge Dias e de Virgínia Rau. Estes últimos professores universitários com capacidade para controlar as suas áreas disciplinares, da antropologia à história. A simples evocação de outros nomes da confiança do regime de Salazar, entre os quais se contavam Azeredo Perdigão e Franco Nogueira, faz-nos lembrar que não existe apenas uma lista de nomes que formam o que, hoje, os cientistas sociais designam como uma rede de relações. Há, também, uma rede de outras instituições a ter em conta.
Por exemplo, Adriano Moreira, licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, iniciou a sua carreira na antiga Escola Colonial, onde começou por realizar estudos sobre o sistema prisional nas antigas colónias. Seguiu o processo de transformação daquela Escola impulsionado por Mendes Correia e, em 1961, favoreceu a sua integração na Universidade Técnica, o que lhe valeu a equivalência a professor catedrático, mesmo sem possuir um doutoramento (com o “Diário de Notícias” de Augusto de Castro a atribuir-lhe o título de professor doutor a partir de 14 de abril). Desempenhou papel de relevo na Junta de Investigações do Ultramar e envolveu-se, igualmente, nas atividades da Sociedade de Geografia de Lisboa (onde a mesma Academia Internacional veio a ficar sediada). Enquanto subsecretário de Estado e depois ministro do Ultramar, na altura do início da Guerra em Angola, manteve ligações de estreita colaboração com muitas outras instituições, incluindo o Gabinete de Negócios Políticos do Ministério do Ultramar e o por ele criado “campo de trabalho” de Chão Bom, vulgo, Tarrafal.
 
 

Conforme procurei demonstrar noutro local, Adriano Moreira esteve, por volta de 1961, bem no centro do processo de tomada de decisões das políticas coloniais de Salazar. A legislação laboral promulgada durante a sua passagem pelo Ministério do Ultramar constituiu, sobretudo, “uma carapaça legal com que Portugal pudesse defender-se” internacionalmente (José Capela, “O imposto de palhota...”, Afrontamento, 1977, p. 259). E, por mais que ele próprio tivesse tentado construir a sua própria versão dessa passagem pelo Governo de Salazar, em sucessivas memórias, aconselhou, na altura, a adoção de medidas violentas de aterrorização das populações do Norte de Angola (“Políticas Coloniais em Tempo de Revoltas — Angola circa 1961”, Afrontamento, 2016). Ora a Academia Internacional de Cultura Portuguesa foi criada no interior dessa malha. Nela, sobrepuseram-se uma carreira individual, uma série de instituições e de legislação orientadas para a execução de políticas coloniais e, ainda, um quadro de justificação de fortíssima carga ideológica suscitado pela guerra colonial em Angola, e depois na Guiné e em Moçambique (que de nenhum modo pode ser reduzido a noções de integração ou assimilação luso-tropical).
Questões de indumentária
Há um quarto aspeto que inclui várias minudências acerca do vestuário, difíceis de traduzir por outras palavras. Vale, por isso, a pena citar diretamente da fonte que seguimos, no ponto relativo às vestes académicas, mesmo que infelizmente se tenha perdido o rasto ao desenho: “A farda académica constará de casaca de gola alta, fechada por uma ordem de botões, e de calça, aquela e esta, de pano verde. A casaca terá, bordado a ouro, no peito, gola e portinholas, canhões e remates, assim como na cintura, por cima do começo das abas, um rebordo, que no peito será acompanhado de uma simples fieira de ramos de oliveira folhados e frutados, segundo os desenhos anexos. A calça terá galão estreito, dourado, nas costuras laterais. O chapéu armado, de pasta, será orlado superiormente de plumas pretas e com presilhas das cores académicas verde e encarnado. O espadim, de copos e guarnições douradas, suspende-se de pala de pano verde, com ramos de oliveira, bordados a ouro. Os botões serão ornados com as armas nacionais. A capa será de pano preto com gola voltada”.
Para comparar padrões de dress code, sigo as diferentes maneiras de trajar no quotidiano ou em dias de festa, dentro e fora das instalações ou, no interior destas, em salas diversas ou entre membros e visitantes da instituição em causa. De notar, também, que se trata de um resquício para cobrir com sinais de nobreza, inventando tradições e exibindo um elitismo de pacotilha, certas instituições de criação recente. É aqui que vem a propósito referir as normas que regem o Instituto de Estudos Políticos (IEP) da Universidade Católica, criado em 1997, mais de três décadas depois da citada Academia Internacional, mas inspirado na putativa Escola de Sagres, que nos traz à memória o chapéu de aba larga do Infante D. Henrique:
Todos os colaboradores permanentes do IEP adotam um código de vestuário com a decência e formalidade adequadas às responsabilidades que detêm, o que inclui, para os homens, casaco e gravata, e, para as senhoras, decência correspondente. Na sala Sir Winston Churchill e nos gabinetes de trabalho é esperado que os homens possam tirar o casaco, mas não a gravata. Na sala D. Henrique é esperado o uso de casaco e gravata. Em todo o espaço do IEP, não é autorizado o uso de shorts, T-shirts ou chinelos, sapatos de ténis ou blue-jeans. Estas regras aplicam-se apenas aos colaboradores permanentes do IEP e não aos alunos ou a visitantes, cuja eventual vulgaridade não deve, em princípio, merecer reparo. Em contrapartida, trajes nacionais, regionais, locais ou específicos de instituições, por mais excêntricos, serão sempre respeitados e bem-vindos. Todos os docentes do IEP, incluindo docentes convidados, são enfaticamente encorajados a usar casaco e gravata nas suas aulas e tutorias, podendo tirar o casaco, mas não a gravata”...
Conformismo institucional ou Gentlemanship
O estudo monográfico de instituições como a Academia Internacional de Cultura Portuguesa terá ainda de compreender um quinto e último aspeto. Trata-se de tentar compreender como é que instituições criadas durante o Estado Novo, mais a mais num contexto aberto de guerra colonial, promoveram formas de conformismo de sentido institucional. Senão, vejamos como é que os estatutos impõem formas de controlo e de censura: é “proibido aos académicos contrariar os fins do instituto; imprimir trabalhos fora das publicações académicas com indicação de provirem da Academia; e criticar trabalhos feitos por encargo da mesma ou a ela apresentados por outros académicos, a não ser nas suas sessões ordinárias”.
Que esse conformismo institucional se intensificou na década de 1960, para dar sentido à atuação das elites cooptadas pelo regime de Salazar, num quadro internacional de forte pressão sobre a política colonial portuguesa, parece um dado evidente. O que já não me parece ser possível de aceitar é que as mesmas regras possam subsistir em democracia. Mesmo aceitando que, na vida das instituições, existem arcaísmos, o seu ridículo cresce na medida em que se descobre que eles são invenção recente e, em geral, determinados por quem não tem terra, família, nem vontade para viver numa sociedade democrática. Aliás, os que procuram transformar essas mesmas instituições culturais em veículos da sua promoção são quase sempre os mesmos que têm vergonha de reconhecer o mérito individual. É o que sucede com o curioso ponto sobre “Gentlemanship”, de uma fedúncia insuportável, digna de um qualquer parvenu, e que suscita uma gargalhada digna de uma personagem de Gil Vicente:
Nenhuma regra pode substituir o sentido de responsabilidade pessoal, o common  sense e o sentido de humor de cada pessoa. As regras acima expostas deverão ser aplicadas sem rigidez prussiana e sem laxismo mediterrânico. Portugal é um país atlântico (e não mediterrânico), fundador da mais velha aliança do mundo, bem como do mais velho tratado de comércio livre, e pioneiro dos Descobrimentos. No nosso pequeno IEP da UCP, apreciamos tentar cumprir o dever de honrar as nossas nobres tradições” (Instituto de Estudos Políticos, nº 24).
Enfim, no projeto de levar a cabo um estudo sobre academias, ‘pequenas’  instituições de cultura e universidades, se o nosso principal objetivo fosse propor a renovação de uma espécie de conformismo institucional, o melhor seria sugerir que o público não soubesse mesmo nada do que se passa dentro de tais instituições. Às urtigas, pois, com a mania da informação e com a famigerada opinião pública! O secretismo impõe-se como uma urgência... É que permanecer na ignorância ou dar ao desprezo qualquer tipo de estudo sobre o funcionamento de tais instituições talvez seja, em suma, a única maneira de uma opinião pública escapar a tamanhas aberrações.
 
Academias e Instituições de Cultura – por Diogo Ramada Curto, [Historiador e professor da Universidade Nova], revista E, Expresso, 17 de Fevereiro de 2018, pp. 66/67 – com sublinhados nossos.

J.M.M.

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