“O Combate Civilizacional
pelos Livros e pela Leitura” – por José Pacheco Pereira, in Jornal Público, 3 de Março de 2018
O problema é
o mito perigoso de que a “leitura”, mesmo numa forma diferente, está a emigrar
de um meio para outro, porque não está.
“Estas últimas semanas passei pelos restos de um mundo que foi o
meu, mas que está a acabar. A Livraria Leitura no Porto acabou. Era seu
frequentador desde os tempos em que era Divulgação e tinha a loja da esquina da
Rua de Ceuta e a outra que depois foi dos Livros do Brasil e o seu livreiro era
Fernando Fernandes, juntamente com o editor José Carvalho Branco. Não era
difícil perceber, nos últimos anos, a sua agonia para quem, como eu, já viu
muitas livrarias moribundas. O stock começa a não ser renovado, as
estantes têm quase sempre os mesmos livros, as novidades começam a ser sempre
as mesmas de todas as livrarias, até que começam também a desaparecer. Não há
dinheiro para diversificar as encomendas ou as compras e isso na Leitura era
uma ruptura com a prática de Fernando Fernandes de encomendar sempre dois
exemplares dos livros que os professores da Universidade do Porto mandavam vir,
um para eles e outro para a livraria. Deixou há muitos anos de haver a Galeria
de Arte. Pouco a pouco fechou a secção de livros artísticos, desapareceram
muitos livros estrangeiros e sobravam os chamados “monos”, mesmo assim aqueles
em que ainda ia descobrindo livros para comprar. Havia uns restos de filosofia,
alguns livros de história, e para os professores uma boa secção de pedagogia.
As montras pareciam sempre iguais e os esforços dos empregados, e dos clientes
fiéis que ficaram até ao fim, não chegavam para dar vida ao espaço. Quem queria
apresentar novos livros rumava para outros locais menos fúnebres. E, mesmo no
anúncio da sua morte, alguns dos artigos jornalísticos publicados eram tão
estereotipados e pobres, que era fácil perceber que havia uma ruptura da
memória do papel da Leitura no Porto, desde os tempos da resistência, nessa rua
emblemática onde havia tertúlias no Café Ceuta dos oposicionistas do Porto,
onde vários destacados membros da oposição à ditadura viviam ou tinham os seus
escritórios profissionais. Foi na Leitura (e na Divulgação) que vi muitas
exposições, recordo-me de uma de Tapiés, escrevi textos para alguns dos
catálogos, conheci Francisco Sá Carneiro e vi pela única vez Aquilino Ribeiro.
Primeiro, chegou um cabeleireiro ocupando a parte “histórica” da
livraria e ficou apenas a nova parte na Rua José Falcão, para onde antes se
passava por uma espécie de túnel com livros por todo o lado. Nada tenho contra
os cabeleireiros, mas aquele ficou-me atravessado, sem culpa nenhuma. E depois
veio o estrangeirismo na moda “Leitura Books & Living”, depois veio a doença
terminal, e depois veio a Morte.
Nesta mesma semana, fui pela última vez à Pó dos Livros em
Lisboa. Consegui a proeza de entrar, ver com algum tempo tudo o que lá havia e
não conseguir encontrar nada para comprar. Este para mim é sempre o sinal.
Mesmo no mercado dos livros na Estação da Gare do Oriente consigo comprar
dezenas de livros de cada vez, fruto de uma outra realidade do mundo dos
livros: a caótica e paupérrima distribuição, que deixa dezenas de títulos de
pequenas editoras por distribuir e lá, junto dos comboios, estão como “monos”
invendáveis. Comprei, na última vez, livros sobre o PREC, sobre Maria Archer,
sobre a história fabril de Portugal, sobre história cultural da música popular
portuguesa, etc., etc. O mesmo me acontece com os livros dessa empresa que não
é uma editora, mas dá o nome de Chiado aos livros que lhes pagam para publicar.
O que acontece é que há coisas muito más, mas há também alguns ensaios e
estudos muito interessantes. Como de costume não se encontram nas livrarias e
só nestes mercados e na Feira do Livro.
O panorama de muitas livrarias que ainda sobrevivem é igualmente
paupérrimo. O espaço que têm para expor os livros — um aspecto fundamental de
uma livraria — está cheio da mesma tralha de papel pintado que às centenas de
títulos se publicam por mês. Quase não há livros estrangeiros, a não ser as
mesmas traduções de Pessoa e Saramago para os turistas, com o pretexto de que
agora “toda a gente manda vir os livros pela Amazon”. Isto é apenas uma parte
da verdade, mas, de novo, ignora-se o papel dos livros expostos para uma
espécie de “browsing” físico que nada substitui. Quem compra
livros escolhe muitas vezes pela possibilidade de encontrar livros que não
conhecia, ou mesmo quando os conhecia por ter a possibilidade de os folhear.
Por exemplo, a Fnac e outras livrarias colocaram nas estantes a edição original
do livro controverso sobre a Casa Branca de Trump de Michael Wolff. Não tinha a
intenção de o comprar, porque pensava que os extractos publicados me chegavam e
acabei por o fazer perante o livro físico. O desprezo pelo objecto real em
detrimento de um hipotético objecto virtual é cada vez mais acentuado e é
suicidário nos livros e nas livrarias. O mercado pode ser mais pequeno, mas é
certamente constituído por gente com mais recursos.
E
depois há um lado negro pouco conhecido que passa pela manipulação dos “tops”,
pelas relações preferenciais entre editores e jornalistas da área da cultura da
televisão, rádio e jornais, que promovem apenas alguns livros e alguns autores,
há o amiguismo de grupos intelectuais ou das cortes de A e B e C que se
autopromovem mutuamente, colocando-se na moda, ou estando presentes nos sítios
certos e nos momentos certos, há muitas formas de pequena corrupção nos meios
culturais que a ideia da intangibilidade de tudo o que é da cultura impede de
ser escrutinado como devia.
Que
algumas livrarias estão a morrer é verdade, mas não são todas as livrarias, que
o mercado caminha para haver ou grandes livrarias como a Fnac ou livrarias de
culto como a Letra Livre é verdade, que o mundo das grandes cidades como Lisboa
e Porto, dominado pelos efeitos imobiliários do boom turístico, é
hostil ao mercado livreiro, tudo isto é verdade. Mas também é verdade que a
edição de livros é muito má, que traduções, edições, revisões, grafismo são
pouco cuidados e que os professores que iam encomendar livros à Leitura hoje
não compram livros, nem na Amazon — como os estudantes não os lêem. O deserto
livreiro que são as universidades estende-se à sua volta onde só os ingénuos
pensam que sobrevivem livrarias, quando o que está a dar são casas de
fotocópias.
Não
há nada pior do que dar uma explicação errada para o que se está a passar,
quando essa explicação é uma justificação derrotista de aceitação de fim de um
mundo melhor a favor de um mundo pior. É que, meus amigos, às vezes as coisas
andam para trás.
Repetem-se
quanto à morte das livrarias os mesmos lugares-comuns sobre o arcaísmo dos
livros face às novas plataformas digitais, às mudanças de hábitos de leitura
geracionais, etc,. etc. Considero que quase tudo isto é, para usar um eufemismo
americano, que é substituído nas televisões por um apito, bullshit. Estas
“explicações” destinam-se a encobrir muita incompetência, muitos erros de
gestão, muito facilitismo, muito ir atrás de modas, muitas afirmações que podem
ser virais, mas que não são verificadas; e, pior que tudo, escondem um problema
maior, que é o da leitura, não no mundo digital que para estas matérias eu não
sei o que é, mas o da ascensão de novas e agressivas formas de ignorância,
aquilo a que tenho chamado a “nova ignorância”, que ganharam valor corrente na
sociedade dos dias de hoje e que a ajudam a caracterizar. E do mesmo modo que é
suposto combater o autoritarismo, a violência, o sexismo, o populismo, e mais
uma longa série de “ismos”, é preciso combater essa degradação daquilo que era
um valor civilizacional (sim, há valores civilizacionais...) que era caminhar
do fim do analfabetismo para uma qualificação da leitura como modo de dominar
melhor o mundo e a vida de cada um.
O
problema não é substituir os livros por um ecrã de um telefone inteligente ou
de um tablet — o problema é o mito perigoso de que a “leitura”, mesmo
numa forma diferente, está a emigrar de um meio para outro, porque não está. O
que se está é a ler diferente, pior e menos, como se está a “saber” demasiado
lixo — meia dúzia de performances rudimentares com as novas
tecnologias — e pouco saber. A morte das livrarias é um aspecto desse soçobrar
no lixo, mas infelizmente estão demasiado acompanhadas pela morte de muitas
outras coisas, do valor do conhecimento, do silêncio, do tempo lento, da
leitura, da verdade factual, e da usura da democracia
O Combate Civilizacional pelos Livros e pela Leitura – por José Pacheco
Pereira, Jornal
Público, 03/03/2018, p. 60 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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