quinta-feira, 18 de abril de 2019

VASCO A REGRA DE OURO – POR ANTÓNIO VALDEMAR


Vasco a Regra de Ouro” – por António Valdemar

[Texto de António Valdemar para o Catálogo da ExposiçãoVasco de Castro Cartoons. Ena pá … cá está ele outra vez!”, a decorrer até ao próximo dia 30 de Abril de 2019, no Museu Rafael Bordalo Pinheiro, ao Campo Grande] 

Vasco, no seu melhor, nas várias dimensões da sua energia criativa, na visceral contundência da intervenção satírica, dispersa em jornais, em revistas e outras publicações, encontra-se, a partir de agora, no Museu Rafael Bordalo Pinheiro.

Estamos perante cerca de uma centena de trabalhos a propósito de figuras e acontecimentos nacionais e internacionais das últimas décadas e, ainda, de comentários a episódios do quotidiano. Pertenciam à coleção de um amigo de há longos anos, e sempre presente nas horas boas e más, Mário Beja Santos, que decidiu oferecer este espólio tão diversificado ao Museu Rafael Bordalo Pinheiro. É um contributo muito significativo para a valorização do património cultural de Lisboa.

Referência obrigatória do desenho de imprensa, Vasco [Agostinho Vasco da Rocha e Castro], nos anos 40, enquanto frequentava o liceu, em Vila Real de Trás-os-Montes, despertou a sua vocação através da leitura d’O Mosquito (criação inovadora de Eduardo Teixeira Coelho, o inesquecível ETC, um açoriano universal cujo centenário do nascimento decorre em 2019), ao mesmo tempo que, também, descobria Picasso. A Guernica comunicou-lhe o gosto radical e excessivo das formas. No Paris Match, conheceu os desenhos de Siné, Bosc e Chaval. Durante os anos 50, na Faculdade de Direito de Lisboa, em vez de estudar os manuais, as sebentas e os códigos preferiu o Grupo Cénico da Faculdade de Direito, os Jograis de Lisboa e a tertúlia surrealista do Café Gelo.

Logo que principiou a guerra colonial Vasco radicou-se em Paris e só regressou a Lisboa, após o 25 de Abril. Viveu e sentiu com intensidade a Revolução dos Cravos. De 1961 a Abril de 1974 residiu, quase sempre, em Montparnasse. Ali chegavam notícias de Portugal. Embora visado pela censura, o suplemento do Diário de Lisboa, A Mosca trazia as Cartas da Guidinha, assinadas por Manuel Pedroso, um dos pseudónimos de Luis de Sttau Monteiro. Fazia a autópsia possível da esclerose múltipla do regime, em desespero com a Guerra Colonial, sem controlar a emigração crescente de intelectuais e de trabalhadores; a resolver com a polícia de choque, os gorilas e a prisão em Caxias, no Aljube e em Peniche, o recrudescimento das manifestações sindicais e dos protestos nas universidades.

Foi no tempo irrepetível dos textos malditos de Luís Pacheco e Mário Cesariny; da rebeldia poética de Alexandre O’Neill, de Alberto Pimenta, da ferocidade de Natália Correia; das crónicas panfletárias de Artur Portela, do sarcasmo escaldante de José Vilhena, na História Universal da Pulhice Humana, na Branca de Neve e os 700 Anões, no Tenha Maneiras e no Filho da Mãe. Custou-lhe o vexame e as torturas nos interrogatórios da PIDE, a prisão no Aljube, em Caxias, a apreensão dos livros.

No Dinossauro Excelentíssimo, Cardoso Pires desmascarou Salazar e a classe política que o sustentava. No Delfim, Cardoso Pires também desmentiu as falsas promessas anunciadas por Marcelo Caetano. Permanecíamos, orgulhosamente sós, com a mesma política e as mesmas instituições repressivas. Apenas mascaradas com outros nomes.

Nos jornais, no parlamento e nos púlpitos – de quase todas as dioceses – manifestavam regozijo com a reabertura do Tarrafal pelo ministro do Ultramar Adriano Moreira e aplaudiram o encerramento pelo ministro da Educação Galvão Teles da Sociedade Portuguesa de Escritores, pela atribuição do Grande Prémio da Novela a Luandino Vieira, na altura preso político no Tarrafal, já com a designação de Campo de Chão Bom, conforme os termos do decreto governamental, para a reclusão dos implicados na luta pela autonomia e a independência das colónias.

O universo intelectual e a formação artística de Vasco desenvolveram- se e consolidaram- se em Paris. Seguiu de perto a Figuration Narrative, o pop francês. Participou em seis ou sete filmes, envolveu-se nos movimentos underground, nas barricadas do Maio de 68, no ativismo da extrema-esquerda. Colaborou, lado a lado, com os maiores cartunistas e em jornais e revistas de prestígio. Por exemplo, em Le Monde, no Fígaro, no Canard Enchainé, no Hara-kiri. O Canard Enchainé acolheu o rasgo de gerações sucessivas. O grupo Hara-Kiri/ Charlie-Hebdo e L'Enragé, acompanharam o Maio de 68. Época áurea, na Europa e nas Américas, da caricatura e do cartum, assinalada com a agressividade de Siné, o inconformismo de Chaval e de Bosc; a estilização sofisticada de Sempé, o imaginário de Topor, de Steidman e de Scarfe. E, ainda, a irradiação de Steinberg e de Levine.

Mal chegou a Lisboa, Vasco continuou a militância política. No jornal Página Um foi tudo e fez tudo, na fase explosiva do PREC. É no final dos anos 70 que atingiu a maturidade e uma expressão própria ao privilegiar as virtualidades da linha e do pingo da tinta-da-china, numa síntese entre o grafismo satírico e a pintura a negro, numa reinterpretação contínua do expressionismo.

Foi no decurso dos anos 80 que Vasco ganhou notoriedade no Diário de Notícias. O jornal ainda não perdera a expansão que o levava a todo o pais. Estabelecemos fortes relações de convívio e uma sólida amizade que resistiu a inúmeras vicissitudes. Ao fim da manhã debatíamos temas de ilustrações para a página de opinião e para o suplemento Artes e Letras. Vasco encontrava-se em pleno apogeu, e enviava em tempo útil, retratos, caricaturas e cartunes solicitados e que saiam quase todos os dias com o maior destaque.
 
 
Fernando Pessoa motivou sucessivas e arrojadas interpretações de Vasco, com uma visão original (celebrada por Vergílio Ferreira) e que ultrapassaram a iconografia imposta por Almada Negreiros e também pelas fotografias de Horácio Novais, ao surpreender Pessoa nas ruas de Lisboa umas vezes só, outras com amigos íntimos.

Mas não foi apenas Pessoa. A pretexto de efemérides do fim do século passado Vasco recriou escritores como Herculano, Eça, Aquilino, Nemésio, Jaime Cortesão e Teixeira Gomes; poetas como Antero, Junqueiro, António Nobre, Cesário Verde e Camilo Pessanha; artistas como Stuart Carvalhais e Amadeu de Souza- Cardoso; e, sobretudo, Camilo, uma das suas indisfarçáveis paixões literárias, para aprofundar, no homem e no escritor, o sentimento trágico de vida.

Vasco fez parte dos fundadores do Público, da equipa escolhida pelo diretor Vicente Jorge Silva. Colaborou, assiduamente, e não se limitou ao retrato e à caricatura de protagonistas e fantoches políticos e sociais. Os recursos imaginativos de Vasco abrangeram as consequências da poluição, os efeitos da tecnologia, as desigualdades sociais, o capitalismo selvagem, o consumismo desenfreado, as situações e perplexidades da condição humana.

Todavia, a direção em exercício do Público, a partir de 1 de Setembro de 2008, prescindiu a colaboração de Vasco e cortou-lhe a remuneração mensal que recebia, desde o início do jornal. Vasco ficou sem a sua única fonte de subsistência e sem espaço de intervenção nos jornais e revistas.

Num balanço sumário da obra e da vida de Vasco podemos concluir que procurou manter-se fiel à diretriz de Rafael Bordalo ao salientar na apresentação do programa editorial do António Maria o propósito firme de «ser oposição declarada e franca aos governos e oposição sistemática às oposições».

O legado de Bordalo, patrono desta Casa Museu, o seu distanciamento sempre dos poderosos, dos interesses instalados, dos lugares de privilégio, também se deparam na posição crítica de Vasco e que tem sido a regra de ouro da sua conduta pessoal e profissional em face da prepotência e o arbítrio da classe política, dos comportamentos dúbios, dos negócios escuros e das rotinas confortáveis.

A memória e a identificação com as origens - e esta circunstância nunca poderá deixar de ser mencionada - incutiram em Vasco as raízes cósmicas, os vínculos ancestrais, toda a força telúrica que se transmite no ar que se respira, penetra no sangue, circula nas veias e impulsiona um sopro criador de liberdade e um sentido de amplitude universal que, onde quer que esteja, o evidencia sempre como trasmontano, português, ibérico, europeu e cidadão do mundo”.

 


Vasco a Regra de Ouro – por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências] – com sublinhados nossos.

J.M.M.

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