terça-feira, 2 de julho de 2019

IN MEMORIAM DO PROF. ANTÓNIO MANUEL BOTELHO HESPANHA - “O HISTORIADOR QUE VEIO DO DIREITO”


O Historiador que veio do Direito” – por Isabel Salema, in jornal Público, 2 de Julho de 2019, pp.30-31

“O historiador e jurista António Manuel Hespanha, autor de uma visão alternativa do Antigo Regime suscitada justamente pela sua formação em Direito, morreu ontem [1 de Junho de 2019] na Fundação Champalimaud, em Lisboa, de cancro do cólon. Através da valorização das fontes jurídicas, mostrou que até meados do século XVIII o poder dos reis portugueses era muito limitado, e assim contribuiu para uma revisão do papel do Direito na época moderna, sublinhou ao PÚBLICO Nuno Gonçalo Monteiro, que o considera um dos historiadores da época moderna mais relevantes das últimas décadas.
Inicialmente um historiador do Direito, afirmou-se mais tarde como historiador generalista: em 1993, José Mattoso escolheu-o para coordenar o quarto volume, dedicado ao Antigo Regime, da sua História de Portugal. "Alargou enormemente o seu campo de actuação e chegou a coordenar, já no início deste milénio, a parte relativa à época moderna de uma História Militar de Portugal", acrescenta Monteiro, que teve em Hespanha o orientador do seu doutoramento e foi um dos autores da História de Portugal coordenada por Rui Ramos.

A partir de uma nova leitura dos textos e das práticas jurídicas do Antigo Regime, António Hespanha inaugurou todo um conjunto de revisões historiográficas, questionando a operacionalidade, antes do final do século XVIII, da noção de Estado que se fixou posteriormente, diz ainda Nuno Monteiro: "Algumas funções públicas, como as jurídicas ou militares, não eram até lá monopolizadas pela máquina do Estado, situação que só começa a mudar de forma mais explicita a partir do período do Marquês de Pombal. Hespanha defende que a organização da sociedade é, basicamente, corporativa, e que os senhores, as câmaras e a Igreja têm uma esfera de actuação reconhecida e sancionada pela própria monarquia."
Essa releitura, prossegue Monteiro, "foi uma autêntica revolução na historiografia portuguesa do período moderno". E se Hespanha foi, em Portugal, "o expoente dessa revolução", é importante referir que estava sintonizado "com outros historiadores do Direito, como Bartolomé Clavero, em Espanha, e Paolo Grossi, em Itália".
 
 

António Manuel Botelho Hespanha nasceu a 23 de Fevereiro de 1945 em Coimbra [o seu avô - a quem dedica a sua obra História das Instituições. Épocas medieval e moderna – era o juiz conselheiro Bernardo Botelho da Costa] onde se licenciou em Direito em 1967, depois de uma militância católica na juventude [pertenceu ao CADC, tendo sido seu Vice-Presidente, e colaborou na revista “Estudos”]. Foi assistente de Direito Romano na Universidade de Coimbra até 1974 [durante a crise académica de 1969, em Coimbra, António Hespanha integrou o grupo de docentes universitários que foi solidária com os estudantes reunidos em plenário], mas com o 25 de Abril, e a convite do então ministro Vitorino Magalhães Godinho (também historiador), mudou-se para Lisboa para assumir um cargo de diretor-geral no Ministério da Educação, nos tempos conturbados do PREC (Processo Revolucionário em Curso). Hespanha, que foi militante do PCP até 1988, permaneceria no ministério até 1978. Num livro publicado em 2008, Um Saneamento Exemplar, o médico Daniel Serrão (1928-2017) nomeou-o como um dos envolvidos no seu "saneamento político".
Numa Faculdade de Direito de Lisboa à procura de renovação, Hespanha entra então como assistente para leccionar História do Direito. Seis anos depois, talvez por causa dos anticorpos que criara no PREC, o seu doutoramento não seria aceite em Direito e a sua tese, dedicada ao sistema de poderes da monarquia portuguesa, acabará por ser defendida, a convite do historiador Joel Serrão, no Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (UNL). "Acho que me apeteceu mostrar que o Direito continha muitos elementos para fazer História geral. Que, além de fazer parte da vida, além de ajudar a imaginara vida, o Direito tinha muita informação para fazer a História da vida. Este era o elemento provocador para os colegas historiadores não juristas", disse numa entrevista inserida num livro de homenagem publicado em 2014.

Em 1988, entra como investigador no Instituto de Ciências Sociais (ICS), onde acaba por formar (influência que também exerceria enquanto professor na UNL) uma série de discípulos, como Mafalda Soares da Cunha, José Subtil, Pedro Cardim, Ângela Barreto Xavier, Cristina Nogueira da Silva ou Rui Tavares. "Toda a vida nos convidou a pensar e a desmontar mitos, esbatendo as hierarquias professor-aluno. Foi dos primeiros nas Ciências Sociais em Portugal a criar grupos de investigação com os seus alunos. E queria ouvir o que tínhamos para dizer. Pela obra, e também pelo exemplo humano, foi um cometa, uma estrela, que passou pelas nossas vidas e as transformou", diz Ângela Barreto Xavier, investigadora do ICS.
 
É em 1994 que publica a sua tese de doutoramento, As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal, séc. XVIII, obra em que parte de uma citação do filósofo inglês Thomas Hobbes para descrever as instituições portuguesas nas vésperas do aparecimento do Estado moderno. "O primeiro enfoque da obra de Hespanha, que aparece em História das Instituições. Épocas medieval e moderna (1982), em Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime (1984) e depois na tese de doutoramento, é, de facto, uma forma invertida de entender as coisas. Ele contraria uma visão muito estadualista adoptada por sucessivas gerações de historiadores portugueses, segundo a qual os reis mandam e a centralização prevalece desde a Idade Média", resume Nuno Monteiro.

Para António Hespanha, no Portugal do Antigo Regime o poder do rei é apenas um entre vários: "Isso não era nenhuma anomalia ou disfuncionalidade, era próprio da cultura política daquele tempo e das monarquias do Ocidente europeu", explica o historiador Pedro Cardim. Havia algumas diferenças entre essas monarquias, mas todas albergavam um grau muito significativo de pluralismo político e jurídico.
Apesar de gostar de dizer que não era "um rato dos arquivos", fez levantamentos documentais muito vastos. "Ele identificou grande parte da tratadística jurídica e teológica produzida por portugueses na época moderna. É uma investigação bastante única sobre uma literatura pouco trabalhada, em parte por estar em latim, sendo muitas vezes nestes livros que se encontra a parte principal do pensamento político português", continua o investigador do Centro de Humanidades da UNL.

Hespanha encontrou em obras produzidas por juristas e teólogos as melhores fontes para explicar a relação entre os vários poderes: o do rei e o da nobreza, o do clero e o dos concelhos, o dos tribunais da coroa, da nobreza e da Igreja. "É uma História política bem diferente da clássica, que é a História da corte, dos reis, das rainhas. É a política entendida como técnica para manter estável e organizada uma comunidade composta por pessoas com interesses divergentes. Boa parte dessa ordem comunitária devia-se não só ao Direito, mas também à normativa eclesiástica. Há outras fontes de normatividade, como a moral, o costume, ou os estatutos locais das cidades e das vilas. Ele revelou um panorama das fontes do Direito muito mais complexo e plural, e demonstrou que no mundo do Antigo Regime a lei era um instrumento entre muitos outros instrumentos de regulação das relações comunitárias." As normas da Igreja tinham muito mais força para obrigar as pessoas a comportarem-se de determinada forma do que a própria lei régia, resume Pedro Cardim.
Com o filósofo francês Michel Foucault, que teve uma larga influência na historiografia dos anos 70 e 80, através de obras como As Palavras e as Coisas (1966) e A Arqueologia do Saber (1969), Hespanha descobriu novas formas de entender o poder, explicado como capacidade para impor comportamentos a um corpo social.

Como bom jurista, evidenciou no seu trabalho uma tendência sistémica, e alguns críticos apontam que esqueceu, por vezes, a força dos conflitos, como as lutas entre a coroa e a Igreja. "Talvez a sua principal lacuna seja a História social dos subalternos, a massa de população que, no fundo, era a destinatária dessas medidas de controlo", admite Pedro Cardim. "Hoje há toda uma série de estudos muito inovadores que estão a demonstrar que as mulheres, as populações pobres, as populações de origem africana, ameríndia, asiática que viviam nos territórios coloniais encontraram formas de subverter esses dispositivos de poder."
Na obra de Hespanha, os indivíduos não estão muito presentes e os leitores podem sentir que estão perante uma História um pouco abstracta. "É uma história de estruturas de poder, de discursos e da sua força performativa, dos modelos de pensamento que actuam sobre as pessoas e modelam a sua acção. A acção dos indivíduos pesa pouco. Os factos singulares para ele não têm um peso explicativo muito grande", concorda Pedro Cardim.

Quando o socialista António Guterres ganhou as eleições em 1995, convidou António Hespanha para o cargo de comissário-geral da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, em substituição de Vasco Graça Moura. Foi nesta altura, com a responsabilidade de festejar pela primeira vez em democracia, e num mundo já pós-colonial, a expansão portuguesa, que o historiador recentrou os seus interesses na História do império, com destaque para o Brasil. "As comemorações foram inovadoras porque ele abandonou uma perspectiva muito nacionalista baseada numa historiografia de cariz lusocêntrico, imperialista, tentando integrar as culturas descobertas", lembra a antropóloga Rosa Maria Perez, que foi sua comissária-adjunta, apontando exposições como Culturas do Índico ou O Orientalismo em Portugal. Pedro Cardim lembra a propósito que a partir do final da década de 1990 a obra de Hespanha foi acolhida com grande entusiasmo pela comunidade historiográfica brasileira. "O seu pensamento esteve na origem de numerosas investigações inovadoras acerca do passado colonial, em especial sobre as instituições que os portugueses foram implantando à medida que conquistavam terras e submetiam as populações autóctones da América do Sul."
Em vez de falar de um poder unívoco exercido pelos agentes de um Estado forte baseado em Lisboa, Hespanha evidenciou, como já tinha feito para Portugal, a convergência de uma pluralidade de poderes. "Insistiu numa dominação muito mais complexa e difusa, num poder régio cheio de limitações e, ainda, no decisivo envolvimento, na empresa colonial, de grande parte da população brasileira de origem portuguesa." Uma perspectiva que problematiza a dicotomia de colonizador-colonizado, sublinha Pedro Cardim, e em que alguns não se reviram. "Uns criticaram-na por insistir, acima de tudo, no modo como o poder era exercido e por dedicar pouca atenção à resistência contra esse poder, em especial da parte dos indígenas e dos africanos escravizados. A outros pareceu, erradamente, que a leitura de Hespanha matizava o carácter violento da colonização portuguesa."
 
 

Quando saiu da Comissão dos Descobrimentos, em 1998, Diogo Freitas do Amaral convidou-o para dar aulas na recém-criada Faculdade de Direito da UNL, onde permaneceu 12 anos como professor catedrático, até à sua jubilação em 2011. Voltou a focar-se no Direito, até ao regresso, já este ano, com o livro Filhos da Terra, Identidades Mestiças nos Confins da Expansão Portuguesa, à História do império. Ângela Barreto Xavier recorda que o historiador dizia que este era o seu livro "sobre os etc.", os anónimos que fizeram o chamado império português: ali "lembra que os portugueses eram uma minoria, e que a colonização foi também feita de muita gente que vivia nos territórios, mas contraria por completo a ideia do império como um imenso Portugal, a tese de um império brando que ainda é defendida por muitos, e diz com todas as letras que a colonização portuguesa não foi nem mais nem menos violenta do que outras". Os luso-tropicalistas que gostaram do livro, comentou Hespanha recentemente com Ângela Barreto Xavier, não terão percebido o que realmente ele escreveu.

 O Historiador que veio do Direito“ – por Isabel Salema [com Lucinda Canelas], jornal Público, 2 de Julho de 2019, pp. 30-31 – com anotações e sublinhados nossos.

J.M.M.

1 comentário:

Mariana Alface disse...

Obrigado. mais um magnífico texto que nos fez recordar e consolidar o que muitos/as nos esquecemos