“O que está vivo n’Os Lusíadas”
– por António Valdemar, in Tempo Livre
Camões, além da consagração da história, da geografia e da
mitologia e da narrativa da expansão portuguesa através dos mares, aprofundou
as questões fundamentais da condição humana
“Camões não se pode reduzir aos jogos partidários e aos
expedientes da retórica política, aos aproveitamentos de governos e governantes
de vários regimes para justificação de exacerbações nacionalistas. Deparamos,
passo a passo, n’Os Lusíadas, um sentido crítico, uma perspetiva humanista e
uma visão ampla e diversificada em torno das grandes questões políticas,
sociais e filosóficas. Ao pronunciar-se acerca da máquina do mundo, do
argumento perentório da existência de Deus não hesita interrogar: «é Deus? mas
quem é Deus, ninguém o entende/ que a tanto o engenho humano não se estende?»
Faz apelos contínuos para a urgência da liberdade e a reposição da justiça, a
fim de construir uma sociedade assente nos princípios da honra e nos valores da
solidariedade.
Sucessivas gerações de eruditos portugueses e estrangeiros
continuam a recapitular hipóteses formuladas desde os mais antigos biógrafos e
comentadores, o chantre Severino de Faria, o licenciado Manuel Correia, o
arbitrário Manuel Faria de Sousa e o memorialista João Soares de Brito.
Perduram as controvérsias acerca do local e dia do nascimento,
da identificação dos pais; dos estudos na Universidade de Coimbra, do serviço
militar em Ceuta, do que ocorreu na passagem na Índia e em Macau; da residência
em Constância; do valor da tença atribuída e da sua equivalência em dinheiro
atual; do dia da morte, da sepultura em Lisboa e, ainda, da autenticidade dos
ossos trasladados para o túmulo nos Jerónimos. Estes e outros aspetos continuam
por esclarecer e, na maior parte dos casos, repletos de lendas e fantasiosas
conjeturas.
Todavia, a leitura d’Os Lusíadas, das líricas, dos sonetos, dos
autos e das cartas colocam-nos perante reflexões e advertências profundas. O
homem, o Camões de carne e osso, – tal como o retrataram os que o conheceram –
manifestou-se com frontalidade e independência. Não recorreu – como era
habitual na época – a um prefaciador para o panegírico tradicional na
apresentação d’Os Lusíadas, nem se esquivou a enfrentar poderosos, a contrariar
opiniões dominantes, a insurgir-se contra a grave situação que o País vivia
A Inquisição estava instalada desde 1536. A censura
encontrava-se em pleno funcionamento. Os livros eram submetidos à leitura
prévia e só poderiam ser impressos e postos a circular depois da autorização do
Santo Ofício. Assim aconteceu, em 1572, com Os Lusíadas. Estudiosos camonianos
– Sousa Viterbo e Aquilino Ribeiro, por exemplo – formularam hipóteses acerca
do que terá sido truncado no manuscrito e, também, acerca das possíveis
intervenções do censor ao fabricar versos, para condescender na publicação de
outros.
Num tempo de perplexidade e angústia, Camões reforçou a
identidade coletiva e defendeu a autonomia política de Portugal. Quando
voltamos a estar confrontados com problemas de extrema complexidade, Os
Lusíadas representam uma fonte de energia para transpor a impaciência e o
fatalismo. Camões celebrou as memórias gloriosas de Portugal e de portugueses,
mas sem virar as costas à crise política e à degradação humana, em tantos
aspetos, com analogias com a época em que vivemos.
Numerosas passagens d’Os Lusíadas aplicam-se à atual realidade
portuguesa; a uma classe política, sedenta de poder e de elogios públicos, sem
dignidade e sem carácter e sem qualquer projeto voltado para o futuro: nenhum
ambicioso, que quisesse/subir a grandes cargos, cantarei, /só por poder com
torpes exercícios/usar mais largamente dos seus vícios.
Deplora os fatores de insegurança e a precaridade dos vínculos
laborais: nenhum que use de seu poder bastante/para servir a seu desejo feio/a
despir e roubar o pobre povo! Manifesta apreensão por tudo quanto gera o
desespero, multiplica a violência, aumenta a criminalidade e intensifica a
apagada e vil tristeza.
E a crise na saúde? E as listas de espera nos hospitais que
aumentam de forma vertiginosa e assustadora? Faz recordar Camões ao deplorar a
morte nos hospitais em pobres leitos/os que ao rei e à lei servem de muros.
E a crise na justiça? O sistema judicial que não funciona, as
reformas essenciais por fazer, por estudar e por decidir? A obrigação de
restabelecer a normalidade para impedir a generalização do caos. A recomendação
de Camões continua oportuna: quem faz injúria vil e sem razão/ com forças e
poder em que está posto, /não vence, que a vitória verdadeira/é saber ter
justiça, nua e inteira. E a crise moral? A venalidade, o suborno e a corrupção aos mais diversos níveis? Camões revoltou-se contra as honras e dinheiro que a ventura forjou. Para concluir que não lava o muito dinheiro/ a nódoa da desonra.
Por tudo isto e muito mais seguiu de perto as grandes
inquietações e os problemas do seu tempo e de todos os tempos. Enfrentou o
fantasma do medo: a vida que se perde e que periga/que, quando ao medo infame
não se rende/ então se menos dura, mais se estende. Resistiu aos profetas da
desgraça que anunciam sempre o pior como se estivéssemos sempre às portas do
fim do mundo.
O que
está vivo n’Os Lusíadas – por António Valdemar [Jornalista e investigador,
membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], Tempo Livre, Maio/Junho de 2019, pp. 8
– com sublinhados nossosJ.M.M.
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