“Leitão de Barros revisitado” –
por António Valdemar, in Revista do Expresso
É um outro Leitão de Barros que nos confronta e nos surpreende
na multiplicidade dos sete ofícios evidenciados no cinema, no teatro, nas artes
plásticas, no jornalismo, na criação da Feira Popular, na organização de espetáculos
que concebeu e realizou, nas festas da cidade que enchiam as ruas de Lisboa.
Joana Leitão de Barros e Ana Mantero, duas netas que se recordam ainda do avô,
acabam de publicar “Leitão de Barros — A Biografia Roubada”. É um livro repleto
de factos e documentos, até agora desconhecidos e inesperados para os que não
tiveram o privilégio de uma relação pessoal próxima. Apesar de teses
universitárias, com a linguagem pesada e retorcida e os inevitáveis e
preopinantes rodapés, este é, ainda, o livro que faltava e se encontra ao
alcance do grande público.
Estamos perante um Leitão de Barros revisitado, que permanecia
oculto num espólio — felizmente recuperado —, em mais de vinte caixotes, ao
abandono, numa arrecadação, sem qualquer referência e, muito menos, sem a
mínima ordenação. Assim surgiu, a pouco e pouco, muita correspondência
recebida; muita cópia da correspondência enviada; muitas fotografias e muitos
recortes de jornais e revistas.
Ao cabo de uma investigação exaustiva, que demorou sete anos, a
decifrar, a sistematizar e a contextualizar milhares e milhares de documentos,
já existia, pelo menos, um livro a propósito do homem, da sua obra e de tantas
outras circunstâncias que representam a presença viva da primeira metade do
século XX e dos seus grandes protagonistas.
Leitão de Barros ficou na história do cinema português e recebeu
alguns importantes prémios internacionais. Marcou uma época. Desde “Malmequer”
(1918), até “Vendaval Maravilhoso” (1949), passando pela “Severa”, extraída da
peça e da narrativa romanceada de Júlio Dantas e que foi, em 1931, o primeiro
filme sonoro português. Fixou o cenário marítimo e piscatório da Nazaré e da
Póvoa de Varzim; o universo rural das “Pupilas do Senhor Reitor”, o pitoresco
dos bairros humildes de Lisboa e a realidade telúrica e humana das populações
dos arredores.
Ficou na história do jornalismo da primeira metade do século XX.
Fundou e dirigiu o “Domingo Ilustrado” (1925-1927) e o “Notícias Ilustrado”
(1928-1935). Estes dois semanários impuseram-se pela renovação gráfica, pela
abundância de temas relatados e comentados. Teve a colaboração dos nomes
famosos da época: Afonso Lopes Vieira e António Correia de Oliveira, entre os
poetas; Carlos Malheiro Dias e Antero de Figueiredo, entre os escritores; e
Carlos Reis e Roque Gameiro entre os artistas plásticos. Nos momentos solenes,
Júlio Dantas era infalível.
Mas não hesitou publicar, e com todo o relevo, n’O Domingo
Ilustrado o último manifesto de Almada Negreiros “Pa-Ta-Pom”, uma catilinária
fulminante contra Martinho Nobre de Melo, catedrático da Faculdade de Direito
de Lisboa. Jovem ministro da Justiça de Sidónio e, na altura, um dos ministros
da ditadura militar que, pela primeira vez, incluiu no Governo, o ainda desconhecido
Oliveira Salazar. Leitão de Barros antecedeu António Ferro no lançamento de
Salazar e do Estado Novo. Encontra-se provado neste livro.
Também n’O Domingo Ilustrado e no “Notícias Ilustrado”
contribuiu para o conhecimento e valorização não só de Almada Negreiros, mas,
também, de outros intervenientes do modernismo. Tais como os poetas e
escritores: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro (a título póstumo), Alfredo
Guisado, Luís de Montalvor; os pintores Eduardo Viana, Jorge Barradas e Sarah
Affonso; os escultores Francisco Franco, Canto da Maya, Rui Gameiro e Barata
Feyo; e os cartunistas e desenhadores Stuart Carvalhais, Carlos Botelho, José
Tagarro e Bernardo Marques. Com Leitão de Barros começou — descoberto por
Rodrigues Alves — Eduardo Teixeira Coelho (o famoso ETC), o criador do
“Mosquito”, para crianças e jovens, precursor do “Cavaleiro Andante” e da
primeira adaptação de Eça de Queiroz para banda desenhada. O centenário do
nascimento de Eduardo Teixeira Coelho — que este ano se completa — não teve o
devido relevo e julgo que, nos Açores de onde era natural, também não lhe
prestaram a devida homenagem
O escultor Leopoldo de Almeida que, a partir de indicações de
Cottinelli Telmo e de Leitão de Barros, executou a figuração histórica do
Padrão dos Descobrimentos para a Exposição do Mundo Português de 1940 (págs.
101 a 103) e que foi ampliado e inaugurado em 1960, durante as comemorações do
centenário do Infante D. Henrique. Desde então passou a ser uma das imagens
emblemáticas de Belém.
Ficou, também, Leitão de Barros na história do jornal “O
Século”, no fim dos anos 30, até ao começo dos anos 50. Entre numerosas
iniciativas criou o “Século Ilustrado” e a Feira Popular de Lisboa; voltou a
entrevistar Salazar e entrevistou, no Castelo de Belleuve, nos arredores de
Paris, a rainha D. Amélia, que enalteceu as obras do Estado Novo e a ação de
Salazar.
É nesse período, de extraordinária dispersão e criatividade que
Leitão de Barros concebeu e procurou viabilizar — e durante 17 anos atribulados
— a nau “São Vicente”, réplica de um galeão do século XVII que se destinava a
divulgar, através do Atlântico, das Américas, da África e do Oriente o que
existia de mais significativo não só na história e nas diversas expressões da
cultura portuguesa mas, também, o melhor que tínhamos nos vários sectores da
produção comercial e industrial. Salazar inviabilizou o projeto depois de se
terem gasto, na época, milhares e milhares de contos. Hoje correspondiam a
cerca de €9 milhões.
Ficou, ainda, Leitão de Barros na história do “Diário de
Notícias”. Fez crónicas e reportagens na Inglaterra, na Espanha e no Brasil,
mas, durante os 15 anos, assinalou-se, em ‘Os Corvos’ (1953-1967). Era uma
crónica semanal, que saía aos domingos, sempre na mesma página. Tinha repercussão
nos mais diferentes extratos sociais: desde Salazar ao merceeiro da esquina.
Não trazia assinatura e vinha paginada num espaço próprio e com carateres
tipográficos próprios. Todos sabiam quem era o autor. Ocupava-se do que lhe
apetecia e se passava em qualquer parte do país e do estrangeiro. (Entre muitos
serviços de reportagem, também estive com Leitão de Barros e o José Rui a fazer
a cobertura de uma Semana Santa, em Braga, onde, a certa altura, para surpresa
minha e do José Rui introduziu no texto o elogio da Opus Dei). Mas,
fundamentalmente, escrevia sobre Lisboa. ‘Os Corvos’ — de que há, apenas, a
seleção, feita pelo próprio Leitão de Barros, uma até 1959, outra até 1961, em
dois volumes ilustrados por João Abel Manta — mobilizaram milhares de leitores.
Tinha propostas concretas para Lisboa: para valorizar a Avenida, para recuperar
Alfama, para destacar a beleza das ruínas do Carmo, do Castelo e da orla
ribeirinha do Tejo; para cuidar dos jardins e dos miradouros; para incentivar o
turismo e a hotelaria, para ajudar as crianças e os velhos.
Outra singularidade deste livro de Joana Leitão de Barros e Ana
Mantero mostra-nos e em toda a sua autenticidade, as implacáveis reações de
Leitão de Barros em face da mediocridade, do mau gosto, do vazio de ideias e da
pompa académica. Protestou junto de Salazar e com assiduidade e veemência — ao
contrário do que muitos julgavam, pois consideravam-no um incondicional do
regime, do Chefe e dos ministros — contra as picardias da censura (pág. 90).
Numa das muitas cartas agora divulgadas afirmava a Cunha Leal, um dos temíveis
líderes da oposição democrática: “Gostaria bem que me deixassem escrever — a
mim que não sou escritor — que me deixassem ter opinião, que me não cortassem
as unhas todos os sábados, depois do duche do capilé em que o ‘Diário de
Noticias’ me encharca (…). Assim, tudo quanto escrevo é pífio, como pífio é o
ar que respiramos…” (págs. 350, 351).
Numa outra carta a António Ferro, no auge das comemorações do
Mundo Português, presididas por Júlio Dantas declarou (e Leitão de Barros
investido em funções oficiais) que o Governo tinha “um par de botas para
descalçar” e com urgência inadiável. Exigia perentoriamente, de António Ferro
e, por extensão do ministro Duarte Pacheco, o afastamento imediato de Júlio Dantas.
Sem quaisquer rodeios insistia: “Você não calcula o que esse homem tem feito de
complicações, de gaffe, de possidonismo, de ‘ceroulas de malha’. É um
sarilho a cada hora” (pág. 99). Trata António Ferro em diversas cartas com
espantosa ferocidade. Denuncia a opinião inacreditável de Augusto de Castro
acerca do cinema (pág. 98). Insurge-se oficialmente devido às desastrosas e
infelizes decorações do “alegre arquiteto” Luís Benavente (pág. 108) E
descreve, ainda, uma das suas atrevidas conversas com Salazar (págs. 108 a 112).
O livro expressivamente documentado revela os méritos tão
diversificados de Leitão de Barros e, nas circunstâncias mais diferentes, o
Leitão de Barros sem papas na língua. Também Joana Leitão de Barros e Ana
Mantero tiveram a coragem de transcrever outros documentos polémicos do
espólio, sem receio de enfrentar melindres familiares.
Numa das muitas cartas sepultadas, até agora, no espolio, o
pintor Eduardo Malta, em delação premiada — se assim podemos classificar —
descreveu, com enorme minúcia e citando nomes e factos, a deplorável sabotagem
que se gerou para inviabilizar a votação favorável para ser Leitão de Barros
sócio da Academia de Belas Artes. Não era uma questão de currículo, mas de
aversão pessoal. Mais: de inveja e de medo da sua irreverência visceral e
irreprimível e onde quer que fosse. Na Academia, fizeram os possíveis e
impossíveis para que não houvesse quórum. Alinhou nessa cabala o próprio
cunhado, o pintor e professor liceal Jaime Martins Barata, colaborador direto de
anos seguidos de projetos profissionais comuns, o “taciturno” Martins Barata,
protegido e defendido por Leitão de Barros ao ser marginalizado e excluído numa
exposição a efetuar no Rio de Janeiro (pág. 74). Leitão de Barros não pode
contar com a solidariedade de Martins Barata para ir para a Academia. Era um
“desconfiado que tudo acautela” (pág. 74). Tão desconfiado que — relata o
próprio Martins Barata, não esconde a sua conduta. Quando estava em Roma a
pintar o altar de Nossa Senhora de Fátima, na basílica de Santo Eugénio —
pormenorizou em carta a Leitão de Barros de 7 de julho de 1950 como tinha de
proceder e para se defender: “Estas hordas seminuas não são de confiança,
roubam tudo uns aos outros e a mim, se puderem, claro. Eu defendo-me com
cadeados (7!) em vários sítios, mas estou sujeito como qualquer” (pág. 74).
Em nova votação, Leitão de Barros acabou, afinal, por entrar.
Raul Lino, desta vez na presidência, quis resolver a questão. Era tarde. Leitão
de Barros não chegou a tomar posse. Estava moribundo. Mas ainda deixou uma
carta que arrasa a Academia e os que a constituíam (págs. 345 a 349). Carta tão
virulenta como os textos mais sarcásticos de Camilo ou como os manifestos mais
provocatórios e agressivos de Almada Negreiros e Fernando Pessoa. Um documento
que saltou do espólio a fim de constituir mais um dos grandes panfletos contra
todas as Academias nacionais e internacionais.
Tudo isto se destaca neste livro polémico, com verdades como
punhos, de Joana Leitão de Barros e Ana Mantero, e que terá, pelo menos, mais
uma outra edição.
LEITÃO DE BARROS — A BIOGRAFIA ROUBADA
Joana Leitão de Barros e Ana ManteroBizâncio, 2019, 367 págs., €18
Biografia
Leitão de Barros revisitado – por António Valdemar [Jornalista e
investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], E revista do Expresso - 26 de
Outubro de 2019, pp.68-69 – com sublinhados
nossos.
J.M.M.
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