segunda-feira, 28 de outubro de 2019

LEITÃO DE BARROS REVISITADO



Leitão de Barros revisitado” – por António Valdemar, in Revista do Expresso
É um outro Leitão de Barros que nos confronta e nos surpreende na multiplicidade dos sete ofícios evidenciados no cinema, no teatro, nas artes plásticas, no jornalismo, na criação da Feira Popular, na organização de espetáculos que concebeu e realizou, nas festas da cidade que enchiam as ruas de Lisboa. Joana Leitão de Barros e Ana Mantero, duas netas que se recordam ainda do avô, acabam de publicar “Leitão de Barros — A Biografia Roubada”. É um livro repleto de factos e documentos, até agora desconhecidos e inesperados para os que não tiveram o privilégio de uma relação pessoal próxima. Apesar de teses universitárias, com a linguagem pesada e retorcida e os inevitáveis e preopinantes rodapés, este é, ainda, o livro que faltava e se encontra ao alcance do grande público.

Estamos perante um Leitão de Barros revisitado, que permanecia oculto num espólio — felizmente recuperado —, em mais de vinte caixotes, ao abandono, numa arrecadação, sem qualquer referência e, muito menos, sem a mínima ordenação. Assim surgiu, a pouco e pouco, muita correspondência recebida; muita cópia da correspondência enviada; muitas fotografias e muitos recortes de jornais e revistas.
Ao cabo de uma investigação exaustiva, que demorou sete anos, a decifrar, a sistematizar e a contextualizar milhares e milhares de documentos, já existia, pelo menos, um livro a propósito do homem, da sua obra e de tantas outras circunstâncias que representam a presença viva da primeira metade do século XX e dos seus grandes protagonistas.
Leitão de Barros ficou na história do cinema português e recebeu alguns importantes prémios internacionais. Marcou uma época. Desde “Malmequer” (1918), até “Vendaval Maravilhoso” (1949), passando pela “Severa”, extraída da peça e da narrativa romanceada de Júlio Dantas e que foi, em 1931, o primeiro filme sonoro português. Fixou o cenário marítimo e piscatório da Nazaré e da Póvoa de Varzim; o universo rural das “Pupilas do Senhor Reitor”, o pitoresco dos bairros humildes de Lisboa e a realidade telúrica e humana das populações dos arredores.
Ficou na história do jornalismo da primeira metade do século XX. Fundou e dirigiu o “Domingo Ilustrado” (1925-1927) e o “Notícias Ilustrado” (1928-1935). Estes dois semanários impuseram-se pela renovação gráfica, pela abundância de temas relatados e comentados. Teve a colaboração dos nomes famosos da época: Afonso Lopes Vieira e António Correia de Oliveira, entre os poetas; Carlos Malheiro Dias e Antero de Figueiredo, entre os escritores; e Carlos Reis e Roque Gameiro entre os artistas plásticos. Nos momentos solenes, Júlio Dantas era infalível.
Mas não hesitou publicar, e com todo o relevo, n’O Domingo Ilustrado o último manifesto de Almada NegreirosPa-Ta-Pom”, uma catilinária fulminante contra Martinho Nobre de Melo, catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa. Jovem ministro da Justiça de Sidónio e, na altura, um dos ministros da ditadura militar que, pela primeira vez, incluiu no Governo, o ainda desconhecido Oliveira Salazar. Leitão de Barros antecedeu António Ferro no lançamento de Salazar e do Estado Novo. Encontra-se provado neste livro.
 
Também n’O Domingo Ilustrado e no “Notícias Ilustrado” contribuiu para o conhecimento e valorização não só de Almada Negreiros, mas, também, de outros intervenientes do modernismo. Tais como os poetas e escritores: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro (a título póstumo), Alfredo Guisado, Luís de Montalvor; os pintores Eduardo Viana, Jorge Barradas e Sarah Affonso; os escultores Francisco Franco, Canto da Maya, Rui Gameiro e Barata Feyo; e os cartunistas e desenhadores Stuart Carvalhais, Carlos Botelho, José Tagarro e Bernardo Marques. Com Leitão de Barros começou — descoberto por Rodrigues AlvesEduardo Teixeira Coelho (o famoso ETC), o criador do “Mosquito”, para crianças e jovens, precursor do “Cavaleiro Andante” e da primeira adaptação de Eça de Queiroz para banda desenhada. O centenário do nascimento de Eduardo Teixeira Coelho — que este ano se completa — não teve o devido relevo e julgo que, nos Açores de onde era natural, também não lhe prestaram a devida homenagem
O escultor Leopoldo de Almeida que, a partir de indicações de Cottinelli Telmo e de Leitão de Barros, executou a figuração histórica do Padrão dos Descobrimentos para a Exposição do Mundo Português de 1940 (págs. 101 a 103) e que foi ampliado e inaugurado em 1960, durante as comemorações do centenário do Infante D. Henrique. Desde então passou a ser uma das imagens emblemáticas de Belém.
Ficou, também, Leitão de Barros na história do jornal “O Século”, no fim dos anos 30, até ao começo dos anos 50. Entre numerosas iniciativas criou o “Século Ilustrado” e a Feira Popular de Lisboa; voltou a entrevistar Salazar e entrevistou, no Castelo de Belleuve, nos arredores de Paris, a rainha D. Amélia, que enalteceu as obras do Estado Novo e a ação de Salazar.
É nesse período, de extraordinária dispersão e criatividade que Leitão de Barros concebeu e procurou viabilizar — e durante 17 anos atribulados — a nau “São Vicente”, réplica de um galeão do século XVII que se destinava a divulgar, através do Atlântico, das Américas, da África e do Oriente o que existia de mais significativo não só na história e nas diversas expressões da cultura portuguesa mas, também, o melhor que tínhamos nos vários sectores da produção comercial e industrial. Salazar inviabilizou o projeto depois de se terem gasto, na época, milhares e milhares de contos. Hoje correspondiam a cerca de €9 milhões.
 
Ficou, ainda, Leitão de Barros na história do “Diário de Notícias”. Fez crónicas e reportagens na Inglaterra, na Espanha e no Brasil, mas, durante os 15 anos, assinalou-se, em ‘Os Corvos’ (1953-1967). Era uma crónica semanal, que saía aos domingos, sempre na mesma página. Tinha repercussão nos mais diferentes extratos sociais: desde Salazar ao merceeiro da esquina. Não trazia assinatura e vinha paginada num espaço próprio e com carateres tipográficos próprios. Todos sabiam quem era o autor. Ocupava-se do que lhe apetecia e se passava em qualquer parte do país e do estrangeiro. (Entre muitos serviços de reportagem, também estive com Leitão de Barros e o José Rui a fazer a cobertura de uma Semana Santa, em Braga, onde, a certa altura, para surpresa minha e do José Rui introduziu no texto o elogio da Opus Dei). Mas, fundamentalmente, escrevia sobre Lisboa. ‘Os Corvos’ — de que há, apenas, a seleção, feita pelo próprio Leitão de Barros, uma até 1959, outra até 1961, em dois volumes ilustrados por João Abel Manta — mobilizaram milhares de leitores. Tinha propostas concretas para Lisboa: para valorizar a Avenida, para recuperar Alfama, para destacar a beleza das ruínas do Carmo, do Castelo e da orla ribeirinha do Tejo; para cuidar dos jardins e dos miradouros; para incentivar o turismo e a hotelaria, para ajudar as crianças e os velhos.
Outra singularidade deste livro de Joana Leitão de Barros e Ana Mantero mostra-nos e em toda a sua autenticidade, as implacáveis reações de Leitão de Barros em face da mediocridade, do mau gosto, do vazio de ideias e da pompa académica. Protestou junto de Salazar e com assiduidade e veemência — ao contrário do que muitos julgavam, pois consideravam-no um incondicional do regime, do Chefe e dos ministros — contra as picardias da censura (pág. 90). Numa das muitas cartas agora divulgadas afirmava a Cunha Leal, um dos temíveis líderes da oposição democrática: “Gostaria bem que me deixassem escrever — a mim que não sou escritor — que me deixassem ter opinião, que me não cortassem as unhas todos os sábados, depois do duche do capilé em que o ‘Diário de Noticias’ me encharca (…). Assim, tudo quanto escrevo é pífio, como pífio é o ar que respiramos…” (págs. 350, 351).
Numa outra carta a António Ferro, no auge das comemorações do Mundo Português, presididas por Júlio Dantas declarou (e Leitão de Barros investido em funções oficiais) que o Governo tinha “um par de botas para descalçar” e com urgência inadiável. Exigia perentoriamente, de António Ferro e, por extensão do ministro Duarte Pacheco, o afastamento imediato de Júlio Dantas. Sem quaisquer rodeios insistia: “Você não calcula o que esse homem tem feito de complicações, de gaffe, de possidonismo, de ‘ceroulas de malha’. É um sarilho a cada hora” (pág. 99). Trata António Ferro em diversas cartas com espantosa ferocidade. Denuncia a opinião inacreditável de Augusto de Castro acerca do cinema (pág. 98). Insurge-se oficialmente devido às desastrosas e infelizes decorações do “alegre arquiteto” Luís Benavente (pág. 108) E descreve, ainda, uma das suas atrevidas conversas com Salazar (págs. 108 a 112).
O livro expressivamente documentado revela os méritos tão diversificados de Leitão de Barros e, nas circunstâncias mais diferentes, o Leitão de Barros sem papas na língua. Também Joana Leitão de Barros e Ana Mantero tiveram a coragem de transcrever outros documentos polémicos do espólio, sem receio de enfrentar melindres familiares.
 
Numa das muitas cartas sepultadas, até agora, no espolio, o pintor Eduardo Malta, em delação premiada — se assim podemos classificar — descreveu, com enorme minúcia e citando nomes e factos, a deplorável sabotagem que se gerou para inviabilizar a votação favorável para ser Leitão de Barros sócio da Academia de Belas Artes. Não era uma questão de currículo, mas de aversão pessoal. Mais: de inveja e de medo da sua irreverência visceral e irreprimível e onde quer que fosse. Na Academia, fizeram os possíveis e impossíveis para que não houvesse quórum. Alinhou nessa cabala o próprio cunhado, o pintor e professor liceal Jaime Martins Barata, colaborador direto de anos seguidos de projetos profissionais comuns, o “taciturno” Martins Barata, protegido e defendido por Leitão de Barros ao ser marginalizado e excluído numa exposição a efetuar no Rio de Janeiro (pág. 74). Leitão de Barros não pode contar com a solidariedade de Martins Barata para ir para a Academia. Era um “desconfiado que tudo acautela” (pág. 74). Tão desconfiado que — relata o próprio Martins Barata, não esconde a sua conduta. Quando estava em Roma a pintar o altar de Nossa Senhora de Fátima, na basílica de Santo Eugénio — pormenorizou em carta a Leitão de Barros de 7 de julho de 1950 como tinha de proceder e para se defender: “Estas hordas seminuas não são de confiança, roubam tudo uns aos outros e a mim, se puderem, claro. Eu defendo-me com cadeados (7!) em vários sítios, mas estou sujeito como qualquer” (pág. 74).
Em nova votação, Leitão de Barros acabou, afinal, por entrar. Raul Lino, desta vez na presidência, quis resolver a questão. Era tarde. Leitão de Barros não chegou a tomar posse. Estava moribundo. Mas ainda deixou uma carta que arrasa a Academia e os que a constituíam (págs. 345 a 349). Carta tão virulenta como os textos mais sarcásticos de Camilo ou como os manifestos mais provocatórios e agressivos de Almada Negreiros e Fernando Pessoa. Um documento que saltou do espólio a fim de constituir mais um dos grandes panfletos contra todas as Academias nacionais e internacionais.
Tudo isto se destaca neste livro polémico, com verdades como punhos, de Joana Leitão de Barros e Ana Mantero, e que terá, pelo menos, mais uma outra edição.

LEITÃO DE BARROS — A BIOGRAFIA ROUBADA
Joana Leitão de Barros e Ana Mantero
Bizâncio, 2019, 367 págs., €18
Biografia

 

 
 
 
 
Leitão de Barros revisitado – por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], E revista do Expresso - 26 de Outubro de 2019, pp.68-69 – com sublinhados nossos.
 
J.M.M.

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