“Pela Liberdade! No dealbar da
Revolução de 1820” [Extracto] – por Maria Otilia Pereira Lage, in Público, 18
de Agosto de 2020
[…] 1. Quais os
antecedentes da Revolução de 1820?
Estruturalmente, Portugal ocupava já no sistema-mundo
capitalista e na economia-mundo europeia um lugar semiperiférico em que
se reflectiam as disputas interestaduais pelo domínio e posição hegemónica. A França
e a Inglaterra,
lutando entre si pela supremacia, desde 1682 a 1815, procuraram afastar
das redes comerciais mundiais os países que sucessivamente as dominaram: Portugal,
Espanha
e Holanda,
alterando a geografia política do comércio mundial, radicalmente reestruturada.
Do conflito social generalizado nas lutas pelo poder resultou, no século XVIII,
o abalo das revoluções americana e francesa e o caos do sistema políticosocial do
Antigo Regime, só se encontrando novo equilíbrio, mais tarde, com o Tratado de
Viena (1815) que marcou, ao tempo, um período de paz na Europa. A hegemonia
passará a ser do imperialismo britânico de livre comércio, todo o sistema
interestados será reorganizado e uma única potência, a inglesa, passaria a dominar
quase todo o mundo.
Entrecruzava-se nessa estrutura uma adversa conjuntura
político-económica nacional e internacional de Portugal, marcada pelo impacto
das três invasões napoleónicas (1807-1810), tendo-se verificado em 1808, a fuga
da família real e da corte, de Lisboa para o Rio de Janeiro, enquanto as forças
britânicas comandadas pelo duque de Wellington aqui desembarcaram para conduzir
militarmente a resistência contra os invasores franceses até à sua expulsão
definitiva e derrota da política imperial francesa na Península Ibérica. Outros
factores agudizavam as contradições e conflitos internos do país agravando as dificuldades
financeiras do Estado: ameaça de perda dos mercados brasileiros, gastos e
prejuízos da Guerra Peninsular (1808-1814), uma quase imobilidade produtiva do
país, aliada à persistente presença e manutenção entre nós do Exército
britânico.
Após a expulsão das tropas francesas de Portugal (1812-1813), a
conjuntura política portuguesa continuava marcada por grande fragilidade devido
à dependência e pressões externas, contradições e dissensões internas de ordem
governativa, e factores adversos, de ordem económico-financeira, militar,
jurídica e social. Eram múltiplos e de diversa natureza os condicionalismos
existentes: permanência da corte no Rio de Janeiro, indesejada na metrópole,
relegada a estatuto subalterno; comando militar do Exército português a cargo
do marechal britânico Beresford; despesas com as tropas nacionais financiadas pela
potência aliada; implicações do cumprimento obrigatório das cláusulas dos
tratados de Comércio e Amizade de 1810, favoráveis a Inglaterra; frustração dos
interesses portugueses nas negociações do Congresso de Viena (1815).
Tudo isso e a constante interferência britânica na política
governativa do Reino, tornava a Regência luso-britânica em Lisboa incapaz de tomar
decisões em matérias fulcrais, dado o seu poder limitado nas esferas política, financeira,
militar e judicial, e a dependência quer das orientações do príncipe regente e
do Governo instalados no Rio de Janeiro, quer das
obrigatórias consultas aos agentes políticos e diplomáticos britânicos. O facto
sui generis de Portugal estar a ser
governado por uma regência dual constituída por Beresford e pelos governadores nomeados em Lisboa espartilhava o
poder político, mantendo-o instável e enredado em contradições, sob os olhares complacentes
da corte sediada no Rio. A polarização destes poderes paralelos afectava os
seus interesses pecuniários, influía nas questões financeiras e impedia o
desenvolvimento do país com urgência de grandes mudanças.
2. Que papel
tiveram as sociedades secretas e a imprensa liberal no exílio londrino?
A conturbada e contraditória atmosfera político-económica e
sociocultural da época, marcada por férrea censura repressiva e ausência
de expressão pública e de liberdade de imprensa em Portugal eram
debatidas nas sociedades secretas que conspiravam em prol do constitucionalismo
e se encontravam já em formação na Península Ibérica depois da Guerra
Peninsular. Desde 1808-09 que emergiam na Península Ibérica tendências
liberais, que em Espanha irão desembocar na Constituição de Cádis que
viria depois influenciar a nossa Constituição vintista e, em Portugal, em
1808, se traduziram numa “súplica” redigida por um grupo de notáveis da
cidade de Lisboa que pedia “uma
constituição e um rei constitucional”.
Entretanto, “o desmantelamento sofrido pela instituição
maçónica, devido às perseguições dos anos 1809, 1810 e 1811, não lhe permite já
desempenhar qualquer papel, quer como veículo ideológico, quer como congregação
de forças. […] Fácil se torna agora à facção jacobina apoderar-se dos
comandos da ordem maçónica. É então que a maçonaria muda em Portugal, trocando,
para sempre, a bandeira da Inglaterra pela bandeira da França.” (Dias, 1980: 402). A partir de 1812,
a maçonaria reorganizou-se, embora a reacção antimaçónica não tivesse
abandonado a sua propaganda em panfletos e outras publicações, sucedendo-se
deportações e perseguições que levaram muitos maçons a emigrar para Inglaterra.
De 1813 a 1815, os trabalhos maçónicos foram reincentivados,
alguns deportados e exilados regressaram, fundaram-se outras lojas e tentou-se reorganizar
o Grande
Oriente Lusitano. Mas esse empenho maçónico partilhando ideais
iluministas e jacobinos da Revolução Francesa, viu-se comprometido pelas
agitações políticas de 1817 no Brasil, com a revolta republicana de
Pernambuco e, em Portugal, com a designada conspiração de Gomes Freire
de Andrade, cuja repressão feroz acabaria por levar à proibição de todas as
sociedades secretas declaradas criminosas por alvará real de 30 de Março de
1818, de D. João VI.
No contexto europeu do combate entre as forças pró-revolução e
contra– revolucionárias, teve grande influência no alastrar das ideias liberais
e pró- constitucionais a imprensa portuguesa londrina resultante da primeira
vaga de exilados liberais. Entre os periódicos em língua portuguesa editados em
Londres mas que circulavam clandestinamente em Portugal, destacam-se O
Correio Brasiliense, precursor dos chamados “jornais de Londres”
e um dos mais importantes, publicado de Junho de 1808 a Julho de 1822, O
Investigador Português, periódico influente entre os exilados em
Londres e elites portuguesas, sendo inclusive lido em Trás-os-Montes, O
Portuguêz e O Patriota […]
Na complexa realidade de Portugal à época, para a qual a
resposta política encontrada foi a da criação em 1815, pelo então príncipe
regente D. João de Bragança (futuro Rei D. João VI), do “Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves”, com capital no Rio de Janeiro, numa tentativa
fruste de remodelação do império português em desagregação, mantinha-se uma grande
instabilidade política, fazia-se sentir a insatisfação de certos interesses corporativos
face à influência privilegiada dos britânicos, bem como o descontentamento de
sectores sociais, económicos e mercantis (mormente negociantes ingleses cujos
interesses colidiam com os privilégios da Companhia Geral da Agricultura das
Vinhas do Alto Douro, cuja extinção defendiam).
Esta atmosfera político-económica e social foi registando
progressiva expressão pública na imprensa portuguesa em Londres, designadamente
em O
Investigador Portuguez em Inglaterra, ou Jornal Literário, Político, &.,
periódico dirigido desde 1814 pelo jornalista liberal maçónico, exilado em
Inglaterra, José Liberato Freire de Carvalho,
que aí polemizou, a propósito da Conspiração Gomes Freire, com “Frei Mateus de Assunção Brandão cuja obra fazia defesa acérrima do
absolutismo”.
Nesse cenário de um Portugal velho de Antigo Regime em crise
e processo de transição para o Portugal Liberal, teve lugar em Lisboa, em
1817, a chamada “Conspiração de Gomes Freire de Andrade”, afloramento
desses conflitos do poder político cujo desenlace trágico se traduziu na
“primeira manifestação violenta da contra-revolução“ (M.H. Pereira, 2018: 219).
Este acontecimento político-militar, na sua dupla face de instrumento do poder
vigente e propulsor da memória liberal, fundador do constitucionalismo oitocentista,
prenunciou a Revolução de 1820 que instituiu o regime constitucional
português, quando nobres e burgueses, civis e militares, exigiram o regresso do
rei e expulsaram Beresford e os comandos militares ingleses.
De 1816 a 1820, a situação geral do reino degradara-se e o
relacionamento na metrópole entre os governantes portugueses e a autoridade
investida de Beresford atingira o seu ponto crítico. Germinavam por outro lado,
anseios de “Regeneração”, o que poderia significar o confronto entre
o “partido da França” e o “partido da Inglaterra” e a luta
entre três correntes: conservadores; liberais favoráveis a reformas por
“graça” de um soberano dador outorgante de liberdades; partidários românticos
de uma radical “regeneração”, ideia que andava no pensamento dos liberais
portugueses e se expandia nesses anos.
Em 1817, a “Conspiração” de Gomes
Freire de Andrade, alegadamente encabeçada por Gomes Freire, venerável
da loja maçónica dita “Regeneração” e pelo organismo secreto “Conselho
Supremo Regenerador de Portugal, Brasil e Algarves”, foi evidente manifestação,
com desenlace trágico, desses conflitos e confrontos (ibidem). Conhecem-se as reacções e os debates que desde logo a
envolveram, designadamente pelos periódicos da época publicados em Inglaterra, como
O
Investigador Portuguez, que assim começou por se lhe referir: “Reino de Portugal. Demos principio neste N.º
á publicação da Sentença e Acordaons proferidos contra os reos de alta traiçaõ,
justiçados em Lisboa no memorável dia de I8 de Outubro, de 1817. Este facto hé
importantíssimo, e deve formar uma grande epocha na interessante historia de
Portugal desde os fins de 1807 até nossos dias; e por isso merece ficar
perpetuado em todos os escriptos do tempo.”
Tratou-se de um intrincado processo político violentamente
repressivo levado a cabo contra duas dezenas de militares e civis liberais,
suspeitos conjurados e focado na figura de Gomes
Freire que “visou a desarticulação de um movimento liberal, essencialmente
militar, centrado na capital, com ramificações no Porto e outras zonas do país”
(M.H. Pereira, 2018:149-150).
Tal acontecimento, “decorridos apenas três anos, vai ocupar um
lugar destacado na construção da memória do novo regime liberal em Portugal”, vindo
a configurar um acontecimento histórico nacional “fundador do liberalismo
oitocentista” (M.H. Pereira, 2018:149-150) de grande significado e repercussão
prolongada. Após a fase apologética do período vintista, a construção dessa
memória consolidou-se com a “estabilização da monarquia constitucional e
atravessou o século XIX, sendo retomada pela República no primeiro centenário, em
1917” (ibidem).
Pela Liberdade! No dealbar da Revolução de 1820 – por Maria
Otilia Pereira Lage, jornal Público, 18 de Agosto de 2020, pp. 34/35 – com sublinhados
nossos.
J.M.M.
Sem comentários:
Enviar um comentário