quinta-feira, 20 de agosto de 2020

PELA LIBERDADE! NO DEALBAR DA REVOLUÇÃO DE 1820



Pela Liberdade! No dealbar da Revolução de 1820” [Extracto] – por Maria Otilia Pereira Lage, in Público, 18 de Agosto de 2020
[…] 1. Quais os antecedentes da Revolução de 1820?
Estruturalmente, Portugal ocupava já no sistema-mundo capitalista e na economia-mundo europeia um lugar semiperiférico em que se reflectiam as disputas interestaduais pelo domínio e posição hegemónica. A França e a Inglaterra, lutando entre si pela supremacia, desde 1682 a 1815, procuraram afastar das redes comerciais mundiais os países que sucessivamente as dominaram: Portugal, Espanha e Holanda, alterando a geografia política do comércio mundial, radicalmente reestruturada. Do conflito social generalizado nas lutas pelo poder resultou, no século XVIII, o abalo das revoluções americana e francesa e o caos do sistema políticosocial do Antigo Regime, só se encontrando novo equilíbrio, mais tarde, com o Tratado de Viena (1815) que marcou, ao tempo, um período de paz na Europa. A hegemonia passará a ser do imperialismo britânico de livre comércio, todo o sistema interestados será reorganizado e uma única potência, a inglesa, passaria a dominar quase todo o mundo.

Entrecruzava-se nessa estrutura uma adversa conjuntura político-económica nacional e internacional de Portugal, marcada pelo impacto das três invasões napoleónicas (1807-1810), tendo-se verificado em 1808, a fuga da família real e da corte, de Lisboa para o Rio de Janeiro, enquanto as forças britânicas comandadas pelo duque de Wellington aqui desembarcaram para conduzir militarmente a resistência contra os invasores franceses até à sua expulsão definitiva e derrota da política imperial francesa na Península Ibérica. Outros factores agudizavam as contradições e conflitos internos do país agravando as dificuldades financeiras do Estado: ameaça de perda dos mercados brasileiros, gastos e prejuízos da Guerra Peninsular (1808-1814), uma quase imobilidade produtiva do país, aliada à persistente presença e manutenção entre nós do Exército britânico.
Após a expulsão das tropas francesas de Portugal (1812-1813), a conjuntura política portuguesa continuava marcada por grande fragilidade devido à dependência e pressões externas, contradições e dissensões internas de ordem governativa, e factores adversos, de ordem económico-financeira, militar, jurídica e social. Eram múltiplos e de diversa natureza os condicionalismos existentes: permanência da corte no Rio de Janeiro, indesejada na metrópole, relegada a estatuto subalterno; comando militar do Exército português a cargo do marechal britânico Beresford; despesas com as tropas nacionais financiadas pela potência aliada; implicações do cumprimento obrigatório das cláusulas dos tratados de Comércio e Amizade de 1810, favoráveis a Inglaterra; frustração dos interesses portugueses nas negociações do Congresso de Viena (1815).

Tudo isso e a constante interferência britânica na política governativa do Reino, tornava a Regência luso-britânica em Lisboa incapaz de tomar decisões em matérias fulcrais, dado o seu poder limitado nas esferas política, financeira, militar e judicial, e a dependência quer das orientações do príncipe regente e do Governo instalados no Rio de Janeiro, quer das obrigatórias consultas aos agentes políticos e diplomáticos britânicos. O facto sui generis de Portugal estar a ser governado por uma regência dual constituída por Beresford e pelos governadores nomeados em Lisboa espartilhava o poder político, mantendo-o instável e enredado em contradições, sob os olhares complacentes da corte sediada no Rio. A polarização destes poderes paralelos afectava os seus interesses pecuniários, influía nas questões financeiras e impedia o desenvolvimento do país com urgência de grandes mudanças.
 
2. Que papel tiveram as sociedades secretas e a imprensa liberal no exílio londrino?
A conturbada e contraditória atmosfera político-económica e sociocultural da época, marcada por férrea censura repressiva e ausência de expressão pública e de liberdade de imprensa em Portugal eram debatidas nas sociedades secretas que conspiravam em prol do constitucionalismo e se encontravam já em formação na Península Ibérica depois da Guerra Peninsular. Desde 1808-09 que emergiam na Península Ibérica tendências liberais, que em Espanha irão desembocar na Constituição de Cádis que viria depois influenciar a nossa Constituição vintista e, em Portugal, em 1808, se traduziram numa “súplica” redigida por um grupo de notáveis da cidade de Lisboa que pedia “uma constituição e um rei constitucional”.

Entretanto, “o desmantelamento sofrido pela instituição maçónica, devido às perseguições dos anos 1809, 1810 e 1811, não lhe permite já desempenhar qualquer papel, quer como veículo ideológico, quer como congregação de forças. […] Fácil se torna agora à facção jacobina apoderar-se dos comandos da ordem maçónica. É então que a maçonaria muda em Portugal, trocando, para sempre, a bandeira da Inglaterra pela bandeira da França.” (Dias, 1980: 402). A partir de 1812, a maçonaria reorganizou-se, embora a reacção antimaçónica não tivesse abandonado a sua propaganda em panfletos e outras publicações, sucedendo-se deportações e perseguições que levaram muitos maçons a emigrar para Inglaterra.
De 1813 a 1815, os trabalhos maçónicos foram reincentivados, alguns deportados e exilados regressaram, fundaram-se outras lojas e tentou-se reorganizar o Grande Oriente Lusitano. Mas esse empenho maçónico partilhando ideais iluministas e jacobinos da Revolução Francesa, viu-se comprometido pelas agitações políticas de 1817 no Brasil, com a revolta republicana de Pernambuco e, em Portugal, com a designada conspiração de Gomes Freire de Andrade, cuja repressão feroz acabaria por levar à proibição de todas as sociedades secretas declaradas criminosas por alvará real de 30 de Março de 1818, de D. João VI.

No contexto europeu do combate entre as forças pró-revolução e contra– revolucionárias, teve grande influência no alastrar das ideias liberais e pró- constitucionais a imprensa portuguesa londrina resultante da primeira vaga de exilados liberais. Entre os periódicos em língua portuguesa editados em Londres mas que circulavam clandestinamente em Portugal, destacam-se O Correio Brasiliense, precursor dos chamados “jornais de Londres” e um dos mais importantes, publicado de Junho de 1808 a Julho de 1822, O Investigador Português, periódico influente entre os exilados em Londres e elites portuguesas, sendo inclusive lido em Trás-os-Montes, O Portuguêz e O Patriota […]
 
3. Em que consistiu a “Conspiração de Gomes Freire de Andrade”?

Na complexa realidade de Portugal à época, para a qual a resposta política encontrada foi a da criação em 1815, pelo então príncipe regente D. João de Bragança (futuro Rei D. João VI), do “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”, com capital no Rio de Janeiro, numa tentativa fruste de remodelação do império português em desagregação, mantinha-se uma grande instabilidade política, fazia-se sentir a insatisfação de certos interesses corporativos face à influência privilegiada dos britânicos, bem como o descontentamento de sectores sociais, económicos e mercantis (mormente negociantes ingleses cujos interesses colidiam com os privilégios da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, cuja extinção defendiam).
Esta atmosfera político-económica e social foi registando progressiva expressão pública na imprensa portuguesa em Londres, designadamente em O Investigador Portuguez em Inglaterra, ou Jornal Literário, Político, &., periódico dirigido desde 1814 pelo jornalista liberal maçónico, exilado em Inglaterra, José Liberato Freire de Carvalho, que aí polemizou, a propósito da Conspiração Gomes Freire, com “Frei Mateus de Assunção Brandão cuja obra fazia defesa acérrima do absolutismo”.

Nesse cenário de um Portugal velho de Antigo Regime em crise e processo de transição para o Portugal Liberal, teve lugar em Lisboa, em 1817, a chamada “Conspiração de Gomes Freire de Andrade”, afloramento desses conflitos do poder político cujo desenlace trágico se traduziu na “primeira manifestação violenta da contra-revolução“ (M.H. Pereira, 2018: 219). Este acontecimento político-militar, na sua dupla face de instrumento do poder vigente e propulsor da memória liberal, fundador do constitucionalismo oitocentista, prenunciou a Revolução de 1820 que instituiu o regime constitucional português, quando nobres e burgueses, civis e militares, exigiram o regresso do rei e expulsaram Beresford e os comandos militares ingleses.
De 1816 a 1820, a situação geral do reino degradara-se e o relacionamento na metrópole entre os governantes portugueses e a autoridade investida de Beresford atingira o seu ponto crítico. Germinavam por outro lado, anseios de “Regeneração”, o que poderia significar o confronto entre o “partido da França” e o “partido da Inglaterra” e a luta entre três correntes: conservadores; liberais favoráveis a reformas por “graça” de um soberano dador outorgante de liberdades; partidários românticos de uma radical “regeneração”, ideia que andava no pensamento dos liberais portugueses e se expandia nesses anos.

Em 1817, a “Conspiração” de Gomes Freire de Andrade, alegadamente encabeçada por Gomes Freire, venerável da loja maçónica dita “Regeneração” e pelo organismo secreto “Conselho Supremo Regenerador de Portugal, Brasil e Algarves”, foi evidente manifestação, com desenlace trágico, desses conflitos e confrontos (ibidem). Conhecem-se as reacções e os debates que desde logo a envolveram, designadamente pelos periódicos da época publicados em Inglaterra, como O Investigador Portuguez, que assim começou por se lhe referir: “Reino de Portugal. Demos principio neste N.º á publicação da Sentença e Acordaons proferidos contra os reos de alta traiçaõ, justiçados em Lisboa no memorável dia de I8 de Outubro, de 1817. Este facto hé importantíssimo, e deve formar uma grande epocha na interessante historia de Portugal desde os fins de 1807 até nossos dias; e por isso merece ficar perpetuado em todos os escriptos do tempo.”
Tratou-se de um intrincado processo político violentamente repressivo levado a cabo contra duas dezenas de militares e civis liberais, suspeitos conjurados e focado na figura de Gomes Freire que “visou a desarticulação de um movimento liberal, essencialmente militar, centrado na capital, com ramificações no Porto e outras zonas do país” (M.H. Pereira, 2018:149-150).

Tal acontecimento, “decorridos apenas três anos, vai ocupar um lugar destacado na construção da memória do novo regime liberal em Portugal”, vindo a configurar um acontecimento histórico nacional “fundador do liberalismo oitocentista” (M.H. Pereira, 2018:149-150) de grande significado e repercussão prolongada. Após a fase apologética do período vintista, a construção dessa memória consolidou-se com a “estabilização da monarquia constitucional e atravessou o século XIX, sendo retomada pela República no primeiro centenário, em 1917” (ibidem).
Pela Liberdade! No dealbar da Revolução de 1820 – por Maria Otilia Pereira Lage, jornal Público, 18 de Agosto de 2020, pp. 34/35 – com sublinhados nossos.

J.M.M.

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