Antero de Quental (1889) por Columbano
“Antero, as horas do fim" – por
António Valdemar, in Diário dos Açores, 11 de Setembro de 2020
“O contacto directo com a
realidade levou-o a conhecer a vulnerabilidade da natureza humana. A inveja que
morde, o ódio que envenena. O país real, por fora e por dentro: egoísmos
ferozes, privilégios inexplicáveis. A impunidade absoluta. Os inúteis
disfarces. A falta de vergonha. Manifestou as preocupações que o levavam a
concluir que a crise era moral”
O vento revolve os plátanos e estremece as araucárias. A cidade
começa a ficar mais húmida, as ruas mais vazias, acentua-se o peso das horas
mortas, antecipando as noites intermináveis, repletas de fantasmas. A memória
recusa a paz do esquecimento. Ponta Delgada despede-se do Verão e
mergulha numa tarde baça, cor de zinco, cor de chumbo. Antero debate-se com atritos familiares. Debate-se com o tédio de
viver e a incapacidade de ser feliz. Debate-se com a situação do País, em face
do Ultimatum
inglês. Debate-se com a derrota da revolução republicana do 31 de Janeiro. Debate-se,
ainda, com o falhanço da Junta Patriótica do Norte, que
surgiu para encontrar soluções e mobilizar vontades, perante a crise.
Entregaram a presidência a Antero, mas nada pode realizar, enquanto assistia á
debandada dos que a constituíram.
Desistiu dos combates políticos e sociais. Da urgência de
questionar as estruturas institucionais do regime, definir outras diretrizes,
proceder a uma reforma do Estado e da Administração Pública. Incentivar o acesso
à Europa e – sempre este objetivo enunciado na inauguração das Conferências
Democráticas do Casino - permitir a abertura de Portugal ao mundo. Para
formar o jovem e o cidadão. Pensar e intervir de forma ativa e responsável.
O contacto directo com a realidade levou-o a conhecer a vulnerabilidade
da natureza humana. A inveja que morde, o ódio que envenena. O país real, por
fora e por dentro: egoísmos ferozes, privilégios inexplicáveis. A impunidade absoluta.
Os inúteis disfarces. A falta de vergonha. Manifestou as preocupações que o
levavam a concluir que a crise era moral: «o
que se passou» - comentava, numa carta, a um amigo íntimo - «é a prova mais cabal do estado de prostração
do espírito público, entre nós. Berrou-se muito e, afinal, chegaram as
eleições, e toda a gente, movido cada qual por mesquinhos interesses, votou nos
candidatos do Governo. Governo apoiado pela Inglaterra e que, nessa ocasião, estava
lançando a polícia sobre os que faziam manifestações patrióticas».
Refugiou-se, outra vez, em São Miguel. Talvez encontrasse a
desejável tranquilidade. Mas a inquietação e a dúvida não cessavam: «E quando o pensamento, assim absorto, /emerge
a custo desse mundo morto/e torna a olhar as coisas naturais: /à bela luz da
vida, ampla, infinita /só vê com tédio em tudo quanto fita/a ilusão e o vazio
universais». Os seus olhos penetram quem os olha. Escreveu no poema para o In Memoriam de Zara, jovem irmã de um amigo:
tudo é leve como a sombra sobre a água.
Busca o invisível no visível. Multiplicam-se as perplexidades: «tropeço, em sombras, na matéria dura /e
encontro a imperfeição de quanto existe».
De rua em rua, concentro-me e revisito lugares da infância e
adolescência, casas de amigos. Uns vivos. Outros mortos. «Aqueles que eu amei, onde estão? Idos, dispersos, / arrastados no giro
dos tufões, / levados, como em sonho, entre visões, /na fuga, no ruir dos
universos». Perdura ainda o essencial da malha urbana e surpreendo os
últimos passos de Antero na antiga
cidade: «as nuvens parecem fantásticas
ruínas /ao longe no horizonte amontoadas». A respiração do mar provoca uma
latente e contínua ansiedade. Tudo se converte em cinza de vida ardida.
Oliveira
Martins, com as informações de amigos comuns,
afirmava a propósito do suicídio de Antero,
numa carta a Eça de Queiroz: «cedeu por fim à tentação constitucional da
sua vida. Morrer era-lhe uma obsessão. Matou-o principalmente o clima enervante
de São Miguel, que estonteia o mais fleumático (…) Matou-o a sua imaginação
exacerbada pelo capacete de ozone da ilha».
Setembro morno e abafado. Antero
resumia sucessivos percursos: “pó e
cinzas onde houve flor e encantos /e noite onde foi luz de primavera. /Olha a
teus pés o mundo e desespera, /semeador de sombras e quebrantos». Que ficou,
afinal, e que valha a pena? «Daquela
primavera venturosa, /não resta uma flor só, uma só rosa. /Tudo o vento varreu,
queimou o gelo.” As interrogações esmagavam-no. E insistia: «Pura essência das lágrimas que choro /e
sonho dos meus sonhos! Se és verdade / descobre-te, visão, no céu ao menos!»
Exausto. Dor e pavor. E apenas: «silêncio,
escuridão e nada mais».
Os passos de Antero aproximam-se
do Campo de São Francisco. Ao fundo o mar e o Castelo: «junto do mar, que erguia gravemente /a trágica voz rouca, enquanto o
vento /passava como o voo do pensamento /que busca e hesita, inquieto e
intermitente /junto do mar sentei-me tristemente, /olhando o céu pesado e
nevoento, /e interroguei, cismando, esse lamento /que saía das coisas vagamente
… /que inquieto desejo vos tortura, /seres elementares, força obscura? /em volta
de que ideia gravitais?/ mas na imensa extensão, onde se esconde o Inconsciente
imortal, só me responde, /um bramido, um queixume, e nada mais…»
Foi na tarde de 11 de
Setembro de 1891.Tinha 49 anos. Estava desiludido. Traumatizado. Num acto
de angústia e desespero, Antero
decidiu o trágico encontro com a morte. Nua e crua. A escorrer sangue. Fora de
casa.
Antero, as horas do fim – por António Valdemar [Jornalista e
investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], Diário dos Açores, 11 de Setembro 2020, p. 7
– com sublinhados nossos.
J.M.M.
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