O leilão realizado em Lisboa com numerosos manuscritos de Herculano, juntamente com outros
manuscritos de figuras literárias e políticas de renome permite uma revisão de
obras publicadas de Herculano;
esclarece alguns aspetos da sua intervenção literária e política; dá
oportunidade para retificar o que se sabe acerca da permanência nos Açores; e, porventura,
revela, fatos desconhecidos da vida familiar, nos últimos dez anos, em Vale de
Lobos.
Mas, para já, convém salientar algumas questões: este leilão põe
termo ao mistério e ao silêncio a propósito da real existência e da
identificação da propriedade de manuscritos de Herculano, na posse de herdeiros; não se trata de um manancial de
inéditos pois, em diversas circunstâncias houve a divulgação de parte do
espólio.
A correspondência com personalidades de renome não significa que
todas as cartas tivessem sido dirigidas a Herculano.
Teve, sem dúvida relações com algumas ou muitas, mas com outras não é provável
que tivesse tido relações. A informação da casa leiloeira cita, por exemplo, Manuel Fernandes Tomaz. Ora quando
faleceu, em 1822, Herculano tinha 12
anos.
Finalmente, a Câmara de Santarém arrematou o conjunto por trinta
mil euros. Reuniram – se condições para se constituir, em Santarém, um Centro de Estudos Herculanianos.
Todavia, a Biblioteca Nacional nos termos estabelecidos pela lei, poderá exerceu
o direito de preferência.
Herculano é
uma personalidade emblemática de historiador, de escritor e de cidadão, cuja
vida e obra permanecem, sobretudo, ligadas a Lisboa e a Santarém. Senão vejamos:
em Lisboa nasceu, num dos velhos pátios da cidade, o Pátio do Gil, na rua de
São Bento, mesmo defronte da casa de Amália
Rodrigues e hoje reduzido a um improvisado parque de automóveis. Estudou
nas Necessidades, no Colégio dos Oratorianos, a ordem
religiosa escolhida pelo Marques de
Pombal, a fim de preencher as lacunas no ensino resultantes da expulsão dos
Jesuítas. Recebeu dos Oratorianos um lastro de cultura clássica. Em Lisboa
frequentou a aula de diplomática na Torre do Tombo e a Academia
de Marinha para aprender Matemática. Depositou na Torre do Tombo
documentação fundamental para sistematizar, a parte inicial do Portugaliae
Monumenta Historica que lhe foi solicitado pela Academia das Ciências; e
para elaborar a História de Portugal que desencadeou uma das mais ruidosas
polémicas com a igreja, por não admitir o Milagre de Ourique. Esteve á frente
da revista Panorama que definiu a defesa e a valorização do património
edificado e do património imóvel. Em Lisboa dirigiu a Biblioteca da Ajuda e
enquanto ali residiu estimulou a formação intelectual e cívica de D. Pedro V; e manteve uma tertúlia com
os seus mais notáveis contemporâneos. Tudo isto ficou pormenorizado nas Memórias
de Bulhão Pato.
Herculano tem
fortes vínculos com o Açores e alguns açorianos. Exilado político em França
e na Inglaterra, dirigiu - se para os Açores; primeiro, para o Ilha Terceira
depois para São Miguel. Incorporou – se na expedição que embarcou, sob o
comando de D. Pedro, para o Cerco do
Porto a fim de derrubar as forças miguelistas. Ernesto do Canto no Arquivo dos Açores revelou fatos e
publicou elementos da maior importância. Entre outros historiadores e críticos Vitorino Nemésio, em pesquisas nos
manuscritos agora leiloados, completou muita informação para reconstituir a
história do exilio para a instauração do liberalismo.
A relação de Herculano
com Santarém tornou - se outra referência obrigatória. Comprou em Azoia de
Baixo a Quinta de Vale de Lobos. Os dez anos em Vale de Lobos (1867/
1877) e que coincidiram com o casamento de Herculano
com Mariana Meira não se resumiram
ao interesse pela agricultura e à produção de azeite, em circunstâncias que se
ignoravam e passaram a ser utilizadas. A tranquilidade de Vale de Lobos foi
interrompida com visitas de amigos, de discípulos e de figuras como Madame Ratazi e o Imperador do Brasil.
Era, contudo, o ambiente propício para se concentrar, refletir e
escrever. Em Vale de Lobos, por exemplo, manifestou o apoio às Conferências
Democráticas do Casino e o protesto em face do encerramento pelo
Governo do Duque de Avila. Se amplitude da obra de Herculano foi analisada por Joaquim
Veríssimo Serrão, os vínculos de Herculano a Santarém foram examinados,
contextualizados e divulgados por Virgílio
Arruda.
Um dos grandes conhecedores de Herculano, Vitorino Nemésio apresentou, em 1935,
para as provas de doutoramento na Faculdade de Letras de Lisboa uma tese
inovadora sobre Herculano. Um ano antes publicara Cenas de um ano da minha vida.
Mais tarde compilou e anotou As Cartas de Vale de Lobos ao Duque de
Palmela e a João Cândido dos Santos.
Herdeiros
do espólio
Num prefácio escrito, em 1933, Vitorino Nemésio incluiu «palavras de vénia» a David Lopes a
quem se deviam «algumas das mais sólidas páginas de estudos herculanianos» e por ter indigitado Nemésio, aos editores da Bertrand, «para o substituir na
«vigilância das obras do Mestre». Outras
«palavras de vénia», de agradecimento pelas oportunidades concedidas, abrangeram o coronel Herculano Galhardo, «sobrinho de
Alexandre Herculano e um dos
herdeiros do seu espólio».
Esta citação, há quase 90 anos, desvendou a origem e a
propriedade dos manuscritos
leiloados, pois não existiam filhos do casamento de Herculano com Mariana Meira. Havia sobrinhos. A irmã mais velha de Herculano, Maria da Assunção casara com Eduardo Galhardo. Nos anos 60, Vitorino Nemésio voltou a contatar a
família. Procurou José Galhardo, na
antiga sede da Sociedade de Autores, para ter acesso ao espólio. Apesar do
apoio de um amigo comum Luís de Oliveira Guimarães - tive o
privilégio de assistir ao diálogo -
os resultados foram infrutíferos. Qual a justificação? A publicação era suscetível de provocar
«melindres familiares». Após a morte de
José Galhardo, e quando se
aproximava – se o centenário da morte de
Herculano e Nemésio presidia às
comemorações nacionais, fez outra diligencia junto da advogada Maria
José Galhardo. Também foi cordialmente
infrutífera.
Memória da açoreanidade
Decorridos mais de 40 anos os manuscritos – mas … foram,
agora, leiloados todos os documentos que os herdeiros possuíam? -já podem
ser consultados. E a correspondência
- integral e completa - com Mariana
Meira com quem Herculano só
viria a casar tinha, então, 57 anos, a 1 de Maio de 1867? É evidente que não se trata de um manancial de inéditos. Nem
vão alterar a visão de conjunto
registada pela história e a crítica.
A permanência de Herculano nos Açores não foi extensa. Apenas
cerca de cem dias e associada a
momentos decisivos da história política. Perdura, no entanto, em muitas páginas da sua obra. Mas de todas as memórias ficou uma referência no poema Tristezas
do Desterro «Eu já vi numa ilha arremessada/às
solidões do mar, entre dois mundos/ vestígios de vulcões que hão sido extintos/ em não sabidos
séculos» (…) Pedras que em parte amarelece
o enxofre, /que a lava em rios dispersou, deixando/ só dele a cor em lascas arrancadas/das entranhas dos montes
penhascosos.»
Viveu, sentiu e evocou alguns dos traços fundamentais da
essência da açoreanidade.
Herculano,
os Açores e os Açorianos – por António Valdemar [jornalista e investigador, membro da
Classe de Letras da Academia das Ciências], in Diário dos Açores, 6 de Junho
de 2021, p.14 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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