Cesariny,
por ele próprio – por António Valdemar, in Expresso revista
Frontalidade provocatória para desmontar mitos consagrados, declarações polémicas acerca de poetas e escritores, repressão policial durante 30 anos por ser homossexual e, finalmente, atribuição da Grã-Cruz da Ordem da Liberdade
Reencontramos Cesariny:
a limpidez do olhar, a clareza da voz e a atitude descomprometida. Trazia para
os cafés e para o encontro ocasional nas ruas a provocação imediata, como “a
forma de escapar, pelo humor, a uma seriedade hipócrita”, escreveu Perfecto E. Cuadrado, um dos principais
estudiosos de Mário Cesariny, na
introdução dos textos dispersos “Uma Última Pergunta — Entrevistas com Mário
Cesariny” — que pode ser associado a outro livro não muito anterior, “Sinal
Respiratório — Cartas para Sérgio Lima”, de correspondência com o escritor
e pintor surrealista brasileiro.
Ambos permitem a aproximação com o poeta, o artista plástico e o
comportamento humano de Mário Cesariny
(1923-2006), que nos surpreendia com a lucidez e a mordacidade para desmontar a
construção institucional dos mitos e das consagrações oficiais. Estes dois
livros vieram completar outras recolhas: “Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro
Seixas”; “Um Sol Esplendente nas Coisas — Cartas de Mário Cesariny para
Alberto de Lacerda”; “Cartas para a Casa de Pascoaes”; e “Gatos
Comunicantes”, correspondência entre Vieira
da Silva e Mário Cesariny.
A organização das entrevistas, a cargo de Laura Mateus Fonseca, obedeceu a duas linhas: a do texto e a das imagens.
Transcreve as entrevistas segundo uma ordem cronológica, acompanhadas dos
respetivos recortes de jornais. As cartas para Sérgio Lima — outro manancial de
informações autobiográficas — tiveram apresentação, edição e posfácio de Perfecto E. Cuadrado. Podemos seguir a evolução
de Cesariny em Lisboa: as calorosas
adesões e as ruturas bruscas e irredutíveis. Ainda não tinha 20 anos e era
aluno da Escola António Arroio quando ingressou nas tertúlias nos cafés.
Começou no café Hermínios, na Almirante Reis. Prosseguiu no café
Royal, no Cais do Sodré, na Brasileira do Chiado e, finalmente,
no café
Gelo, no Rossio.
Marcaram o debate e o lançamento de projetos literários e
artísticos. A revelação pública ocorreu em 1948 e coincidiu com o centenário do
nascimento de Gomes Leal. Dos anos
40 aos anos 60, Cesariny demarcou-se,
ostensivamente, do neorrealismo para se dedicar à intervenção no movimento
surrealista. Permanece nos seus livros de poesia, fortemente
autobiográficos: “Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos”, “Discurso
sobre a Reabilitação do Real Quotidiano”, “Manual de Prestidigitação”,
“Pena Capital”, “Titânia” ou “A Cidade Queimada”.
Os momentos mais significativos da poesia de Cesariny encontram-se nestes livros. Já
as entrevistas e as cartas recuperaram juízos críticos e retratos de vidas
feitas de cumplicidades, de intrigas, de invejas e de ódios. Vidas falhadas e
vidas destroçadas ou vidas interrompidas pela morte, no auge da criação. Basta lembrar
António Maria Lisboa.
APROXIMAÇÕES
E RUTURAS
A posição de Cesariny
fica documentada: “O surrealismo”, afirmou, “foi um convite à poesia,
ao amor, à liberdade, à imaginação pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo,
o simbolismo, o futurismo, as tradições libertárias e outras correntes, e deu-lhes
um sentido. Esse sentido não vai desaparecer, ficou explícito.” Esclarecia,
contudo, que “depois dos 50 anos de idade já ninguém é surrealista, nem
mesmo o movimento surrealista. Para que a semente germine, volte a ser futuro, terá
de separar-se, baixar à terra. Será sem dúvida um trabalho de séculos — moroso,
lento — ou terrivelmente rápido, fulgurante”. E acrescentava: “Antes,
foi a liberdade coletiva roubada, agora é a nudez aflitiva que à direita e à
esquerda quer aparecer vestida.”
A propósito dos vínculos entre a poesia e a pintura era
categórico: “Escrevo desde 1942. A febre durou 12 anos. No fundo, escreve-se
sempre o mesmo verso. Escrever poesia é uma espécie de invocação. Mas não se
pode estar toda a vida a invocar o mesmo santo, sobretudo se ele não aparece.
Assim sendo, não rezo mais. (...) A pintura parece não bulir tanto connosco. É
a imagem à mesma, mas parece exterior. É um trabalho de mediação em que parece
não se estar implicado.”
Cesariny
nunca escondeu o que o afastava de André
Breton, “o papa”, e a sua preferência por Artaud: “O Breton é o fim de qualquer coisa. O Artaud é um
começo. O Breton levou as coisas até um limite que parece final. O Artaud vai
além disso, foi buscar outras civilizações, uma antilinguagem. Gosto mais
do Artaud, que decidiu viver o seu drama como tragédia cósmica.”
PASCOAES
E PESSOA
E quais os poetas portugueses que admirava? Podemos sintetizar: Camões era uma citação óbvia, apesar de
“ter engravatado a língua”. Colocava depois Bocage, mas fazendo questão de acentuar que nas “Cartas de Olinda
e Alzira” foi “muito mais importante do que todas as ferrabrazices do
Marques de Sade”. Incluía Antero,
Gomes Leal e Cesário Verde entre os seus poetas maiores. Houve, ao descobrir Pascoaes, um tal deslumbramento que o
levava a afirmar que “é maior do que Pessoa”;
“Pascoaes é um poeta cósmico, que vai além de todos os limites, espaciais e lunares,
e o Pessoa é um poeta que não sai da mesa do café.”
A geração do Orpheu, na altura em que Cesariny despertou para a literatura, era ainda mal conhecida. Cesariny passou a considerar Sá Carneiro “mais poeta por dentro e
por fora do que o Pessoa dos
múltiplos”. Ao falar acerca da obra ortónima e heterónima de Pessoa, declarou frontalmente: “A
problemática do Pessoa é aldrabice da mais chilra, filosofia da instrução
primária. Ele arranjou umas antinomias que não funcionam. O ‘ser tu sendo eu’
não há, não é problema para ninguém, aforismo pseudopsicológico e pseudofilosófico
que ele transportou numa dilemática, com um talento literário muito grande.”
Ou, então, “Fernando Pessoa,
no fundo, é o antipoeta por excelência. Ele é um puro racionalista, a não ser quando
se exalta e assina Álvaro de Campos”. Procurava, às vezes, justificar que não
era contra Pessoa, mas “contra a catedral em que se transformou e que até já dá
bolsas de estudo”.
POETAS
CONTEMPORÂNEOS
Cesariny
destacava, em relação aos contemporâneos, António
Maria Lisboa, “um importantíssimo poeta de linguagem europeia — e
antieuropeia — demandando outras margens de onde só mais um se avista Rimbaud”. Admirava a autenticidade de Sophia de Melo Breyner. Irritava-se com
“a poesia lamento, o Régio que
gritava e doía–lhe tudo”. Enaltecia José
Sebag, “poeta de uma poesia fulgurante, que publicou um só livro e
desapareceu do mapa”. Punha reticências a Herberto
Helder, incluído “na lista negra-azul que o tempo areja”, celebrado “nos anos
cinquenta e oito, sessentas” devido a “um pendor lírico tipo Cântico
dos Cânticos, servido por suma jeitaça para metáfora-uma-atrás-da-outra-é-um-nunca-acabar.
Que fazer?”
Cortou relações com Alexandre
O’Neill, um dos companheiros das primeiras horas; manteve um conflito
latente com Jorge de Sena e, sobretudo,
uma aversão visceral a José-Augusto
França. Replicava as picardias de Luiz
Pacheco e devolvia as perversidades de Cruzeiro
Seixas.
A
CONSAGRAÇÃO OFICIAL
As entrevistas e as cartas de Cesariny revelam a inovação que introduziu na poesia, o arrojo da
linguagem e, simultaneamente, a insubmissão e a virulência cáustica perante os
convencionalismos sociais, a mediocridade cultural e os totalitarismos
políticos. Até ao fim da vida, mesmo depois dos 80 anos, foi um provocador
inveterado. Com razão ou sem razão. Sem temer qualquer controvérsia.
Acusado de homossexualidade, suportou, até ao 25 de Abril, a repressão sistemática da Polícia Judiciária, “uma filial da PIDE”, e a intimidação, o terror e as ameaças do Tribunal de Execução de Penas. Menciona os nomes de juízes para memória futura. E pormenorizou que “tinha inscrito, na ficha da polícia, ‘suspeito de vagabundagem’.
“Durante 30 anos ‘suspeito’! Podiam investigar e tirar conclusões, não? Primeiro, ia lá todos os meses, como as putas. Depois, de três em três meses; depois, de seis em seis, e, por fim, o que eles quisessem, podia ser até à minha morte. Tinha medo de ir ao telefone, ao correio. Ao princípio ainda me ria para dentro, mas começou a tornar –se insuportável”. Os enxovalhos que sofreu deixaram feridas profundas. Fora sujeito à execração pública. Recebeu, contudo, as homenagens de dois Presidentes da República: Mário Soares integrou-o nos convidados de viagens de Estado ao estrangeiro; Jorge Sampaio atribuiu-lhe o mais elevado grau das condecorações honoríficas, a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Mario Cesariny já era, há muito, consagrado como artista e, sobretudo, como um dos maiores poetas do seu tempo e da sua geração. Faltava este reconhecimento. E que Cesariny não recusou.
Cesariny, por ele próprio – por António Valdemar [jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], in E revista do Expresso, 20 de Agosto de 2021, p.58-59 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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