sábado, 11 de setembro de 2021

SIM! AURÉLIO QUINTANILHA (1892-1987) FOI ANARQUISTA

 


Uma das figuras cimeiras do movimento intelectual libertário português foi o sábio cientista Aurélio Quintanilha (1892-1987). A filiação de Quintanilha na corrente anarquista é por demais conhecida, não podendo ser desautorizada nem omitida, como foi o caso que iremos citar.

Acontece que Aurélio Quintanilha foi na página do Facebook dos Antifascistas da Resistência muito biograficamente maltratado: omissão total da sua condição de anarquista. E, pasme-se, a resposta dada pelo impressionado administrador da página a um leitor que lhe autopsiou a biografia, questionando a não alusão à militância libertária do célebre intelectual libertário, foi de um miserabilismo grosseiro e arrogante, espantosamente deslocada e inaceitável vindo de uma pagina que é um dos mais importantes espaços biobibliográficos, digitalmente ao nosso dispor. A ignorância e a falta de humildade intelectual - quando se é confrontado com justos reparos biobibliográficos (sempre bem-vindos em todas as situações) - é, por vezes, muito atrevida, como nos parece ser o caso.

No que diz respeito a recomendáveis fontes biobibliográficas que o putativo administrador da página displicentemente sugere para se assegurar da qualidade libertária do prof. Aurélio Quintanilha, pois elas são tantas que incomoda o curioso pedido e nos enche de tédio. Porém, porque a página do FB pertence (também) à Helena Pato, por quem nutrimos especial admiração, aqui deixamos o nosso reparo e a nossa brevíssima anotação á questão colocada em torno da militância anarquista de Aurélio Quintanilha.

Saúde e Fraternidade!


Aurélio Quintanilha (1892-1987) foi cientista, investigador, professor, pedagogo (fundador da Universidade Livre de Coimbra), libertário e maçon [o irmão Brotero, iniciado, em 1925, na loja de Coimbra, A Revolta, e depois (Dezembro de 1931) um dos fundadores da loja maçónica de Coimbra, Construir - com, e entre outros, Tomás da Fonseca, Alberto Martins de Carvalho, César Abranches, Firmino da Costa, Raul Miranda].

Se tivermos o cuidado de ler Quintanilha, ver-se-á que as suas propostas educacionais e pedagógicas e a vertente pedagógico-libertária que sempre distinguiram as suas conferências [ver, p. expl., Educação de Hoje, Educação de Amanhã (1921), a conferência inaugural (5 de Fevereiro de 1925) da Universidade Livre de Coimbra ou idêntica conferência (26 de Março de 1933 – O papel social e as necessidades da investigação cientifica em Portugal) nas instalações do jornal O Século], nos elucida com clareza acerca do seu ideal anarquista, seguindo a velha linha do anarquismo individualista de Silva Mendes [“o mais vermelho dos republicanos de Famalicão”] e se prolonga até à sua morte.

Não será necessário, portanto, recorrer à leitura da entrevista que concedeu a João Medina [publicada na revista Clio, 1982, vol.4] para desocultar e fazer prova do seu ideal libertário. Nem percorrer, mesmo que seja com um brilho nos olhos, as sábias palavras de Vitorino Nemésio no “Perfil de Aurélio Quintanilha” (revista Brotéria, 1975, nº3/4, p. 175 e ss – vide a propósito deste assunto a p. 179). Ou até consultar o verbete do Dicionário dos Educadores Portugueses (dir. António Nóvoa, p.p.1137-1139) onde se lê: “ [Aurélio Quintanilha] conhecido especialmente como cientista e doutrinador do anarquismo …”]. Na verdade a leitura atenta da biografia activa e passiva do biografado é, prudentemente, sempre boa conselheira.    

Em breve anotação, e cingindo-nos apenas à questão em debate – isto é, ter sido ou não Aurélio Quintanilha anarquista -, diremos o seguinte:

- em 1912, Quintanilha, com Adriano Botelho (dirigente anarco-sindicalista da CGT, e outros) participa nas comemorações do 1º de Maio, integrado na corrente anarquista;

 - colabora depois (a partir de 13 de Fevereiro de 1913) um dos mais importantes jornais anarquistas, dirigido por Pinto Quartim, o semanário Terra Livre, de muita memória;

- ainda em 1913 (4-8 de Outubro), participa no Congresso de Lisboa do Livre Pensamento Universal (distribuindo a sua companheira, Susana, um manifesto assinado pelos sindicalistas presos pelo governo de Afonso Costa) e solicita por várias vezes a palavra em reuniões republicanas, interpelando o governo, sendo por isso ameaçado pela “Formiga Branca”;

- em 1914 faz parte do grupo anarquista “A Brochura Social” (Lisboa), juntamente com Neno Vasco e Sobral de Campos, grupo que pretendia editar mensalmente “folhetos de propaganda libertária” (ver João Medina, A Sementeira do arsenalista Hilário Marques, revista Análise Social, vol. 17;

- ainda em 1914, um núcleo de mulheres anarquistas – de que faziam parte Susana Quintanilha (professora), Elvira Lopes, Eugénio Silva, Rosalina Correia da Silva e Margarida Paula – reúnem-se para debater “assuntos relativos a gênero e promover agitação política”;

- por iniciativa do grupo libertário Aurora (Porto), ainda em 1914, realizou-se um comício  na cidade do Porto (teatro Antero de Quental) contra as arbitrariedades do governo republicano, onde participa como orador, acompanhando Neno Vasco e Sobral de Campos;

- participa na Conferência Anarquista da Região Sul (Junho de 1914, no prédio da Caixa Económica Operária, largo da Graça, Lisboa), onde, curiosamente, decide imprimir e divulgar obras de Malatesta (ver “Em Tempos de Eleições”) e irá apresentar a tese escrita por Neno Vasco, Os Anarquistas no Movimento Operário. Foram sessões muito vivas, como o debate sobre a participação de anarquistas nos sindicatos, onde Quintanilha sustem “não ser possível para o ponto em questão determinar regras rígidas”, porém a posição “de consenso” de Jerónimo de Sousa (do quinzenário O Arsenalista de Lisboa) prevalece, isto é, ganhou a tese de evitar a entrada dos anarquistas nos corpos diretivos sindicais (ver Alexandre Simas, Neno Vasco …, p. 346). De referir que alguns dos mais importantes militantes anarquistas tinham o hábito (então) de se reunirem em casa de Aurélio & Susana Quintanilha, nas noites de Domingo (entre eles, Emílio Costa, Afonso e António Manaças, Sobral de Campos, Gaspar dos Santos, Neno Vasco, Bernardo Sá, Sebastião Eugénio, Carlos Freire);

- em 1915, representa a Federação das Juventudes Sindicalistas (sob orientação anarquista; foi criada em 1913, resultante das Juventudes Libertárias de 1912; tinha a sede na rua do Arco da Graça, nº4, 2ª andar e editava O Despertar) de Portugal e França, no Congresso Mundial contra a Guerra (Ferrol, Espanha) e que se realizou clandestinamente – segundo alguns autores, fazia parte da delegação portuguesa Manuel Joaquim de Sousa. Tendo sido descobertos pela polícia são expulsos de território espanhol os delegados portugueses: Quintanilha, Manuel Joaquim de Sousa, Maria Veloso, Serafim Cardoso Lucena e Ernesto da Costa Cardoso. Curiosamente, Quintanilha não refere nenhum desses nomes, na sua entrevista a João Medina. No seu regresso de Espanha apresenta em várias cidades (a conferência em Coimbra foi proibida) o tema “A Guerra e o Congresso de Ferrol” tendo sido preso em Viana do Castelo sob ordem do administrador da cidade, Bourbon e Menezes, curiosamente ex-anarquista. Seja dito que, perante a conflagração europeia, no movimento anarquista coexiste dois grupos distintos: os guerristas [Emílio Costa, Bernardo de Sá, Mário Costa, Miguel Córdoba, Araújo Pereira] e os anti-guerristas [Neno Vasco, Aurélio Quintanilha, António José de Ávila, Hilário Marques]. Os primeiros estavam organizados em torno do grupo Germinal, enquanto os anti-belicistas agrupavam-se à volta d’A Aurora (Porto) e d’A Sementeira (Lisboa). Não estava longe o tempo em que numa das reuniões anarquistas em casa de Quintanilha, na proverbial tertúlia que ali perorava, a declaração de guerra de 1914 a todos entusiasmou, porque se pensava que estava aberta a porta à revolução social [sobre este assunto, consultar com proveito, Guerristas e Antiguerristas, INIC, 1986]. Curiosamente muitos dos anarquistas “guerristas”, no final da contenda, abandonaram o anarquismo, uns passando-se para o então movimento comunista (na sua versão bolchevista), aliás de onde alguns foram “escorraçados”, e outros enveredaram na defesa da ditadura (ibidem, pp. 116 e ss);

- o golpe militar sidonista de Dezembro de 1917 teve o apoio inicial de militantes libertários e republicanos (como Machado Santos) e entre eles Aurélio Quintanilha. Aliás Quintanilha refere (assim como Alexandre Vieira) que foi (foram ambos e outros mais) à Rotunda falar com Sidónio Pais em nome da UON, na esperança de terminar a perseguição aos sindicalistas e pedindo a libertação dos presos políticos. Por outro lado, não podemos esquecer o conhecimento que Quintanilha tinha de Sidónio Pais, pois Sidónio não lhe era estranho, dado a sua notoriedade na Universidade de Coimbra por ser republicano no tempo da monarquia e pelo exame, que como professor de álgebra, fez ao próprio Quintanilha;

- participa na “tertúlia” revolucionária “Falange Democrática” ou “Falange dos Olivais” (com Sobral de Campos, Pinto Quartim, Neno Vasco, Adolfo Lima, Emílio Costa, Alexandre Vieira, António José de Ávila e outros);

- na tentativa insurrecional monárquica de Paiva Couceiro (Janeiro e Fevereiro de 1919), os anarquistas organizaram grupos armados de resistência, tendo Aurélio Quintanilha vestido o uniforme militar e ido comandar a bateria na Quintinha  (A Batalha, Fevereiro de 1919);  

- a 25 de Setembro de 1927, considerado um “elemento avançado”, é detido pela PVDE.

- em 1928, em Coimbra, frequenta a inolvidável “República das Águias”, sob os auspícios da Maçonaria (pertencentes à loja A Revolta), onde juntamente com os irmãos Cal Brandão, Basílio Lopes Pereira, Manuel de Figueiredo e muitos mais, se conspirava contra a ditadura;

- escreve nos periódicos anarquistas, além do Terra Livre: A Aurora (Porto); A Batalha; O Despertar; A Lanterna (10 de Julho de 1915, Angra do Heroísmo – Quintanilha assumia a sua direcção); O Sindicalista; também colabora na revista Pela Grei (1918-1919); na Seara Nova (era amigo de António Sérgio); na revista de Homens Livres (1923); no Arquivo Pedagógico (Coimbra, 1927-1930); na revisa trimestral de educação LABOR (Aveiro); dirige o periódico bilingue de Moçambique, Memórias e Trabalhos. Centro de Investigação Algodoeira (1947-1961).

- já em 1975, Aurélio Quintanilha, em breve passagem por Lisboa, participa numa reunião anarquista na sede do Movimento Libertário Português.  

Em seguida, apresenta-se alguma bibliografia que sobre este (não) assunto da qualidade libertária de Aurélio Quintanilha diz especial respeito:   

Abílio Fernandes, Aurélio Pereira de Silva Quintanilha, na passagem do seu 70º aniversário, Boletim da Sociedade Broteriana, 1962, vol. 36 | Alberto Vilaça, Resistências Culturais e Políticas nos Primórdios do salazarismo, 2003 | Alexandre Samis, Neno Vasco, o Anarquismo e o Sindicalismo Revolucionário em dois mundos, Letras Livre, 2009 | Alexandre Vieira, Para a História do Sindicalismo em Portugal, 1970 | Amélia Filomena de Castro Gomes, A educação libertária segundo Aurélio Quintanilha, Braga, 2005 | António Ventura, Guerristas e Antiguerristas. Análise retrospectiva de um conflito, in João Medina (org.), Portugal na Guerra. Guerristas e Antiguerristas, INIC, 1986, pp. 107-125 | Aurélio Quintanilha, “Discurso pronunciado por A. Quintanilha na sessão promovida pela juventude sindicalista de Lisboa em 22 de Março”, in A Aurora, 29 de Março de 1914, p.1 | Aurélio Quintanilha, “Parlamentarismo e Sindicalismo: Sindicalismo e Integralismo”, in A Batalha, Setembro de 1919 (publicado ao longo de vários artigos) | Aurélio Quintanilha, Entrevista concedida a João Medina, revista Clio, vol.4, 1982, pp.121-132 | Aurélio Quintanilha, A Universidade Livre de Coimbra (pref. Paulo Archer), Lema d'Origem, 2017 | Cláudia Ninhos, De anarco-sindicalista a Catedrático de Coimbra e do saneamento ao “exílio”. Percurso político do cientista-intelectual Aurélio Quintanilha (FCSH/NOVA) | Edgar Rodrigues, Breve História do pensamento e das Lutas Sociais em Portugal, 1977 | Edgar Rodrigues, A Resistência Anarco-Sindicalista à Ditadura, 1981 | Edgar Rodrigues, A Oposição Libertária em Portugal (1939-1974), Sementeira, 1982 | Fernando Namora, Fogo na Noite Escura (pref. de Joaquim Namorado), Caminho, 2018 | Filipa Freitas, Les Jeunesses Syndicalistes au Portugal, 2007 | João de Barros, Cartas Políticas, 1982 | João Medina, Um semanário anarquista durante o primeiro Governo Afonso Costa: Terra Livre, 1981, vol. 17 (67-68) | Luís Salgado de Matos, Lisboa, 1920 - vida sindical e condição operária, in Análise Social, 1981, vol. 17 (67-68) | Manuel Joaquim de Sousa, O Sindicalismo em Portugal, 1972 (3ª ed.) | Quintino Lopes, Aurélio Quintanilha e António Sousa da Câmara: entre distintas ideologias políticas e semelhantes práticas científicas, IHC | Vitorino Nemésio, Perfil de Aurélio Quintanilha (discurso proferido em Homenagem a Aurélio Quintanilha pela Sociedade Portuguesa de Genética, Brotéria Ciências Naturais, 1975 (republicado na Brotéria Genética, em 1993, nº1-2), nº 3-4.

José Manuel Martins

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