“Em Defesa de uma Democracia
Social” – por António Valdemar, in Caderno E, Expresso, 9 de Outubro de 2021
Apesar
de todas as adversidades da repressão política, no salazarismo e no marcelismo,
o impacto da doutrinação e crítica da revista “Seara Nova” constitui um legado cívico e cultural dos mais notáveis
do século XX. Esta semana passam 100 anos desde que saiu o primeiro número.
A “Seara Nova” apareceu
há 100 anos e num momento de extrema crispação política e social. O
desassossego era permanente e nunca se sabia o que reservava o dia de amanhã. A
conspiração monárquica principiou no próprio 5 de Outubro de 1910, com a
instauração da República. Prosseguiu sem tréguas. As derrotas dos
monárquicos nas incursões (1911-1912) chefiadas por Paiva Couceiro repetiram-se na escalada de Monsanto (1919),
comandada por Aires de Ornelas, e na
implantação no Porto, também em 1919, da Monarquia do Norte.
A fragmentação dos republicanos em três partidos e a
formação de grupos divergentes em cada partido geravam uma turbulência
permanente. Os partidos instrumentalizavam o Exército e a Marinha. Manipulavam
a Guarda Republicana e a Polícia. As revoluções sucediam-se. Os governos
duravam meses ou apenas alguns dias. Os debates parlamentares eram intermináveis,
sem apresentarem soluções alternativas para resolver os grandes problemas.
A criação, em setembro de 1919, da Confederação Geral do Trabalho
(CGT) procurou mobilizar o operariado. Tinha como órgão o jornal “A
Batalha”, que impulsionava as reivindicações e chamava a atenção para
outros problemas nacionais ou internacionais. Também era fundado, em junho de 1921,
o Partido
Comunista Português. Todas estas circunstâncias provocavam angústia e
sobressalto. Multiplicavam-se as greves. A crise económica era profunda.
Faltavam produtos essenciais para o dia-a-dia. Continuavam por sarar feridas
causadas pela intervenção de Portugal na guerra.
As origens da “Seara Nova” datam dos finais de 1920 e primeiros
meses de 1921. Jaime Cortesão, diretor
da Biblioteca Nacional, reuniu-se com Raul
Proença e Luís da Câmara Reys e
juntos conceberam a formação de um grupo, com a edição de uma revista
periódica, para responder às preocupações que se manifestavam em todo o país. A
eles se juntaram Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, Faria de Vasconcelos, Ferreira
de Macedo, Francisco António Correia,
Raul Brandão e, levado por Aquilino Ribeiro, o jovem advogado José de Azeredo Perdigão.
Começou a publicação da “Seara
Nova” a 15 de outubro de 1921. Era uma revista quinzenal de doutrinação
e crítica, para “criar uma opinião pública nacional que exija e apoie as
reformas necessárias”, para garantir “os interesses supremos da nação,
opondo-se ao espírito de rapina das oligarquias dominantes e ao egoísmo dos
grupos, classes e partidos”. Reclamava a urgência de “protestar contra todos os
movimentos revolucionários e, todavia, defender e definir a grande causa da
verdadeira revolução”. “Contribuir acima das Pátrias” — outra questão
fundamental —, “a união de todas as Pátrias — uma consciência internacional
bastante forte para não permitir novas lutas fratricidas”.
“A NOITE SANGRENTA”
Quatro dias depois do aparecimento da “Seara Nova”, a 19 de
outubro de 1921, a revolta dos marinheiros espalhou o pânico em
Lisboa, que se estendeu a todo o país. A Legião Vermelha assassinou o
primeiro-ministro António Granjo e o
fundador da República Machado Santos.
Também assassinou o comandante Carlos da
Maia, outra figura já histórica da República, o comandante Freitas da Silva, secretário do ministro
da Marinha, e o coronel Botelho de
Vasconcelos, que apoiara Sidónio
Pais. Arrancados das suas casas, seguiram numa “camioneta fantasma”
que os levou até ao Arsenal. Ali foram sumariamente abatidos a tiro.
Ficou na história como “A Noite Sangrenta”, uma
das páginas negras de toda a Primeira República. Raul Proença, no nº 2 da “Seara Nova”, de 5 de novembro de
1921, referiu que o país mergulhara “na epilepsia da desordem”. E comentou: “Já
o tínhamos previsto. Nem foi surpresa para ninguém (...).” Os homens que tombaram
às mãos dos assassinos — acentuava com veemência — eram “vítimas de tudo o que
fizemos e não fizemos; do que dissemos e do que calamos, do que praticamos e do
que consentimos”.
Um dos motivos aparentes do 19 de outubro terá sido a demissão
do governo de Liberato Pinto —
ligado ao Partido Democrático — e a sua condenação a um ano de prisão,
confirmada a 21 de setembro de 1921 pelo Conselho Superior de Disciplina do
Exército. Quem se movimentou para organizar esta chacina e quais os seus
objetivos? A Legião Vermelha,
um grupo de marinheiros radicais influenciado por oficiais da Armada e do
Exército e políticos de várias tendências. Inclusive monárquicas e católicas. O
cabo Abel Olímpio, tristemente
célebre com a alcunha “Dente de Ouro”, arregimentou os
marinheiros, mas — e para vingar o Regicídio, executado em 1908 pela Carbonária
— houve a intervenção das Juventudes Monárquicas Conservadoras. Houve
também a colaboração do padre Maximiano
Lima, da administração do jornal “A Época”, de cuja redação faziam
parte jornalistas como Manuel Múrias,
Pedro Correia Marques e Leopoldo Nunes, que, a 28 de maio de
1926, acompanharam o golpe militar chefiado por Gomes da Costa, em Braga; que avançou para o Porto e para Lisboa e
abriu caminho para a entrada de Salazar
no governo.
No livro de Berta Maia
“As Minhas Entrevistas com Abel Olímpio, ‘O Dente de Ouro’”, confirmam-se
as cumplicidades de militares monárquicos e de figuras da banca. O jornalista Bourbon e Meneses reuniu outros
contributos no livro “Os Crimes do 19 de Outubro: Revelações &
Interrogações Sensacionais” (1929), ao aprofundar os meandros da conspiração
e a concretização do crime. A situação política diagnosticada por Raul Proença na “Seara Nova” desvendava as
causas da agitação nas ruas e da incerteza e da perplexidade que se instalara
na população. Jaime Cortesão, a
propósito, afirmou: “Diga-se a verdade toda. Os crimes que se praticaram não
eram possíveis sem a dissolução moral a que chegou a sociedade portuguesa.”
POLÉMICAS
MEMORÁVEIS
A entrada, em 1923, de António
Sérgio para a redação e direção intensificou as grandes intervenções polémicas.
Para um público em especial, os jovens universitários, a “Seara Nova” tornara-se
leitura obrigatória. Denunciava erros e omissões de política nacional e
internacional nas áreas da educação e da economia. Questionou o fascismo e o
comunismo.
Desencadeou polémicas memoráveis. Raul Proença fez a desmontagem do Integralismo Lusitano e
da Cruzada
Nuno Álvares; definiu as responsabilidades dos intelectuais.
Desmascarou as acrobacias políticas de Alfredo
Pimenta, Martinho Nobre de Melo.
Enfrentou Cunha Leal — que ascendera
a primeiro-ministro na crise resultante do 19 de outubro — a propósito da
incompatibilidade da política com o mundo dos negócios.
António Sérgio insurgiu-se contra Malheiro
Dias acerca do Sebastianismo
e sobre os métodos da divulgação científica preconizados por Abel Salazar. Também não hesitou em
escrever juízos críticos a propósito da obra de Teófilo Braga e Guerra Junqueiro,
ambos considerados intocáveis.
A missão do artista foi outra polémica que se arrastou entre José Régio e Álvaro Cunhal. Mais intervenções com repercussão: de Adolfo Casais Monteiro em torno da arte
e da vida e de Mário Dionísio a
respeito do neorrealismo. A demissão de António Sérgio, em 1939, resultou das divergências em matéria de
orientação ideológica e dos critérios da administração adotados por Câmara Reys. Contou com a adesão de Mário de Azevedo Gomes, de Álvaro Salema e de Castelo Branco Chaves. Mas não impediu uma participação intensa, em
alturas decisivas, quando Jaime Cortesão
e António Sérgio foram presos e
exilados; e Raul Proença ficou doente
e totalmente incapacitado para escrever.
A “Seara Nova” atravessou a Guerra de Espanha, a Segunda Guerra
Mundial e, no plano interno, a consolidação do regime de Salazar; as repercussões e as consequências do MUNAF (1942) e do MUD
(1945); a nova expulsão de catedráticos nas universidades de Lisboa,
Coimbra e Porto; os conflitos, as desistências, os avanços e recuos
desencadeados em face das candidaturas de Norton
de Matos, de Rui Luís Gomes, de Quintão Meireles, de Arlindo Vicente e de Humberto Delgado. Sempre em luta
frontal contra o regime e a suportar ameaças tremendas.
Um novo ciclo se abriu nos anos 60 com a morte inesperada de Câmara Reys, candidato a deputado numa lista da oposição para deputados à Assembleia Nacional. A “Seara Nova” ampliou, entretanto, a visão crítica e analítica — quase sempre abafada pela censura — perante a Guerra Colonial, os apelos possíveis para a independência das colónias, a emigração, a saúde, as greves estudantis. É a década em que dois membros do governo de Salazar provocam dois incidentes de enorme gravidade — Adriano Moreira, ministro do Ultramar, reabriu o Tarrafal, com o nome de Campo do Chão Bom; e Inocêncio Galvão Teles, ministro da Educação, encerrou a Sociedade Portuguesa de Escritores. A história da “Seara Nova”, nestes e em muitos outros aspetos, já foi estudada na sua amplitude e dimensão por António Rafael Amaro, António Reis, Sottomayor Cardia, Fernando Catroga, António Pedro Pita, em investigações rigorosas e pormenorizadas.
ORIENTAÇÃO
LITERÁRIA
Os principais responsáveis pela criação da “Seara Nova” derivam do grupo
da Renascença Portuguesa e da revista “Águia” e surgiram no
Porto, em 1910, depois da instauração da República. Teixeira de Pascoaes e Leonardo
Coimbra faziam parte — e em lugar de maior evidência — deste movimento cultural.
Contudo, Jaime Cortesão, Raul Proença e António Sérgio optaram por outra posição filosófica e outra
orientação doutrinária.
Elegeram na “Seara Nova”, entre as suas
preferências literárias, os escritores, os poetas, os ensaístas e os críticos mais
representativos da segunda metade do século XIX: Antero de Quental, Oliveira Martins,
Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Quase todos
selecionados como paradigmas nas “Questões Morais e Sociais da Literatura”,
para citar o título de uma série organizada por Luís da Câmara Reys.
Outra componente da “Seara Nova” residia na oposição ao
modernismo, que se manifestou a partir do “Orpheu”, em termos de criação
poética e na aceitação de princípios e valores. Jaime Cortesão é categórico, em 1922, numa das “Cartas à
Mocidade” e a propósito da formação dos caracteres e do carácter. Recomendava
aos jovens que não se deixassem atrair pelos “corifeus da última grande
camada literária que deram extremos foros de desequilíbrio no estilo”. Outra
advertência — sem mencionar nomes, mas eram óbvios — incidia no conteúdo da obra
de poetas como António Botto, Judite Teixeira e Raul Leal, na chamada “literatura de Sodoma”, que Fernando Pessoa defendeu publicamente.
GRAFISMO E
ILUSTRAÇÃO
A configuração da “Seara Nova” não tem qualquer relação
com as revistas do modernismo. Tais como “Orpheu”, “Centauro”, “Portugal
Futurista”, “Athena” e “Contemporânea”,
associadas às inovações introduzidas por Luís
de Montalvor, Amadeo de Souza-Cardoso,
Christiano Cruz, Santa-Rita Pintor, Almada Negreiros e José
Pacheco. Foi encomendado por Luís da Câmara Reys a Leal da Câmara o modelo
da “Seara Nova”, enquanto revista e, ainda, de papel para cartas e
envelopes da redação e dos serviços administrativos. Leal da Câmara notabilizara-se em Paris, em plano de igualdade com
os maiores caricaturistas e cartoonistas que marcaram a transição do século XIX
para o século XX.
Ao regressar a Portugal, após a implantação da República, Leal da Câmara exerceu influência nos primórdios
de Almada Negreiros, Christiano Cruz e Stuart Carvalhais, em Lisboa, e de Abel Salazar, no Porto. O seu magistério no ensino industrial e comercial
foi relevante em várias gerações que frequentaram a Escola Fonseca Benevides.
Realizou uma obra pioneira na edição de livros e de revistas, na criação de
mobiliário e de objetos decorativos e na montagem de exposições.
A “Seara Nova” tem capas de Leal
da Câmara, episodicamente, de Jorge
Barradas e de Stuart Carvalhais;
nos anos 20, a presença assídua de José Tagarro
(que faleceu prematuramente) é da maior importância. Outras referências: Diogo de Macedo, Arlindo Vicente e Roberto de
Araújo; nos anos 40 e 50, salientam-se Júlio
Pomar e Lima de Freitas.
O reconhecimento dos vários surtos da modernidade encontra-se na
crítica de arte de José Ernesto de Sousa
e, pouco antes do 25 de Abril, em Rocha de
Sousa, enquanto José-Augusto França
se distinguiu, muitos anos, na crítica de cinema. Nesta retrospetiva bastante
sumária não se podem ignorar a crítica de teatro de João Pedro de Andrade e a crítica de música de Fernando Lopes Graça. Só que Lopes
Graça ultrapassou este domínio, ocupando -se de outros sectores culturais e
políticos.
CENSURA,
ASSALTOS, PRISÕES
A censura, desde que foi instituída e legalmente estruturada —
na sequência da implantação da ditadura militar e da chefia do governo presidido
por Salazar —, teve intervenção
drástica na “Seara Nova”. Os motivos de combate permanente à “Seara
Nova”, um dos órgãos de comunicação mais contundentes, ressaltaram nos
temas da comemoração do 40º aniversário do 28 de Maio, através das
intervenções de políticos, de militares e de um representante da igreja. Estão
reunidas em dois volumes. Justificaram e exaltaram as políticas adotadas e que
se vão manter até ao 25 de Abril. Também a União Nacional, no âmbito desta
comemoração, lançou outros livros, um dos quais “A ‘Seara Nova’ e o
Pensamento da Revolução Nacional”, da autoria de Mário Matos e Lemos e publicado na Panorama, a editora do SNI.
A anunciada Primavera Marcelista, de setembro de
1968 a 24 de abril de 1974, continuou a encarar a “Seara Nova” como um
perigo político, um dos inimigos a abater e a condenar ao ostracismo. José Tengarrinha estudou na história da
“Seara
Nova” os dois períodos em que a censura foi mais radical: coincidiram
com a direção de Câmara Reys (1927-1960)
e, de 1961 a 1974, com as direções de Augusto
Casimiro, de Rogério Fernandes,
de Augusto Abelaira e de Manuel Rodrigues Lapa. Além da
intervenção da censura, também se registaram, ao longo de décadas, os assaltos,
os confiscos e as prisões da PIDE, que prendeu e torturou
intelectuais marcados pelo estigma da “Seara Nova”.
Entre numerosos casos gritantes, em novembro de 1958,
recordam-se as prisões de seareiros históricos como António Sérgio, Jaime
Cortesão e Mário de Azevedo Gomes,
todos eles com mais de 70 anos. O pretexto era que, fora do tempo de “liberdade
suficiente” da campanha eleitoral de Humberto Delgado, promoviam a
organização para a vinda a Portugal de Aneurin
Bevan, deputado trabalhista britânico, e de Pierre Mendès France, a fim de fazerem conferências sobre
democracia.
INTRANSIGÊNCIA
DE PRINCÍPIOS
O enquadramento da “Seara Nova” coloca-nos perante várias
“Searas Novas” com diferenças políticas e culturais muito assinaláveis. Até
ao último número manteve-se fiel a “regras básicas de conduta” — esclareceu Rodrigues Lapa —, como, por exemplo, em
não “agrupar todos os seareiros sob um mesmo credo e uma só bandeira”.
Especificava que a “Seara Nova” “guardou sempre avaramente a sua independência. Daí
a sua autoridade cívica. Contra a política aventureira dos improvisadores da
velha democracia. (...) Veio substituir e muitas vezes combater uma forma de
radicalismo, muito em moda, que só tinha de avançado o modo truculento como
atacava os padres e a religião, mas que se mancomunava, podendo ser, com os
príncipes da plutocracia e da finança, tradicionais inimigos da democracia”.
“Essa posição intransigente na defesa dos princípios de uma
democracia social” — acentuava Rodrigues Lapa — “teve por consequência a
hostilidade dos partidos republicanos que então disputavam o poder”. Durante a
ditadura, de 1926 a 24 de abril de 1974, a “Seara Nova” travou “um ferrenho combate,
com armas desiguais, mas com o vigor desesperado dos que preferem morrer a
ceder um palmo de terreno”.
Um dos “pequenos dramas da vida íntima da ‘Seara’” — observou ainda
Rodrigues Lapa — consistiu no “espírito de elite, que cava abismos quase intransponíveis
entre o agente e o objeto da cultura”. No entanto, a “Seara Nova” opunha-se “à
cultura como privilégio de classe, inacessível ao cidadão vulgar”. Assim,
procedeu, desde os anos 30 aos anos 60, à publicação e ampla divulgação dos “Cadernos
da ‘Seara Nova’” e dos “Textos Literários”. Rodrigues Lapa e António Sérgio
foram os principais responsáveis pela seleção dos autores, a introdução de cada
opúsculo e a organização de uma antologia sumária. Procurando sempre — afirmou Rodrigues
Lapa — “um estilo claro, que fuja à retórica tradicional e a um gongorismo retorcido,
em que o português culto ou semiculto de ordinário se compraz com delícia”.
Todas estas circunstâncias em momentos particularmente atribulados,
com a sistemática repressão da censura e da polícia política, a PIDE e a DGS, estabeleceram
uma filosofia e uma moral. Apesar de todas as adversidades e de todas as
polémicas, a “Seara Nova” deixou um legado cívico e cultural dos mais notáveis
dos últimos 100 anos.
Em
Defesa de uma Democracia Social – por António Valdemar, [Jornalista e
investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], revista
E, Expresso, 9 de Outubro de 2021,
pp. 34/39 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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