sexta-feira, 15 de outubro de 2021

SEARA NOVA – “EM DEFESA DE UMA DEMOCRACIA SOCIAL”

 


Em Defesa de uma Democracia Social” – por António Valdemar, in Caderno E, Expresso, 9 de Outubro de 2021

Apesar de todas as adversidades da repressão política, no salazarismo e no marcelismo, o impacto da doutrinação e crítica da revista “Seara Nova” constitui um legado cívico e cultural dos mais notáveis do século XX. Esta semana passam 100 anos desde que saiu o primeiro número.

A “Seara Nova” apareceu há 100 anos e num momento de extrema crispação política e social. O desassossego era permanente e nunca se sabia o que reservava o dia de amanhã. A conspiração monárquica principiou no próprio 5 de Outubro de 1910, com a instauração da República. Prosseguiu sem tréguas. As derrotas dos monárquicos nas incursões (1911-1912) chefiadas por Paiva Couceiro repetiram-se na escalada de Monsanto (1919), comandada por Aires de Ornelas, e na implantação no Porto, também em 1919, da Monarquia do Norte.

A fragmentação dos republicanos em três partidos e a formação de grupos divergentes em cada partido geravam uma turbulência permanente. Os partidos instrumentalizavam o Exército e a Marinha. Manipulavam a Guarda Republicana e a Polícia. As revoluções sucediam-se. Os governos duravam meses ou apenas alguns dias. Os debates parlamentares eram intermináveis, sem apresentarem soluções alternativas para resolver os grandes problemas.

A criação, em setembro de 1919, da Confederação Geral do Trabalho (CGT) procurou mobilizar o operariado. Tinha como órgão o jornal “A Batalha”, que impulsionava as reivindicações e chamava a atenção para outros problemas nacionais ou internacionais. Também era fundado, em junho de 1921, o Partido Comunista Português. Todas estas circunstâncias provocavam angústia e sobressalto. Multiplicavam-se as greves. A crise económica era profunda. Faltavam produtos essenciais para o dia-a-dia. Continuavam por sarar feridas causadas pela intervenção de Portugal na guerra.

As origens da “Seara Nova” datam dos finais de 1920 e primeiros meses de 1921. Jaime Cortesão, diretor da Biblioteca Nacional, reuniu-se com Raul Proença e Luís da Câmara Reys e juntos conceberam a formação de um grupo, com a edição de uma revista periódica, para responder às preocupações que se manifestavam em todo o país. A eles se juntaram Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, Faria de Vasconcelos, Ferreira de Macedo, Francisco António Correia, Raul Brandão e, levado por Aquilino Ribeiro, o jovem advogado José de Azeredo Perdigão.

Começou a publicação da “Seara Nova” a 15 de outubro de 1921. Era uma revista quinzenal de doutrinação e crítica, para “criar uma opinião pública nacional que exija e apoie as reformas necessárias”, para garantir “os interesses supremos da nação, opondo-se ao espírito de rapina das oligarquias dominantes e ao egoísmo dos grupos, classes e partidos”. Reclamava a urgência de “protestar contra todos os movimentos revolucionários e, todavia, defender e definir a grande causa da verdadeira revolução”. “Contribuir acima das Pátrias” — outra questão fundamental —, “a união de todas as Pátrias — uma consciência internacional bastante forte para não permitir novas lutas fratricidas”.


A NOITE SANGRENTA

Quatro dias depois do aparecimento da “Seara Nova”, a 19 de outubro de 1921, a revolta dos marinheiros espalhou o pânico em Lisboa, que se estendeu a todo o país. A Legião Vermelha assassinou o primeiro-ministro António Granjo e o fundador da República Machado Santos. Também assassinou o comandante Carlos da Maia, outra figura já histórica da República, o comandante Freitas da Silva, secretário do ministro da Marinha, e o coronel Botelho de Vasconcelos, que apoiara Sidónio Pais. Arrancados das suas casas, seguiram numa “camioneta fantasma” que os levou até ao Arsenal. Ali foram sumariamente abatidos a tiro.

Ficou na história como “A Noite Sangrenta”, uma das páginas negras de toda a Primeira República. Raul Proença, no nº 2 da “Seara Nova”, de 5 de novembro de 1921, referiu que o país mergulhara “na epilepsia da desordem”. E comentou: “Já o tínhamos previsto. Nem foi surpresa para ninguém (...).” Os homens que tombaram às mãos dos assassinos — acentuava com veemência — eram “vítimas de tudo o que fizemos e não fizemos; do que dissemos e do que calamos, do que praticamos e do que consentimos”.

Um dos motivos aparentes do 19 de outubro terá sido a demissão do governo de Liberato Pinto — ligado ao Partido Democrático — e a sua condenação a um ano de prisão, confirmada a 21 de setembro de 1921 pelo Conselho Superior de Disciplina do Exército. Quem se movimentou para organizar esta chacina e quais os seus objetivos? A Legião Vermelha, um grupo de marinheiros radicais influenciado por oficiais da Armada e do Exército e políticos de várias tendências. Inclusive monárquicas e católicas. O cabo Abel Olímpio, tristemente célebre com a alcunha “Dente de Ouro”, arregimentou os marinheiros, mas — e para vingar o Regicídio, executado em 1908 pela Carbonária — houve a intervenção das Juventudes Monárquicas Conservadoras. Houve também a colaboração do padre Maximiano Lima, da administração do jornal “A Época”, de cuja redação faziam parte jornalistas como Manuel Múrias, Pedro Correia Marques e Leopoldo Nunes, que, a 28 de maio de 1926, acompanharam o golpe militar chefiado por Gomes da Costa, em Braga; que avançou para o Porto e para Lisboa e abriu caminho para a entrada de Salazar no governo.

No livro de Berta MaiaAs Minhas Entrevistas com Abel Olímpio, ‘O Dente de Ouro’”, confirmam-se as cumplicidades de militares monárquicos e de figuras da banca. O jornalista Bourbon e Meneses reuniu outros contributos no livro “Os Crimes do 19 de Outubro: Revelações & Interrogações Sensacionais” (1929), ao aprofundar os meandros da conspiração e a concretização do crime. A situação política diagnosticada por Raul Proença na “Seara Nova” desvendava as causas da agitação nas ruas e da incerteza e da perplexidade que se instalara na população. Jaime Cortesão, a propósito, afirmou: “Diga-se a verdade toda. Os crimes que se praticaram não eram possíveis sem a dissolução moral a que chegou a sociedade portuguesa.”


POLÉMICAS MEMORÁVEIS

A entrada, em 1923, de António Sérgio para a redação e direção intensificou as grandes intervenções polémicas. Para um público em especial, os jovens universitários, a “Seara Nova” tornara-se leitura obrigatória. Denunciava erros e omissões de política nacional e internacional nas áreas da educação e da economia. Questionou o fascismo e o comunismo.

Desencadeou polémicas memoráveis. Raul Proença fez a desmontagem do Integralismo Lusitano e da Cruzada Nuno Álvares; definiu as responsabilidades dos intelectuais. Desmascarou as acrobacias políticas de Alfredo Pimenta, Martinho Nobre de Melo. Enfrentou Cunha Leal — que ascendera a primeiro-ministro na crise resultante do 19 de outubro — a propósito da incompatibilidade da política com o mundo dos negócios.

António Sérgio insurgiu-se contra Malheiro Dias acerca do Sebastianismo e sobre os métodos da divulgação científica preconizados por Abel Salazar. Também não hesitou em escrever juízos críticos a propósito da obra de Teófilo Braga e Guerra Junqueiro, ambos considerados intocáveis.

A missão do artista foi outra polémica que se arrastou entre José Régio e Álvaro Cunhal. Mais intervenções com repercussão: de Adolfo Casais Monteiro em torno da arte e da vida e de Mário Dionísio a respeito do neorrealismo. A demissão de António Sérgio, em 1939, resultou das divergências em matéria de orientação ideológica e dos critérios da administração adotados por Câmara Reys. Contou com a adesão de Mário de Azevedo Gomes, de Álvaro Salema e de Castelo Branco Chaves. Mas não impediu uma participação intensa, em alturas decisivas, quando Jaime Cortesão e António Sérgio foram presos e exilados; e Raul Proença ficou doente e totalmente incapacitado para escrever.

A “Seara Nova” atravessou a Guerra de Espanha, a Segunda Guerra Mundial e, no plano interno, a consolidação do regime de Salazar; as repercussões e as consequências do MUNAF (1942) e do MUD (1945); a nova expulsão de catedráticos nas universidades de Lisboa, Coimbra e Porto; os conflitos, as desistências, os avanços e recuos desencadeados em face das candidaturas de Norton de Matos, de Rui Luís Gomes, de Quintão Meireles, de Arlindo Vicente e de Humberto Delgado. Sempre em luta frontal contra o regime e a suportar ameaças tremendas.

Um novo ciclo se abriu nos anos 60 com a morte inesperada de Câmara Reys, candidato a deputado numa lista da oposição para deputados à Assembleia Nacional. A “Seara Nova” ampliou, entretanto, a visão crítica e analítica — quase sempre abafada pela censura — perante a Guerra Colonial, os apelos possíveis para a independência das colónias, a emigração, a saúde, as greves estudantis. É a década em que dois membros do governo de Salazar provocam dois incidentes de enorme gravidade — Adriano Moreira, ministro do Ultramar, reabriu o Tarrafal, com o nome de Campo do Chão Bom; e Inocêncio Galvão Teles, ministro da Educação, encerrou a Sociedade Portuguesa de Escritores. A história da “Seara Nova”, nestes e em muitos outros aspetos, já foi estudada na sua amplitude e dimensão por António Rafael Amaro, António Reis, Sottomayor Cardia, Fernando Catroga, António Pedro Pita, em investigações rigorosas e pormenorizadas.

ORIENTAÇÃO LITERÁRIA

Os principais responsáveis pela criação da “Seara Nova” derivam do grupo da Renascença Portuguesa e da revista “Águia” e surgiram no Porto, em 1910, depois da instauração da República. Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra faziam parte — e em lugar de maior evidência — deste movimento cultural. Contudo, Jaime Cortesão, Raul Proença e António Sérgio optaram por outra posição filosófica e outra orientação doutrinária.

Elegeram na “Seara Nova”, entre as suas preferências literárias, os escritores, os poetas, os ensaístas e os críticos mais representativos da segunda metade do século XIX: Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Quase todos selecionados como paradigmas nas “Questões Morais e Sociais da Literatura”, para citar o título de uma série organizada por Luís da Câmara Reys.

Outra componente da “Seara Nova” residia na oposição ao modernismo, que se manifestou a partir do “Orpheu”, em termos de criação poética e na aceitação de princípios e valores. Jaime Cortesão é categórico, em 1922, numa das “Cartas à Mocidade” e a propósito da formação dos caracteres e do carácter. Recomendava aos jovens que não se deixassem atrair pelos “corifeus da última grande camada literária que deram extremos foros de desequilíbrio no estilo”. Outra advertência — sem mencionar nomes, mas eram óbvios — incidia no conteúdo da obra de poetas como António Botto, Judite Teixeira e Raul Leal, na chamada “literatura de Sodoma”, que Fernando Pessoa defendeu publicamente.

GRAFISMO E ILUSTRAÇÃO

A configuração da “Seara Nova” não tem qualquer relação com as revistas do modernismo. Tais como “Orpheu”, “Centauro”, “Portugal Futurista”, “Athena” e “Contemporânea”, associadas às inovações introduzidas por Luís de Montalvor, Amadeo de Souza-Cardoso, Christiano Cruz, Santa-Rita Pintor, Almada Negreiros e José Pacheco. Foi encomendado por Luís da Câmara Reys a Leal da Câmara o modelo da “Seara Nova”, enquanto revista e, ainda, de papel para cartas e envelopes da redação e dos serviços administrativos. Leal da Câmara notabilizara-se em Paris, em plano de igualdade com os maiores caricaturistas e cartoonistas que marcaram a transição do século XIX para o século XX.

Ao regressar a Portugal, após a implantação da República, Leal da Câmara exerceu influência nos primórdios de Almada Negreiros, Christiano Cruz e Stuart Carvalhais, em Lisboa, e de Abel Salazar, no Porto. O seu magistério no ensino industrial e comercial foi relevante em várias gerações que frequentaram a Escola Fonseca Benevides. Realizou uma obra pioneira na edição de livros e de revistas, na criação de mobiliário e de objetos decorativos e na montagem de exposições.

A “Seara Nova” tem capas de Leal da Câmara, episodicamente, de Jorge Barradas e de Stuart Carvalhais; nos anos 20, a presença assídua de José Tagarro (que faleceu prematuramente) é da maior importância. Outras referências: Diogo de Macedo, Arlindo Vicente e Roberto de Araújo; nos anos 40 e 50, salientam-se Júlio Pomar e Lima de Freitas.

O reconhecimento dos vários surtos da modernidade encontra-se na crítica de arte de José Ernesto de Sousa e, pouco antes do 25 de Abril, em Rocha de Sousa, enquanto José-Augusto França se distinguiu, muitos anos, na crítica de cinema. Nesta retrospetiva bastante sumária não se podem ignorar a crítica de teatro de João Pedro de Andrade e a crítica de música de Fernando Lopes Graça. Só que Lopes Graça ultrapassou este domínio, ocupando -se de outros sectores culturais e políticos.

CENSURA, ASSALTOS, PRISÕES

A censura, desde que foi instituída e legalmente estruturada — na sequência da implantação da ditadura militar e da chefia do governo presidido por Salazar —, teve intervenção drástica na “Seara Nova”. Os motivos de combate permanente à “Seara Nova”, um dos órgãos de comunicação mais contundentes, ressaltaram nos temas da comemoração do 40º aniversário do 28 de Maio, através das intervenções de políticos, de militares e de um representante da igreja. Estão reunidas em dois volumes. Justificaram e exaltaram as políticas adotadas e que se vão manter até ao 25 de Abril. Também a União Nacional, no âmbito desta comemoração, lançou outros livros, um dos quais “A ‘Seara Nova’ e o Pensamento da Revolução Nacional”, da autoria de Mário Matos e Lemos e publicado na Panorama, a editora do SNI.

A anunciada Primavera Marcelista, de setembro de 1968 a 24 de abril de 1974, continuou a encarar a “Seara Nova” como um perigo político, um dos inimigos a abater e a condenar ao ostracismo. José Tengarrinha estudou na história da “Seara Nova” os dois períodos em que a censura foi mais radical: coincidiram com a direção de Câmara Reys (1927-1960) e, de 1961 a 1974, com as direções de Augusto Casimiro, de Rogério Fernandes, de Augusto Abelaira e de Manuel Rodrigues Lapa. Além da intervenção da censura, também se registaram, ao longo de décadas, os assaltos, os confiscos e as prisões da PIDE, que prendeu e torturou intelectuais marcados pelo estigma da “Seara Nova”.

Entre numerosos casos gritantes, em novembro de 1958, recordam-se as prisões de seareiros históricos como António Sérgio, Jaime Cortesão e Mário de Azevedo Gomes, todos eles com mais de 70 anos. O pretexto era que, fora do tempo de “liberdade suficiente” da campanha eleitoral de Humberto Delgado, promoviam a organização para a vinda a Portugal de Aneurin Bevan, deputado trabalhista britânico, e de Pierre Mendès France, a fim de fazerem conferências sobre democracia.


INTRANSIGÊNCIA DE PRINCÍPIOS

O enquadramento da “Seara Nova” coloca-nos perante várias “Searas Novas” com diferenças políticas e culturais muito assinaláveis. Até ao último número manteve-se fiel a “regras básicas de conduta” — esclareceu Rodrigues Lapa —, como, por exemplo, em não “agrupar todos os seareiros sob um mesmo credo e uma só bandeira”. Especificava que a “Seara Nova” “guardou sempre avaramente a sua independência. Daí a sua autoridade cívica. Contra a política aventureira dos improvisadores da velha democracia. (...) Veio substituir e muitas vezes combater uma forma de radicalismo, muito em moda, que só tinha de avançado o modo truculento como atacava os padres e a religião, mas que se mancomunava, podendo ser, com os príncipes da plutocracia e da finança, tradicionais inimigos da democracia”.

“Essa posição intransigente na defesa dos princípios de uma democracia social” — acentuava Rodrigues Lapa — “teve por consequência a hostilidade dos partidos republicanos que então disputavam o poder”. Durante a ditadura, de 1926 a 24 de abril de 1974, a “Seara Nova” travou “um ferrenho combate, com armas desiguais, mas com o vigor desesperado dos que preferem morrer a ceder um palmo de terreno”.

Um dos “pequenos dramas da vida íntima da ‘Seara’” — observou ainda Rodrigues Lapa — consistiu no “espírito de elite, que cava abismos quase intransponíveis entre o agente e o objeto da cultura”. No entanto, a “Seara Nova” opunha-se “à cultura como privilégio de classe, inacessível ao cidadão vulgar”. Assim, procedeu, desde os anos 30 aos anos 60, à publicação e ampla divulgação dos “Cadernos da ‘Seara Nova’” e dos “Textos Literários”. Rodrigues Lapa e António Sérgio foram os principais responsáveis pela seleção dos autores, a introdução de cada opúsculo e a organização de uma antologia sumária. Procurando sempre — afirmou Rodrigues Lapa — “um estilo claro, que fuja à retórica tradicional e a um gongorismo retorcido, em que o português culto ou semiculto de ordinário se compraz com delícia”.

Todas estas circunstâncias em momentos particularmente atribulados, com a sistemática repressão da censura e da polícia política, a PIDE e a DGS, estabeleceram uma filosofia e uma moral. Apesar de todas as adversidades e de todas as polémicas, a “Seara Nova” deixou um legado cívico e cultural dos mais notáveis dos últimos 100 anos.

Em Defesa de uma Democracia Social – por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], revista E, Expresso, 9 de Outubro de 2021, pp. 34/39 – com sublinhados nossos.

J.M.M.

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