“O 25 DE Abril, a força dos símbolos” – por António Valdemar, in Tempo Livre
“Portugal ficou diferente. Falta muito para o
desejável. Mas faltará sempre, aqui e em outros países democráticos, que
enfrentam os problemas atuais e procuram articulá-los com os grandes desafios
do futuro”
Tudo
aconteceu há 50 anos. Rompeu através da madrugada e ganhou uma energia
extraordinária através de todo o dia. A apoteose decorreu no 1.º de Maio. A
Liberdade era restituída, em 25 de Abril, com a poesia e a música de José
Afonso, sem recorrer aos tiros dos canhões e das espingardas. Nas ruas de
Lisboa, e um pouco por todo o país, os cravos vermelhos logo se transformaram
num dos símbolos vivos da revolução. Constituiu o ponto final de 50 anos de ditadura
imposta por Salazar, seguida por Marcello Caetano. A poesia, a música e as
artes plásticas registaram testemunhos impressionantes da prisão, da tortura, do
exílio e da saga da resistência. A Ode à Liberdade de Jaime Cortesão insistia no
repúdio ao «ódio fanático dos bonzos», ao «ciúme vil dos fariseus». Para louvar
«a cada novo dia e duro preço», o «sopro e a lei da criação». Era a exortação
para transpor a incerteza, a violência, a desigualdade e estabelecer uma cultura
de justiça, de tolerância e diálogo.
Outro
poeta, Sidónio Muralha, não podia sufocar este protesto veemente: «Já não há
mordaças, nem ameaças,/ nem algemas que possam impedir/ a nossa caminhada,/ em que
os poetas são os próprios versos dos poemas.» Ou, então, o clamor de Prometeu, recriado
por Joaquim Namorado: «Abafai-me os gritos com mordaças,/ maior será a minha
ânsia de gritá-los; /amarrai-me os pulsos com grilhetas,/ maior será a minha
ânsia de quebrá-las;/ rasgai a minha carne, triturai os meus ossos,/ o meu
sangue será a minha bandeira;/ meus ossos o cimento de uma outra humanidade,
/que aqui ninguém se entrega./ Isto é vencer ou morrer!»
Jorge
de Sena, do outro lado do mar enviava este poema repleto de angústia e alguma
esperança. «Eu não posso senão ser/ desta terra em que nasci. /Embora ao mundo pertença
/e sempre a verdade vença, /qual será ser livre aqui, /não hei-de morrer sem
saber. / Trocaram tudo em maldade, /É quase um crime viver./ Mas, embora
escondam tudo/ e me queiram cego e mudo, /Não hei-de morrer sem saber/ Qual a
cor da liberdade.»
Sophia
de Mello Breyner viveu e celebrou em Lisboa o 25 de Abril. Em plena revolução
deslocou-se a Caxias para acompanhar a libertação dos que estiveram privados de
liberdade. Resumiu num poema – ilustrado por Vieira da Silva – que ficou a ser
uma referência obrigatória: «Esta é a madrugada que eu esperava /O dia inicial
inteiro e limpo /Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitamos a
substância do tempo.»
O
programa do 25 de Abril anunciou – e cumpriu – a reposição das liberdades reprimidas
e castigadas durante meio século; o início da descolonização possível; a
oportunidade para concretizar as regras constitucionais que fundamentam um
Estado de Direito. Milhares e milhares de portugueses e suas famílias
encontravam-se dilacerados pela crueldade da guerra colonial, em três frentes
de combate: o espectro da morte, os pressentimentos, as insónias, os pesadelos
que nunca mais esquecem.
Os
poemas escaldantes de Manuel Alegre tornaram-se a voz da nossa própria voz:
«Foram dias foram anos a esperar por um só dia. /Alegrias. Desenganos. Foi o
tempo que doía /Com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia /Na
esperança de um só dia. Foram batalhas perdidas. Foram derrotas e vitórias./Foi
a vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias) / Mil encontros
despedidas. Foram vidas (foi a vida) /Por um só dia vivida./ (…) Fogos-fátuos cinza
fria. Musa minha que cantavas /A canção que se vestia com bandeiras nas
palavras: /Armas que o tempo tecia. Minha vida toda a vida / Por um só dia
vivida.»
No
romance Os Memoráveis, Lídia Jorge recriou testemunhos de intervenientes da
revolução e, ao mesmo tempo, os efeitos da passagem do tempo, não só acerca desses
protagonistas, mas dos que se evidenciaram na sociedade contemporânea. Caracterizam
a grandeza e as misérias dos portugueses, no dia-a-dia, e, em momentos históricos.
Dir-se-iam que permanecem como sobreviventes de um tempo já inalcançável.
A
leitura dos Memoráveis conduz-nos à ilusão revolucionária, à desilusão de muitos
e à travessia para conseguir a plenitude da democracia. A exaltação e o ceticismo
destacam-se, invariavelmente na poesia, nos Diários, nos contos, novelas e
romances de Miguel Torga.
É o
homem sempre irritado, receoso, sombrio, ressabiado, cujo mundo reside, apenas,
nele próprio. Basta ler e refletir na posição assumida, em 1976, num discurso
sobre o 25 de Abril, proferido em Arganil: «Hora angustiosa que nada fazia
prever em Abril de setenta e quatro, quando uma manhã de esperança raiou no
espírito de todos nós. Depois de meio século de negrura, o sol da liberdade
brilhou inesperadamente em Portugal. E foi, como sabeis, uma festa universal.
Depressa, porém, a tristeza voltou.
E a
palavra revolução, acolhida com benevolência até nos ouvidos, mais
refractários, em vez de, como outrora, significar uma rotura promissora e
fecunda, passou a evocar apenas a desordem à solta nas ruas, e o arbítrio e a
prepotência, ensarilhados na parada dos quartéis. Creio que nenhum português
consciente esquecerá até ao fim dos seus dias estes dois anos aziagos. Enganada
na sua boa fé, a alma da Nação foi durante eles indelével e dolorosamente
tatuada por todos os estigmas da desgraça.»
Qualquer
que seja a avaliação o 25 de Abril cerrou as grades das prisões políticas de
Caxias, do Aljube e de Peniche. Promoveu a formação de partidos, de pluralismo de
opinião e de crítica. Ao procedermos a um balanço sumário verificamos acidentes
de percurso. Todavia, a Constituição da República, estabeleceu as regras do exercício
do Estado de Direito e a enumeração dos objetivos fundamentais para o combate
inadiável à rotina e ao pensamento único; para reclamar os imperativos da mudança,
incutir a exigência de responsabilidade ética, estimular a ousadia e a inovação
para a transformação do País, mergulhado em estruturas arcaicas.
Concretizou-se
o programa do 25 de Abril, anunciado nessa madrugada histórica. Houve, de
imediato, a restituição das liberdades. Realizou-se a integração na Europa. Falta
muito para atingir o desejável, mas faltará sempre, aqui e em outros países livres
e democráticos, que dentro dos condicionalismos inevitáveis enfrentam os problemas
atuais e procuram articulá-los com os grandes desafios para o futuro.
O 25 DE Abril, a força dos símbolos –
por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências] – in Tempo Livre – Março/ Abril de 2024, p. 8 –
com sublinhados nossos; FOTO de Álvaro Carrilho.
J.M.M.
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