“Alexandre O’Neill Precisa-se” –
por António Valdemar
Estou
a vê-lo tal como o próprio Alexandre O’Neill se autoretratou: “moreno,
português, cabelo asa de corvo” (…) “sofre de ternura, bebe demais e ri-se…”. Estou
também a ouvi-lo num bate papo, sempre inesquecível, através das esquinas,
entre o Jardim do Príncipe Real e a Rua do Alecrim. Além da conversa fascinante,
desafiava-nos para ir comer uns carapaus fritos, com salada fresca, um tinto do
lavrador e a sair do barril. Depois era o café. Muito café. Fumava cigarros, uns
atrás dos outros.
Viajou muito. Andou de país em país. Viu museus e palácios. Comeu e bebeu
o que lhe apetecia em bons hotéis e bons restaurantes. Mas Lisboa permanecia
dentro dele. Era aqui o seu território: passar nas livrarias e alfarrabistas; ir
as tascas do Bairro Alto, frequentar antigos restaurantes que já não existem ou
se existem tem outra clientela.
O centenário do nascimento de Alexandre O'Neill (1924-1986) – que se vai
concluir a 19 de dezembro deste ano – permite recordar o Homem e a obra nas
suas varias componentes. Grande poeta, dos maiores da literatura portuguesa da
segunda metade do seculo XX, também se distinguiu pela intervenção cívica.
Entre os poetas e escritores da sua geração, Alexandre O'Neill foi,
porventura, o que se aproximou do público mais diversificado. Basta citar o
poema Gaivota, que transpôs as fronteiras nacionais, interpretado pela voz de Amália
e composição musical de Alain Oulman. Para o renome de Alexandre O'Neill também
contribuíram as intervenções frequentes na televisão e noutros órgãos de comunicação,
tais como no Diário de Lisboa, n'A Capital e n‘A Luta.
A política acompanhou-o sempre. Na oposição ao salazarismo, no combate ao
marcelismo e, depois do 25 de Abril, na rejeição dos totalitarismos partidários.
Era um defensor acérrimo do pluralismo de expressão e critica. Manteve, e em circunstâncias
bastante difíceis, a frontalidade da opinião. Orientava-se por exigências éticas
princípios democráticos, contra a imposição de compêndios estéticos e cartilhas
literárias. Insurgiu-se contra tudo que lhe condicionava a liberdade pessoal.
Poucos escritores e poetas denunciaram, como Alexandre O'Neill, os ridículos,
as frivolidades, o absurdo, a farsa da sociedade portuguesa. Tal como Gervásio
Lobato na célebre “Lisboa em Camisa”. O inconformismo visceral de O'Neill destaca-se
quer no volume “Poesia Completa”, introdução de Clara Rocha; quer nos textos
dispersos em jornais recolhidos por Maria Antónia de Oliveira, com o titulo “Portugal
em forma de Assim”.
Mostrou-se implacável perante “o Pais engravatado todo o ano/ a assoar-se
na gravata por engano, /o incrível pais da minha tia, / trémulo de bondade e de
aletria”. Ou quando se debatia com lisboetas que o indignavam: “Tu não mereces esta
cidade/não mereces/ esta roda de náusea em que giramos/ até a idiotia/ esta
pequena morte/ e o seu minucioso e porco ritual/ esta nossa razão absurda de
ser”. (…) “Tu és da cidade onde vives por um fio/de puro acaso/ onde morres ou
vives não de asfixia/ mas às mãos de uma aventura de um comércio puro/sem a
moeda falsa do bem e do mal”.
Não poupava, Alexandre O'Neill, a insinuação ostensiva e presunçosa dos
intelectuais de serviço que mudam de ideias quando convém, sem qualquer espécie
de vergonha: “Todos os dias os encontros” – escreveu – “Evito-os. Às vezes sou
obrigado a escuta-los” (…) “Mas também os aturo por escrito. No livro. No
jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos. (…). Querem vencer, querem
convencidos, convencer. Vençam lá à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear”.
Na criação literária de O'Neill, predomina uma poesia desenvolta onde se
acentua a ironia, o sarcasmo e o humor negro; e também outra poesia de fortes tensões
líricas e elegíacas. Faz a exaltação da mulher, celebra a volúpia do Amor: “defendo-me
da morte quando dou/meu corpo ao seu desejo violento/e lhe devoro o corpo
lentamente”. Também aprofundou as interrogações que colocam o homem perante a
angústia da vida e o desespero da morte.
Buscou quer na poesia, quer na prosa, quer ainda no ofício da tradução,
todos os recursos de cada palavra; desarticulava, sempre que necessário, as amarras
da gramática tradicional. Procurou transmitir gestos, tiques e atitudes.
Inventava novas palavras, incluía outras extraídas de alfarrábios e ainda mais
outras apanhadas na rua ou no café. Este foi mais outro notável contributo da sua
escrita. Deu maior amplitude à língua portuguesa.
Alexandre O'Neill faleceu com pouco mais de 60 anos. Já não era novo, mas
também não era velho. Morreu destroçado por crises cardíacas e hospitalizações
penosas. Ficou, a certa altura, um velhinho magro, pálido e de bengala, igual àqueles
velhinhos à espera da morte nos bancos dos jardins.
Contudo, mal começava a falar, esquecíamo-nos do espectro físico em que
se transformara. Logo nas primeiras palavras, emergia o seu comentário
arrasador, a propósito das últimas notícias literárias e politicas, que
acompanhava com à maior atenção.
Recebeu, em vida, quase todas as homenagens possíveis para um intelectual
politicamente incorreto, a exceção do Prémio Camões ainda não instituído. Entre
os poetas e escritores da sua geração, Alexandre O'Neill foi, porventura, o que
mais se aproximou do grande público.
Recorreu à ironia e ao sarcasmo para a desmontagem de hábitos e rotinas
ancestrais. Daí o paralelo inevitável entre a sua obra, a de Nicolau Tolentino
e a de Cesário Verde. Nos três podemos encontrar afinidades, embora com
escritas diferentes, visões diferentes e os condicionalismos de épocas
diferentes. De todos, Alexandre O’Neill continua mais próximo de nós.
Embora exista outra classe social e outra classe politica, em numerosos
aspetos, mantém hábitos e costumes inveterados. Revelam-se refratários à mudança.
Falta-lhes ousadia para ultrapassar constrangimentos ancestrais para atingir as
grandes reivindicações do cidadão da Europa.
“Alexandre O’Neill Precisa-se” – por António Valdemar [Jornalista,
carteira profissional número Um; sócio efetivo da Academia das Ciências], in Figueirense,
31 de Janeiro 2025, p. 18 – com sublinhados nossos; gravura de Álvaro Carrilho.
J.M.M.
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