domingo, 2 de fevereiro de 2025

ALEXANDRE O’NEILL PRECISA-SE – POR ANTÓNIO VALDEMAR

 

Alexandre O’Neill Precisa-se” – por António Valdemar

Estou a vê-lo tal como o próprio Alexandre O’Neill se autoretratou: “moreno, português, cabelo asa de corvo” (…) “sofre de ternura, bebe demais e ri-se…”. Estou também a ouvi-lo num bate papo, sempre inesquecível, através das esquinas, entre o Jardim do Príncipe Real e a Rua do Alecrim. Além da conversa fascinante, desafiava-nos para ir comer uns carapaus fritos, com salada fresca, um tinto do lavrador e a sair do barril. Depois era o café. Muito café. Fumava cigarros, uns atrás dos outros.

Viajou muito. Andou de país em país. Viu museus e palácios. Comeu e bebeu o que lhe apetecia em bons hotéis e bons restaurantes. Mas Lisboa permanecia dentro dele. Era aqui o seu território: passar nas livrarias e alfarrabistas; ir as tascas do Bairro Alto, frequentar antigos restaurantes que já não existem ou se existem tem outra clientela.

O centenário do nascimento de Alexandre O'Neill (1924-1986) – que se vai concluir a 19 de dezembro deste ano – permite recordar o Homem e a obra nas suas varias componentes. Grande poeta, dos maiores da literatura portuguesa da segunda metade do seculo XX, também se distinguiu pela intervenção cívica.

Entre os poetas e escritores da sua geração, Alexandre O'Neill foi, porventura, o que se aproximou do público mais diversificado. Basta citar o poema Gaivota, que transpôs as fronteiras nacionais, interpretado pela voz de Amália e composição musical de Alain Oulman. Para o renome de Alexandre O'Neill também contribuíram as intervenções frequentes na televisão e noutros órgãos de comunicação, tais como no Diário de Lisboa, n'A Capital e n‘A Luta.

A política acompanhou-o sempre. Na oposição ao salazarismo, no combate ao marcelismo e, depois do 25 de Abril, na rejeição dos totalitarismos partidários. Era um defensor acérrimo do pluralismo de expressão e critica. Manteve, e em circunstâncias bastante difíceis, a frontalidade da opinião. Orientava-se por exigências éticas princípios democráticos, contra a imposição de compêndios estéticos e cartilhas literárias. Insurgiu-se contra tudo que lhe condicionava a liberdade pessoal.

Poucos escritores e poetas denunciaram, como Alexandre O'Neill, os ridículos, as frivolidades, o absurdo, a farsa da sociedade portuguesa. Tal como Gervásio Lobato na célebre “Lisboa em Camisa”. O inconformismo visceral de O'Neill destaca-se quer no volume “Poesia Completa”, introdução de Clara Rocha; quer nos textos dispersos em jornais recolhidos por Maria Antónia de Oliveira, com o titulo “Portugal em forma de Assim”.

Mostrou-se implacável perante “o Pais engravatado todo o ano/ a assoar-se na gravata por engano, /o incrível pais da minha tia, / trémulo de bondade e de aletria”. Ou quando se debatia com lisboetas que o indignavam: “Tu não mereces esta cidade/não mereces/ esta roda de náusea em que giramos/ até a idiotia/ esta pequena morte/ e o seu minucioso e porco ritual/ esta nossa razão absurda de ser”. (…) “Tu és da cidade onde vives por um fio/de puro acaso/ onde morres ou vives não de asfixia/ mas às mãos de uma aventura de um comércio puro/sem a moeda falsa do bem e do mal”.

Não poupava, Alexandre O'Neill, a insinuação ostensiva e presunçosa dos intelectuais de serviço que mudam de ideias quando convém, sem qualquer espécie de vergonha: “Todos os dias os encontros” – escreveu – “Evito-os. Às vezes sou obrigado a escuta-los” (…) “Mas também os aturo por escrito. No livro. No jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos. (…). Querem vencer, querem convencidos, convencer. Vençam lá à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear”.

Na criação literária de O'Neill, predomina uma poesia desenvolta onde se acentua a ironia, o sarcasmo e o humor negro; e também outra poesia de fortes tensões líricas e elegíacas. Faz a exaltação da mulher, celebra a volúpia do Amor: “defendo-me da morte quando dou/meu corpo ao seu desejo violento/e lhe devoro o corpo lentamente”. Também aprofundou as interrogações que colocam o homem perante a angústia da vida e o desespero da morte.

Buscou quer na poesia, quer na prosa, quer ainda no ofício da tradução, todos os recursos de cada palavra; desarticulava, sempre que necessário, as amarras da gramática tradicional. Procurou transmitir gestos, tiques e atitudes. Inventava novas palavras, incluía outras extraídas de alfarrábios e ainda mais outras apanhadas na rua ou no café. Este foi mais outro notável contributo da sua escrita. Deu maior amplitude à língua portuguesa.

Alexandre O'Neill faleceu com pouco mais de 60 anos. Já não era novo, mas também não era velho. Morreu destroçado por crises cardíacas e hospitalizações penosas. Ficou, a certa altura, um velhinho magro, pálido e de bengala, igual àqueles velhinhos à espera da morte nos bancos dos jardins.

Contudo, mal começava a falar, esquecíamo-nos do espectro físico em que se transformara. Logo nas primeiras palavras, emergia o seu comentário arrasador, a propósito das últimas notícias literárias e politicas, que acompanhava com à maior atenção.

Recebeu, em vida, quase todas as homenagens possíveis para um intelectual politicamente incorreto, a exceção do Prémio Camões ainda não instituído. Entre os poetas e escritores da sua geração, Alexandre O'Neill foi, porventura, o que mais se aproximou do grande público.

Recorreu à ironia e ao sarcasmo para a desmontagem de hábitos e rotinas ancestrais. Daí o paralelo inevitável entre a sua obra, a de Nicolau Tolentino e a de Cesário Verde. Nos três podemos encontrar afinidades, embora com escritas diferentes, visões diferentes e os condicionalismos de épocas diferentes. De todos, Alexandre O’Neill continua mais próximo de nós.

Embora exista outra classe social e outra classe politica, em numerosos aspetos, mantém hábitos e costumes inveterados. Revelam-se refratários à mudança. Falta-lhes ousadia para ultrapassar constrangimentos ancestrais para atingir as grandes reivindicações do cidadão da Europa.

Alexandre O’Neill Precisa-se” – por António Valdemar [Jornalista, carteira profissional número Um; sócio efetivo da Academia das Ciências], in Figueirense, 31 de Janeiro 2025, p. 18 – com sublinhados nossos; gravura de Álvaro Carrilho.

J.M.M.

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