quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

REGICÍDIO - UM TESTEMUNHO "SUSPEITO" (CONCLUSÃO)




Neste artigo final, com extractos dos textos publicados por Aquilino Ribeiro em 1922 e 1923, na revista Seara Nova, procuramos trazer a público as impressões, que um dos participantes directos nos acontecimentos, deixou como testemunho. Sabemos de antemão que não é imparcial nas suas análises, mas é um autor muito conhecido e que no ano passado o Almanaque Republicano dedicou alguma atenção a propósito da trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional.

Hoje pegamos no artigo publicado em 1 de Março de 1923, no nº 9, da referida revista, p. 226-229, para retirarmos algumas opiniões de Aquilino Ribeiro sobre D. Carlos e a família real. Dizia então Aquilino:

[...] Um rei com mão forte e inteligente poderia ter desviado o curso dos acontecimentos, e ter aproveitado essa pleiade que se nirvanizou ou se perdeu em guerrilhas singulares? De certo. Mas tudo se conjurava para que D. Carlos não fôra esse príncipe necessário e salvador.
Era um Bragança na acepção pejorativa do nome. «Os meus defeitos procedem de duas causas: - confessava ele, segundo os termos de Ramalho [Ortigão] - primeira, a hereditariedade na gestação do meu ser; segunda, a influência do meio em que nasci e me criei». Em D. Carlos, a matéria vibrátil - aquela sua timidez nativa, gosto da comodidade, prespicácia que não inteligência, bonomia pachorrenta e tolerante, todo aquele «não te rales» para tudo o que estivesse fora da sua esfera particular, pois aí não arregimentada a usos e preceitos, a sua actividade mostrava-se viva e expedita - era de todo Bragança. Coburgo no físico, na sensibilidade e carácter neto bem herdado daquele a quem a esposa bradava, num acesso de cólera contra o pusilânime: antes rainha uma hora que duquesa a vida inteira.

Tão pouco teve a educação do príncipe providencial. Qual poderia ser? De certo não essa que lhe ministraram, mecânica de todo, sem presa na alma, Tito Lívio, as armas, a dança, as línguas, de mistura com esse leccionário, todo de vitral, depressivo que não elevador, das glórias passadas dos seus avós e vassalos dos seus avós. Estou a ver o professor de história percorrer com dedo trémulo o mapa, em que poucas são as enseadas e terras remotas, que, no dizer de Vieira, se não infamassem do sangue português. Estou a ver o velho António Augusto de Aguiar penetrando-se e ao discípulo do veneno subtil que levanta o sacudir de todos esses brocados e nobres velharias duma história majestosa. E sinto o adolescente encher-se de ânsia e de inconsolável amargura. [...]


Estava-lhe na massa do sangue esse desinteresse pela causa pública, senão fastio atávico, que a pedagogia ad usum Delphini não saberia corrigir, e um concurso de cousas, uma péssima herança tanto social como política, a noção de pequenez da sua terra, ao compará-la - a piolheira - com outras de intenso trato e vulgo desconforme, noção que conta para todo o portuguesinho e muito mais para um neto de megalómanos, e desalenta, isso e a peia constitucional, esse temível contra-senso que ou torna o soberano logro dos governantes ou o povo logro de soberano, sempre em prejuizo do povo, vieram agravar esse mal ingenito dos Braganças - o desdém pela grei. Podia a Corte, como um crisol de nobreza e virtude, depurar esses vícios de de conformação ou externos do príncipe. Mas a Corte, espelho fiel daquela que cem anos antes Mme. Junot cobriu de ridículo e seu marido de ultrajes, carecia de inteligência e tacto diplomático e até de graça. Exultando parvoinhamente, tanto se não mais que o governo então no poder, subscreveu ao casamento de D. Carlos com D. Maria Amélia de Orleans, destronada e odiosa ao piovo sobre que reinou muitos séculos. E erro foi este com repercussões nefastas na vida doméstica dos Braganças e nos negócios políticos e internacionais da nação.

Uma maquinação surda, de longo folego, simulaneamente empenhada junto do princípe e da princesa, devia determinar essa aliança que a cortesania fácil baptisou de romance de amor. [...]


No domínio da política internacional, o consórcio Bragança-Orleans foi um lamentável desvio. Sob o ponto de vista de política interna, teve também a sua repercussão perniciosa, se não tão sensível, não menos eficiente. D. Carlos, se não era um liberal determinado, não vergava também aos preconceitos religiosos dos seus avós. Não era papa-hóstias como a caterva de D. Joões, nem um timorato perante os juizos de Deus como D. Pedro. Em alguma coisa, já que não em riquezas ou prestígio, devia ser herdado D. Carlos pela linha materna. Às cerimónias religiosas concorria como rei por obrigação. Escreveu Guerra Junqueiro, não sei com que fundamento, que, enquanto se celebravam exéquias por alma do pai, D. Carlos caçava.

Não era fanático, a princesa, ao contrário, conservava viva a tradição de piedade e de fervor que reinavam na família. D. Carlos tinha recebido uma acção educação laica, ministrada por homens que professavam as liberdades do século; D. Maria Amélia tinha sido formada pelas irmãs do Sacré-Coeur.[...]


Na personalidade de D. Carlos há todavia uma distinção a fazer: o rei e o homem. O rei era péssimo, o homem, pelo que li, pelo que ouvi, era óptimo.

No Campo das Salésias pude divisá-lo à vontade seguindo com visível desvanecimento e orgulho as evoluções duma companhia de artilharia, ao lado de Kaiser Guilherme II, seu hóspede. Era um homem sólido, de estrutura maçiça sobre o obeso, todavia não desprovido de agilidade. Pisava com facilidade e potência. Olhos móveis e maliciosos; filamento vermelhos de sangue a sulcarem-lhes a tez rósea do rosto, duma gordura reluzente e simpática; cabelos com leves relfexos ruivos, ligeiramente encaracolados. Em tudo um desses Coburgo que veem nas oleografias, cada vez mais acentuado à medida que os anos passavam por ele.

Guardei esta imagem do homem, a qual, mais tarde, quando a paixão política arrefeceu e me deixou a faculdade de exame, veio ilustrar luminosamente actos seus do domínio particular, tornados públicos, de bonomia, de delicadeza, de compreensível altivez.


Nos próximos dias propomo-nos continuar a trazer outras fontes da época e os acontecimentos vistos por outros intervenientes. Para concluir propomo-nos elaborar uma bibliografia detalhada sobre os acontecimentos, desde a época até aos nossos dias.

A.A.B.M.

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