quarta-feira, 12 de março de 2008

EPITÁFIO - POR MIGUEL DE UNAMUNO [PARTE I]


EPITÁFIO - por Miguel de Unamuno [Parte I]

[pré-publicação de um texto de M. Unamuno, que faz parte da Antologia sobre esse importante pensador, intitulada "Portugal, Povo de Suicidas" e a sair brevemente sob edição da Livraria Letra Livre (com tradução de Rui Caeiro)]

"Há uns oito dias atrás falava eu nesta cidade de Salamanca com o grande poeta português Guerra Junqueiro, que andava evitando presenciar os acontecimentos que já então se previa haviam de ter lugar. E falando-me do Rei D. Carlos, após salientar uma vez mais o rebaixamento moral desse pobre monarca que teve um fim tão trágico, acrescentou: «Não sei como isto vai acabar; mas acreditando, como acredito, que em Portugal há uma família a mais e que o Rei é um monstro de perversão, se eu daqui pudesse matá-lo com o pensamento, fá-lo-ia.» Poucos dias depois, anteontem, domingo 2, quando Guerra Junqueiro estava ainda nesta cidade, chegou a notícias do assassínio do Rei D. Carlos e do príncipe herdeiro D. Luís Filipe.

Suponho que os meus leitores estão ao corrente dos acontecimentos. O rei, depois de abandonado por todos os políticos, que desconsiderara e ofendera, teve que colocar-se nas mãos de João Franco, que inaugurou uma era de ditadura e favoreceu as manobras reais, preparando a justificação dos adiantamentos que o monarca tinha conseguido do Tesouro Público. Dizia-se e repetia-se que toda a agitação em Portugal era uma tempestade num copo de água, obra unicamente dos políticos. Eu mesmo cheguei a acreditar nisso. No entretanto, o partido republicano crescia e ia engrossando com homens prestigiosos que para ele mudavam, vindos das fileiras monárquicas. Preparava uma sublevação popular para fins de Janeiro; foi denunciada a conspiração e os implicados foram presos e tiveram de fugir. E quando menos se esperava chega a notícia do assassínio do rei e do príncipe em Lisboa.

Disse-se que moralmente foi João Franco, o ditador, quem o matou. Eu creio ser mais exacto o que dizia Guerra Junqueiro: foi mesmo um suicídio.

O Rei D. Carlos - que Deus lhe perdoe - não precisava de João Franco para atrair a si o ódio do seu povo. Era quase unanimemente execrado. Tinha conseguido unir os seus súbditos num sentimento comum a seu respeito; um sentimento de ódio misturado com desprezo. Está correcto que de todos os lados a imprensa tenha condenado o assassínio; assim o pede a moral que professamos com maior ou menor sinceridade; mas como penso que acima de todos os amores se deve colocar o amor à verdade, tenho que dizer que os tiros sobre o rei partiram das próprias entranhas do povo português. E se a execução do Rei D. Carlos é execrável, é-o como o é a execução de qualquer réu. D. Carlos estava julgado e condenado pelo seu povo.

Estive por diversas vezes em Portugal. Convivi com muitos portugueses e a nenhum ouvi alguma vez defender o defunto rei. Não tinha, em rigor, um único partidário. Contavam-se a seu respeito coisas execráveis e horrendas. Ouvi a pessoas que com ele trataram, até a um que foi seu ministro, coisas realmente incontáveis em público


Oliveira Martins, esse enorme talento - acaso o mais robusto que Portugal teve no século passado -, deixou o Ministério dizendo que o rei era um monstro de perversidade. Há que ouvir contar as circunstâncias que precederam o suicídio de Mouzinho de Albuquerque, o herói de África, que ao regressar do seu governo colonial, rodeado de imenso prestígio, foi nomeado preceptor dos filhos do rei e acabou por suicidar-se.

Talvez a história algum dia venha a guardar alguma coisa de tudo isto - muito já a piedade ou o servilismo mergulhou no esquecimento - e a julgar o desgraçado D. Carlos
".

(continua)

[Miguel de Unamuno, in "Portugal, Povo de Suicidas" (a sair em breve), Ed. Letra-Livre, 2008]

J.M.M.

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