EPITÁFIO - por Miguel de Unamuno [Parte II]
"Mas de entre as muitas coisas, todas elas vergonhosíssimas, que ouvi acerca do infeliz monarca, a que porventura se me afigura mais grave, se bem que de um ponto de vista de moral corrente possa aos outros não o parecer, é que ele desprezava o seu povo. O pecado mais grave de D. Carlos, o seu pecado imperdoável, é que desprezava Portugal. Costumava dizer, falando da pátria onde reinava: Isto é uma piolheira. E assim como o Evangelho diz que pecados contra o Espírito Santo não têm remissão nem nesta vida nem na outra, assim é pecado irremissível o desprezo de um soberano pelo seu povo. A circunstância de não ser um homem privado de inteligência ou sequer vulgar, agrava a sua culpa a este respeito. O defunto D. Carlos não era um idiota nem se pode dizer que fosse uma inteligência inteiramente vulgar. O que ele foi sempre foi um egoísta astuto e um desenfreado gozador da vida. O seu corpo era reflexo da sua alma: nele o físico revelava o moral. Era do tipo de Falstaff.
E este desgraçado monarca fez uma espécie de pacto com João Franco, o ditador, a quem muitos agora culpam da morte daquele e do seu filho. Incluindo a própria rainha viúva. O pacto consistiu em que Franco daria ao rei aquilo de que este necessitava, ouro, justificando de uma ou de outra maneira os adiantamentos ou antecipações ilegais do Tesouro Público e aumentando-lhe a lista civil, e o rei daria a Franco o que a este apetecia com frenesi do monomaníaco: o poder.
Porque o apetite do poder que atingira Franco era uma verdadeira loucura. Recordando o que se conta do negociante Yanque ao dizer ao seu filho: my son, make money, honestly if you can, but make Money (meu filho, faz dinheiro, honradamente se puderes, mas faz dinheiro), - cabe dizer que o lema de Franco era: conserva o poder, honradamente se puderes, mas conserva-o.
Entre os portugueses que conheço, até os mais hostis ao ex-ditador reconhecem, quando falam serena e desapaixonadamente, que Franco tinha de princípio certas boas intenções e propunha-se, caso lhe fosse possível, introduzir ordem e rigor na desconcertada e corrompida administração pública portuguesa. Mas antes disso, e sobretudo, o seu propósito era exercer e deter o poder. Para lograr levar a cabo esses seus supostos bons propósitos havia um grande obstáculo, que era a própria causa do seu poder: ter transigido com as artimanhas do rei. É difícil cimentar uma administração honrada com um poder que deve a sua origem a uma violação da estrita honradez pública.
Franco cometeu imensos atropelos para reduzir o montante das dívidas do rei. E chamar-lhes dívidas é o menos que se pode dizer... No fundo, para o ditador tratava-se, mais do que ser honrado, de parecê-lo. A virtude era para ele uma arma. Ao serviço do seu frenético apetite de mandar tinha uma enorme dose de hipocrisia. Mentia com o coração na mão, segundo palavras de Guerra Junqueiro. Assim chegou a enganar muita gente acerca dos seus propósitos de regeneração económica. E contribuía para que nele acreditassem o facto de João Franco, sendo riquíssimo, dono de uma enorme fortuna pessoal, estar livre da suspeita de perseguir o lucro.
E ambos, o rei e o seu ministro, desconheciam o seu povo. O que nada tem de estranho, visto que o desconhecia - e continua talvez a desconhecer - a maior parte dos portugueses europeizantes ou europeizados e tão pouco o conhecemos muitos dos que, há algum tempo, atentamente o tomamos como objecto do nosso estudo".
(continua)
[pré-publicação de um texto de M. Unamuno, que faz parte da Antologia sobre esse importante pensador, intitulada "Portugal, Povo de Suicidas" e a sair brevemente sob edição da Livraria Letra Livre (com tradução de Rui Caeiro)]
J.M.M.
1 comentário:
Se em todas as épocas existem suicidas, nem todas elas os produzem saídos da mesma massa. Os que vamos ver nestas páginas são pessoas que viviam intensamente os problemas, estavam no centro deles e foram mesmo origens de alguns. Não foi, pois, a incomunicabilidade que os empurrou para a morte, mas talvez o excesso de comunicação com o Portugal que viam e que desfilava por eles como um funeral.
Para eles, a morte estava presente no mais despreocupado despregar de mãos. Viver a vida e cortá-la ao primeiro transtorno, após uma série de outros que já não se suportaram mais, corroídos pelo banal dia-a-dia gastos pela «doença de pátria», não era estado de incomunicabilidade.
A inexistência de meios, a falta de estímulos, a incompreensão e o desapego a que foram sujeitos, os homens da “bela arte de escrever”, como um Antero de Quental, um Camilo Castelo-Branco, um Júlio César Machado ou um José Fontana, entre muitos outros, provoca-lhes um sentimento de decepção para com a comunidade em que vivem. A morte apossara-se-lhe das vidas. Ninguém sabe doutra coisa, ninguém tem outra maneira de se afirmar – de protestar, de procurar a resignação – senão através do suicídio.
Sãos os tempos das crises de consciência, em que o mundo e a sua moral subvertida nos transportam, tendo sempre como sombra o ruir dos velhos alicerces, a uma sociedade feita de angústia, opressão e instabilidade. São as ditaduras veladas do rotativismo político, ou declaradas como o franquismo. São as viciações e as desonestidades do aparelho governativo e dos seus resultados eleitorais, com o consequente descrédito total do parlamentarismo monárquico. São as desconfianças permanentes do sistema económico e financeiro, a par do desespero, da impotência e da derrota das questões internacionais. São os desânimos pelo crescimento do obscurantismo e da ignorância, acompanhados pelo desenraizamento de quem se identifica como responsável e portador de uma natureza defeituosa, da qual, apenas se conhece a doença, mas não a cura. Em suma, são os tempos em que apenas se vivia a renúncia, a indiferença, o cansaço e o pessimismo.
Portugal é, por esta altura, um desespero trágico que aflige os melhores filhos do seu possível orgulho nacional. Alexandre Herculano exclamara: «isto dá vontade da gente morrer!». Rodrigo da Fonseca murmurara: «nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos é triste»? E no final de um soneto António Nobre apregoa: «Amigos, que desgraça nascer em Portugal! [...] Todos nós falhamos… Nada nos resta. Somos uns perdidos. Choremos, abracemo-nos, unidos! Que fazer? Porque não nos suicidamos?»
Curioso, ou não, o facto de nem Herculano, nem Rodrigo da Fonseca, nem mesmo António Nobre constarem no rol dos que se suicidaram.
O suicídio não é, apesar de tudo, uma «solução nacional», de escolha prioritária entre os portugueses.
Embora envolvendo um número considerável de notáveis da sociedade portuguesa e de se viver num período complexo, os suicídios em Portugal aqui relatados não têm obrigatoriamente contornos de reacção colectiva a qualquer estado de coisas existente.
As histórias dos suicídios aqui apresentadas são apenas uma parte de tantas outras que ocorreram durante esse período que medeia entre o início da segunda metade do século XIX e vai até aos anos Trinta do século XX.
São figuras que se destacaram nos diversos campos da vida nacional e que optaram por pôr termo à vida recorrendo ao suicídio.
Apresentadas em dois blocos, em que o primeiro, de José Fontana a Florbela Espanca, contem exposição mais detalhada de cada uma das histórias, esta relação de 17 suicidas famosos ocupa a maior parte deste trabalho.
O segundo bloco, que começa em 1856 e se estende até 1934, resume-se a pequenas notas de cada uma das 30 ocorrência expostas.
São pois, um total de 47 vultos envolvidos num final de vida que é comum a todos eles.
Em todos os casos tratam-se de situações de suicídio que estão recordadas nas páginas da nossa memória histórica e que aqui se evocam sem qualquer intenção apologética ou de incentivo mais ou menos velado.
A finalizar esta introdução, resta deixar uma palavra de agradecimento ao Dr. Armando Moreno que, com o seu livro Glória e Suicídio, muito contribuiu para que estas Histórias de Suicídios Famosos em Portugal fossem possíveis, com a inclusão de muito material de sua autoria que enriquece consideravelmente o presente trabalho.
Que estas Histórias de Suicídios Famosos em Portugal saibam honrar a obra do mestre e venham continuar a mesma utilidade informativa.
São histórias de famosos que respondem aos problemas da vida com a solução da morte. São alguns dos melhores nomes que Portugal tem na sua História.
Ao suicidarem-se é um pouco de Portugal que se suicida.
In
http://www.europress.pt/SuicidiosFamosos/SuicidiosFamosos.htm
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