quarta-feira, 12 de março de 2008

EPITÁFIO - POR MIGUEL DE UNAMUNO [PARTE III]


EPITÁFIO - por Miguel de Unamuno [Parte III]

"O povo português tem, como o galego, fama de ser um povo sofrido e resignado, que tudo suporta sem protestar, a não ser passivamente. E, no entanto, há que ter cuidado com povos como esses. A ira mais terrível é a dos mansos. Nem me espanta que no complexo sentimento produzido pela notícia do regicídio, na alma dos portugueses aqui imigrados, entre em não pequena medida algo de orgulho nacional. Condenavam a execução, mas pareciam dizer: «vejam do que ainda somos capazes». Um destes imigrados, ao ler nos jornais que um dos regicidas era espanhol, deixou escapar este desabafo: «não, não, eram todos portugueses, tenho a certeza». Sem qualquer cumplicidade no acto, ainda que remota, ao serem surpreendidos pela notícia, orgulhavam-se de que na sua pátria tivesse havido homens com a coragem suficiente para levar a cabo essa execução terrível, da maneira como o fizeram, cara a cara e expondo-se, e não como Morral atentou contra os nossos reis no dia em que se casaram, tomando precauções para poder escapar-se.

E então eu disse a Guerra Junqueiro da diferença grande que existe entre os anarquistas galegos e catalães. Havendo como há em La Coruña, relativamente, tantos ou mais anarquistas do que em Barcelona – eu creio que mais -, na capital galega não tem havido atentados à bomba, desses perpetrados por um homem isolado actuando sem risco para si, enquanto na capital catalã os tem havido com deplorável frequência; por outro lado os operários de La Coruña já andaram, em consequência de uma greve, a combater a tiro nas ruas e de peito descoberto, coisa que não sucedeu em Barcelona. E o sangue português é o mesmo que o galego.

Portanto, nem o Rei D. Carlos nem João Franco conheciam o seu povo. E aquele demonstrou cabalmente não o conhecer nas suas famosas declarações ao redactor de Le Temps, declarações que constituíam uma verdadeira provocação à mansidão de um povo. Este dormia e rei e ditador juntos despertaram-no. É muito doloroso mas o certo é que a consciência dos povos adormecidos só desperta com actos de violência. E é ainda mais doloroso porque no comum dos casos não chega um abanão apenas; o dormente volta a adormecer, embora de um sono mais ligeiro e necessita de nova excitação. Mas pondo de parte o caso concreto, há que reconhecer todo o trágico da escravidão de um monarca.

Um presidente do Conselho de Ministros, um presidente da República, é um homem que se dedicou à política, escolhendo com mais ou menos consciência e determinação essa profissão; é alguém que procurou o lugar, apresentando a sua candidatura ou deixando que outros a apresentassem. Um rei, não. Um rei é um escravo de nascimento que, como quase todos os nascidos em escravidão, não têm força de vontade nem lucidez para se libertar das cadeias com que nasceu. Não seria terrível obrigar os filhos mais velhos a seguir a profissão dos seus pais? Não consideraríamos que era uma tirania intolerável? Podia falar-se de abdicações. Mas é muito raro, raríssimo, que os que nasceram para reis sejam capazes de abdicar. Aqui, em Espanha, abdicou do trono D. Amadeu; mas este secundogénito da Casa de Sabóia não nasceu para rei de Espanha nem para tal foi criado. E por isso não estava imbuído dessa espécie de honor régia de que os pobres reis são vítimas, como quase todos somos vítimas da honra especial da nossa profissão ou da nossa classe.
Escrevi uma vez, ao falar do socialismo, que compreendo perfeitamente que uma pessoa se faça socialista tanto por amor aos ricos como por amor aos pobres, pois o que liberta a estes da sua pobreza libertará aqueles da sua riqueza. Assim, compreendo que nas convicções republicanas de alguém pese um pouco um certo sentimento de compaixão pelos desgraçados dos reis, levando em conta que aquilo que liberta os bons povos dos maus reis libertará os bons reis dos maus povos. E é tal a condição dos reis que ninguém considera os atentados de que são vítimas ao mesmo nível de qualquer outro atentado a um particular. «São ossos do ofício», contam que disse D. Afonso XIII a seguir a um dos atentados contra si dirigidos. Se bem que o regicídio seja considerado crime, há que reconhecer que a maior parte das vezes é um crime de direito público, não de direito privado.

E neste caso concreto do regicídio de D. Carlos não se deve perder de vista que foi levado a cabo num país como Portugal, onde a pena de morte foi abolida há já algum tempo e onde chegou a haver distúrbios públicos para impedir que se executasse um condenado a ela. É mais uma prova do que é a ira do manso. Nesse povo brando, pacífico, sofrido e resignado, mas por dentro cheio de paixão, os crimes de sangue são raros, muito raros, raríssimos; mas entre os que ocorrem muitos parece haver que são mais atrozes e violentos do que aqui, em Espanha, onde por desgraça tais crimes são mais frequentes, muito mais frequentes do que lá.

Não tenho dúvida de que este epitáfio parecerá a mais de um leitor um tanto implacável e nada piedoso. Acredito, não obstante, que a suprema piedade é a da verdade e procurei dizer aquilo que dentro de dois, quatro ou vinte anos diria sobre esta morte. Um rei é sempre um sujeito histórico; como tal o considerámos. E a dor que a sua morte causa, mesmo nos seus parentes, próximos e amigos - quando os tem verdadeiros -, é uma dor histórica ou, melhor dizendo, é uma dor litúrgica e oficial. O terrível Fado, ao colocá-los fora da condição geral doméstica dos demais homens, colocou-os fora dos comuns
sentimentos domésticos. E para concluir cabe dizer: descanse em paz o infortunado D. Carlos, mas descanse Portugal também em paz. Se é que a um povo, e a um povo
como o de Portugal, se pode desejar descanso.

Salamanca, Fevereiro de 1908
" [Miguel de Unamuno]

[pré-publicação de um texto de M. Unamuno, que faz parte da Antologia sobre esse importante pensador, intitulada "Portugal, Povo de Suicidas" e a sair brevemente sob edição da Livraria Letra Livre (com tradução de Rui Caeiro)]

J.M.M.

1 comentário:

Anónimo disse...

Um Rei, um Presidente e um chefe de Governo são assassinados no mesmo País, na mesma cidade, e no mesmo ambiente de fúria.
O rei é D. Carlos. O presidente é Sidónio Pais. O chefe de Governo é António Granjo.
O país é Portugal. A cidade é Lisboa. E o ambiente é o dos anos 1908 a 1921.
Não há memória de em tão curto espaço de tempo ter acontecido tanta tragédia e tanto mistério como se verificou em Portugal no decorrer desses anos. Poucos acontecimentos políticos do Século XX são tão enigmáticos e horrorosos.
Morreu um Rei que reinava, morreu um Presidente que presidia, morreu um chefe de Governo que governava.
O rei assassinado no Terreiro do Paço em 1908, o presidente morto no Rossio em 1918, o chefe de governo massacrado no Arsenal em 1921 é um passado que importa sempre relembrar quer pelo interesse histórico que continua a manter quer pela obrigatoriedade da mensagem cívica que transporta. Recordar o que se passou em Portugal nestes escassos treze anos de uma História de nove séculos serve, entre outras razões, para conhecer melhor o que aconteceu ontem e, inevitavelmente, para compreender ainda melhor o que acontece hoje.
São anos de evidência bastante para questionar da justeza de alguns dos costumes com que habitualmente se classifica o comportamento lusitano. São factos a revelar um Povo que sofre, um País que agoniza, uma Nação que desespera. Desespera ao matar D. Carlos em 1908. Sofre ao matar Sidónio Pais em 1918. Agoniza ao matar António Granjo em 1921.
É ao redor destes grandes dramas da nossa História recente que este livro procura justificar os seus propósitos.
Dividido em três partes principais, este trabalho apresenta-se com intenções de culminar num epílogo que viabilize um entendimento uniforme para as questões expostas. Acredita-se que as páginas banhadas com o sangue dos tiros do Terreiro do Paço em 1908, tal como as da Leva da Morte e da Estação do Rossio em 1918 e as da Noite Sangrenta e da Camioneta Fantasma em 1921, têm algo em comum que permite apresentar estes factos portugueses numa perspectiva de leitura própria e unificada.
O epílogo desta edição é o esboço conclusivo possível dentro da opção definida como central. Expõe opiniões que vêm em abono do fundamento desenvolvido e assenta ideias com a força de quem as viveu. Falam de Portugal, dos Portugueses, do Povo. Falam do Portugal Trágico.
Porque foi assassinado um Rei e abolida com tanta facilidade uma instituição com séculos de identidade nacional? Como e por que razão se fez tão facilmente a República em 1910?
Porque foi assassinado um Presidente que tantos adoravam e que foi o único eleito pelo Povo durante a I República? Como e por que razão tudo isto aconteceu em Portugal?
Porque foi assassinado um chefe de Governo e embargada sem grande dificuldade uma esperança de viver em que muitos acreditavam? Como e por que razão se desfez tão facilmente a República em 1921?
Quem está por detrás destes crimes? Como foi possível acontecer tamanha tragédia em Portugal? Também aqui, além dos segredos das mortes de D. Carlos, de Sidónio Pais e de António Granjo existe não um terceiro, mas um quarto segredo por revelar.
Morreu um Rei que reinava. Um Presidente que presidia. Um Chefe de Governo que governava. Um foi assassinado quando chegava a Lisboa em 1908. Outro quando partia de Lisboa em 1918. E outro porque estava em Lisboa em 1921.
É dentro deste rumo que se enquadra o presente trabalho. Apresentar três casos que ao serem associados fazem descortinar um outro: O Portugal Trágico.

http://www.webboom.pt/ficha.asp?ID=170506