A
edição de 1950 do livro com o título Refúgio Perdido, de Soeiro Pereira Gomes
(1909-1949), requer algumas notas de esclarecimento.
Soeiro
editou o seu primeiro romance, Esteiros, com capa e desenhos de Álvaro Cunhal, em
1941, nas Edições Sirius, de Lisboa, então dirigida por Alexandre Babo. O livro
foi acolhido com excelentes referências não apenas pelas publicações ligadas ao
movimento neo-realista, mas também pela crítica literária em geral.
Em 1935 ou 1936, O Diabo (que publicaria mais tarde outros
textos, entre crónica e narrativa) viu o conto O Capataz (plausivelmente a primeira
incursão literária de Soeiro) cortado integralmente pela Censura. Alguns
escritos surgem ainda na República e n'O Castanheirense nos primeiros anos de 40
e admite-se que o seu segundo romance, Engrenagem, tenha sido iniciado em 1942,
recomeçado em 1943 e concluído no ano seguinte.
Por força da perseguição da polícia política salazarista, claramente
ciente da importância do escritor na organização e intervenção política do
Partido Comunista Português na região - Alhandra, Vila Franca, Baixo Ribatejo -
onde vivia e tinha o seu emprego (na fábrica de cimentos Tejo), Soeiro Pereira
Gomes passou à clandestinidade a 14 de Maio de 1944, apesar de poucos dias depois
a PIDE prender sua mulher, Manuela Câncio Reis, tentando coagi-lo a entregar-se.
Na clandestinidade, a par das tarefas requeridas pelo trabalho revolucionário,
Soeiro manteve o seu empenho na escrita em duas direcções: textos ligados à
acção partidária (onde se destaca o histórico artigo, n'O Militante clandestino
de Agosto de 1946, Praça de Jorna) e pequenos contos relacionados com a luta clandestina
e a gesta dos seus protagonistas.
Segundo Luísa Duarte Santos, em cuidado trabalho, incluído no
catálogo da exposição Na Esteira da Liberdade realizada pelo Museu do
Neo-realismo em 2009, quando do centenário do nascimento do escritor, o
primeiro destes contos, O Pio dos Mochos (dedicado "ao camarada Duarte",
pseudónimo na clandestinidade de Álvaro Cunhal), terá sido escrito em 1945,
seguindo-se Refúgio Perdido em Novembro de 1948, dedicado "ao camarada João
(pseudónimo clandestino de António Dias Lourenço) que inspirou este conto"
e Mais um Herói, de 20 de Janeiro de 1949.
Como assinala Luísa Duarte Santos, a dedicatória deste último, "À
memória de Ferreira Marquês e de quantos, nas masmorras fascistas, foram mártires
e heróis", apresenta "o nome legal e não o pseudónimo, porque o
camarada já morrera (em 1941) assassinado e não era portanto necessário
protegê-lo". Com o título geral Contos Vermelhos e a dedicatória "Aos
meus companheiros - que, na noite fascista, ateiam clarões de uma alvorada",
as três obras seriam divulgados em cópias dactilografadas logo em 1949, ano da
morte de Pereira Gomes, e numa primeira edição clandestina em 1957 (vd. publicação
integral in Contos Vermelhos e Outros Escritos, Edições Avante! Lisboa, 1979).
Entretanto, em 1942, fora constituída no Porto a cooperativa Sociedade
Editora Norte-SEN, criada por um grupo de democratas ligados ao movimento neo-realista
e em particular à revista Sol Nascente, entre os quais Afonso Castro Senda,
Osvaldo Santos Silva e Óscar Lopes. Inicialmente instalada numa exígua dependência
na Avenida dos Aliados, viria mais tarde a abrir uma livraria na Rua Formosa que
se tornou um importante centro de encontro e actividade da oposição ao salazarismo,
sendo encerrada pela PIDE na década de 50.
Em 1950 a SEN editou o livro cuja edição fac similada agora se apresenta,
com o título Refúgio Perdido - Inéditos e Esparsos - Pereira Gomes - mas que não
inclui o conto com o mesmo título!
A situação é explicada na introdução, da autoria do jornalista
Manuel de Azevedo que, além da sua intervenção política antifascista e da actividade
profissional no vespertino Diário de Lisboa, se destacaria como crítico cinematográfico
e dirigente cineclubista. Após expor as razões da edição e traçar um significativo
perfil do autor de Esteiros, Manuel de Azevedo escreve que se sabe ter ele escrito
contos, entre os quais um com aquele título, mas que se encontrariam perdidos -
o que, como se viu, não correspondia inteiramente à verdade!
É porém evidente que a escolha do título de um dos Contos
Vermelhos para a compilação editada acabava por ter claro significado para um
público de esquerda, que poderia mesmo conhecer a limitada edição clandestina
do ano anterior. A censura salazarista tardou alguns meses a reagir e só em 6 de
Abril de 1951 oficiaria a SEN, repetindo a pressão escassos meses depois face à
publicação póstuma pela cooperativa do romance Engrenagem, já anunciada na
introdução de Manuel de Azevedo.
Como aspecto de particular interesse, refira-se que a edição
nortenha inclui o já referido conto O Capataz, que assim viria a público quinze
anos depois do seu corte pela censura n'O Diabo.
[Ruben de Carvalho, “O longo percurso de Refúgio Perdido”, in
jornal Público, 25/06/2014, p. 47 - sublinhados nossos]
J.M.M.
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