“Aquilino, o regresso há 100 anos” – por António Valdemar, in
Público
► Aquilino voltou a Portugal há 100 anos. Regressava do primeiro
exílio político. Estivera refugiado em Paris, devido à participação
revolucionária contra a ditadura de João Franco. Integrou-se no grupo de outros
exilados portugueses como Magalhães Lima, Luz de Almeida, Alves da Veiga, Leal
da Câmara, também empenhados na militância ativa para implantar a República. A
França, depois da história do Renascimento, ocupava um lugar equivalente ao da
Grécia, na Antiguidade Clássica. Paris era, na síntese de Aquilino, outra
Atenas – “sol e sal da terra, segunda pátria para os rebeldes que tiveram que
perder a sua, Jerusalém de todos os sonhadores e aflitos”.
Todavia, de 1908 a 1914, Aquilino partilhou a festa da vida e as
torrentes da cultura, conheceu as obras dos escritores, poetas e artistas
plásticos já consagrados e alguns representantes das vanguardas. Privilegiou,
acima de tudo, os primores do convívio e da amizade. Matriculou-se
na Sorbonne para cursar estudos clássicos. Ouviu as preleções de Jerôme
Carcopinau, de Bergson e outros mestres famosos.
Assistiu ao princípio da aviação e à generalização dos
automóveis, embora os fiacres continuassem a circular nas ruas. Paris
era um paraíso, que recordou nas Abóboras no Telhado e em Por
Obra e Graça, ao traçar os perfis de Anatole, do pintor Manuel Jardim, do
escultor Anjos Teixeira e outros intelectuais e artistas portugueses que Diogo
de Macedo, também, evocará em 14, Cité Falguière. Ainda perdurava
a belle époque, embora já se pressentisse a aproximação da Primeira Grande
Guerra que virá flagelar a Europa.
Aquilino andou de livraria em livraria e de atelier em atelier,
em Montmartre e Montparnasse. Frequentou um clube de políticos e letrados na
Rue du Faubourg de Saint Honoré, o Café Voltaire, no Quartier Latin, no
qual também se juntavam, assiduamente, os círculos republicanos. O café La
Bohème, Deux Magos e La Cloiserie des Lilas, constituíam outros
pontos de encontro obrigatório. Algumas vezes esteve no cais do Sena, próximo
de Anatole France, quando ambos, em peregrinação, farejavam os alfarrabistas
A França, pátria de grandes figuras, despertou Aquilino para o
sinal dos tempos, para a transformação das estruturas políticas e sociais.
Anatole France foi um dos seus mestres raiz e suporte da sua formação cultural,
libertária e racionalista, que o ajudou a transpor o formalismo do magistério
dos jesuítas, no Colégio da Lapa, e o sarro teológico incutido no Seminário.
Jamais esqueceu a exortação de Anatole dirigida aos jovens no Monte Latino:
“não tenham medo de passar por utopistas, de arquitetar repúblicas
imaginárias”. (…) “Não se preocupem em ser prudentes. A prudência é a mais vil
de todas as virtudes.”
Conheceu, entretanto, nas aulas na Sorbonne, Grete Thiedeman que
viria a ser a sua primeira mulher. A seu lado iniciou e concluiu, na atmosfera
calma e erudita da Biblioteca de Sainte Genevieve, a redação dos contos
que vão constituir o seu primeiro livro Jardim das Tormentas onde
concilia o apelo forte da Beira Alta, com a sensualidade escaldante
da Surflame, “uma dessas loiras do faubourg, frágeis, egípcias, sem
ancas, quase sem peitos”, que fazia acreditar nos momentos bons do mundo.
Mais dois exílios, depois do golpe militar e ditadura instaurada
em 28 de Maio de 1926, permitiram-lhe aprofundar, em França, uma cultura que
decorre entre o hedonismo e o epicurismo, que se cruza com a emanação profunda
da Beira agreste e cercada de isolamento.
Há 100 anos Aquilino Ribeiro, pouco depois de regressar, foi
admitido, no ano letivo de 1914, como professor contratado do Liceu Camões,
onde permanecerá até 1918. Residiu no Campo Grande, frequentou o Chiado, gozava
férias na Idanha, próximo de Belas. Entre os que passaram pelas suas aulas no
Liceu Camões destacam-se Marcello Caetano, Francisco Leite Pinto, duas figuras
de proa do regime de Salazar. Mas, também, outras figuras que se vão evidenciar
na oposição democrática como Henrique de Barros, a seguir ao 25 de Abril,
primeiro presidente da Assembleia Constituinte
A experiencia pedagógica e o ambiente de Lisboa da época
registou Aquilino na novela Domingo de Lázaro, incluída na
obra Estrada de Santiago, dedicada a Gualdino Gomes e onde saiu, pela
primeira vez em livro, o Malhadinhas. Irá depois, a convite de Jaime Cortesão,
para o quadro da Biblioteca Nacional. Constitui um outro período do seu percurso:
a participação no grupo fundador da Seara Nova e a colaboração
no Guia de Portugal, coordenado por Raul Proença.
Mas na sequência do Jardim das Tormentas, Aquilino vai
escrever e publicar, durante meio século, sessenta obras que marcaram a língua
e a literatura portuguesas: dezassete romances; dez volumes de novelas e
contos; livros de crónicas, ensaios, biografias, traduções, contos para
crianças e jovens.
Muito brevemente será lançado pela Sociedade Portuguesa de
Autores (SPA), e edições Colibri, com prefácio de José Jorge Letria, o
livro Aquilino visto por Urbano e para o qual dei um modesto
contributo numa introdução e organização dos textos. Trata-se da edição de
um conjunto de sete ensaios de Urbano Tavares Rodrigues em redor de um
Aquilino numeroso e vário, criador de uma língua própria, voltado para grandes
questões da condição humana, para a fugacidade do tempo, o peso da memória e,
simultaneamente, para a defesa da República.
Hoje, 13 de Setembro, dia do aniversário natalício, Aquilino
será evocado em Viseu, com várias cerimónias públicas e o lançamento de um
volume dos cadernos aquilinianos, com inéditos e outros documentos políticos e
literários. Novos contributos para lembrar o escritor que, à margem de
escolas e cartilhas, defendeu os valores da liberdade e da cidadania, enquanto
revelou o universo da Beira Alta, o comportamento das populações, os usos e
costumes, a diversidade da fauna e da flora, os montes, os vales, os rios e
outros elementos telúricos e humanos que definem a vida própria de uma região.
Aquilino, o regresso há 100 anos – por António Valdemar
[Jornalista e investigador], jornal Público, 13 de Setembro de 2014, p.53 - sublinhados nossos.
J.M.M.
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