“Diniz da Luz, Retrato
Incompleto de um Micaelense Completo” – por António Valdemar, in Correio dos
Açores
“Torrentes da memória a
propósito do jornalista, do poeta, do colega e do amigo, a um mês do centenário
do nascimento, onde voltará a ser homenageado. Pelo menos, na sua ilha e na sua
terra”
Conheci imensas pessoas mas
dificilmente encontrei alguém como Diniz da Luz. Fumava, vorazmente, quatro ou
cinco maços de cigarros. Julgo que excedia o Cardeal António Ribeiro ou o arquitecto
Siza Vieira. Bebia cerca de trinta cafés, por dia. Também suplantava o escritor
Ferreira de Castro. Os que assistiam, a seu lado, a um desafio de futebol, e se
o Benfica tivesse algum azar, ouviam-no proferir os maiores palavrões contra o
adversário. Ultrapassavam o recenseamento e as notas de Carolina Michaelis dos Autos
de Gil Vicente e das Cantigas de Escárnio e Maldizer. Assemelhava-se ao pior e
melhor da irrupção sarcástica e satírica de outro padre, José Agostinho de
Macedo, miguelista ferrenho contra os liberais, autor dos Burros, da Besta
Esfolada e da Tripa Virada.
Conheci, pessoalmente, em São
Miguel, Diniz da Luz, cujo centenário do nascimento, decorrerá, a 8 de Setembro
e voltará a ser homenageado. Pelo menos na sua terra e na sua ilha. Apresentou-nos
Silva Júnior, no antigo Bureau de Turismo, um dos locais históricos de Ponta
Delgada, onde chegavam jornais e revistas portugueses e estrangeiros, que nos
traziam os sinais do mundo. Foi ainda num tempo em que tudo permanecia muito
mais longe.
Radicava-me, pouco depois, em
Lisboa (com a ilha dentro de mim) e víamo-nos, todos os dias e até várias vezes
por dia. Na mesma rua, uma das fonteiras do Chiado e do Bairro Alto, berço e
túmulo de tantos jornais. Ele trabalhava n’A Voz e eu no República. Todavia,
as diferenças políticas e religiosas não representavam qualquer obstáculo a um
convívio aberto e assíduo. Diniz da Luz entrara para A Voz, diário católico e
monárquico, ainda dirigido por Fernando de Sousa o mais feroz e sistemático
adversário da Maçonaria, e continuado por Pedro Correia Marques, também
católico e monárquico, e ainda mais; apoiante do 28 de Maio, da ditadura
militar de Gomes da Costa e da ditadura de Salazar. Requisitado à diocese de
Angra, esteve no quadro d’A Voz de Janeiro de 1940 até fins de 1970. Não estava
sujeito a trabalhos de agenda, nem lhe pediam textos de opinião política. Limitava-se
à informação religiosa, mas com os condicionalismos de um jornal ligado ao que
havia de mais conservador e comprometido com o salazarismo.
As posições frontais de Diniz da
Luz causaram-lhe dissabores profissionais. Durante a Guerra apoiou a causa dos
aliados. Terminada a guerra, o rei Jorge VI, da Inglaterra, atribuiu a Diniz da
Luz uma condecoração. O rei Leopoldo II da Bélgica também o agraciou. Foi um
ativo militante contra Hitler, o nazismo e o fascismo.
Logo que foi anunciado o Vaticano
II, Diniz da Luz, embora se mantivesse como redator d’A Voz, passou a escrever
artigos de opinião no Diário Popular, acerca das mudanças operadas pelo
Concilio na estrutura tridentina da igreja. No seu jornal teriam de ser
«amputados em questões fundamentais». «Bastam – disse-me várias vezes – as
picardias habituais da Censura».
Encontrávamos-nos na Bertrand e,
ao fim da tarde, na mesma leitaria. Recusava a Brasileira. Outras vezes, no
Rossio, na Mónaco, à procura de jornais estrangeiros. Tínhamos amigos comuns.
Dizíamos mal do Salazar e do salazarismo. Eramos controlados pela PIDE, na
própria redação. Ele n’A Voz e eu, pouco depois, no Diário de Noticias e n’A
Capital. (Fui notificado, com outros colegas, pela Comissão de Extinção da PIDE
e interrogado pelo capitão António Pardal, por causa das denuncias de
informadores que eram jornalistas, seguiam os nossos passos e escutavam as nossas
conversas. Um dos denunciantes espiou Diniz da Luz, desde o primeiro até ao último
dia em que trabalhou n’A Voz e exerceu altos cargos no Sindicato dos jornalistas).
Para todos nós, Diniz da Luz
constituía uma das referências emblemáticas dos Açores, onde se destacava a
figura tutelar de Vitorino Nemésio. Se bem me lembro – há mais de 50 anos –
existiam outros açorianos em jornais e revistas: Rebelo de Bettencourt, amigo
próximo de Fernando Pessoa, de Almada Negreiros e de Aquilino Ribeiro, na Gazeta
dos Caminhos de Ferro, na revista Viagem e correspondente do Diário dos Açores;
Jaime Brasil, a chefiar a redação do Primeiro de Janeiro em Lisboa, após a
aposentação de Pinto Quartim (tive a honra de lhes suceder durante 12 anos).
Num dos jornais mais antigos, o Portugal Madeira e Açores, trabalhava Breno de
Vasconcelos, genealogista empenhado, que principiara no Correio dos Açores –
suponho que depois de José Bruno – com Manuel Ferreira, Salomão Adrahy, Dias
Júnior e Cícero de Medeiros.
Estavam ligados ao Diário da
Manhã, A Voz, ao SNI e à agência ANI, Dutra Faria e Ramiro Valadão. Vinham do
jornal e do partido de Rolão Preto. Foram sustentáculos indefetíveis do
salazarismo e do marcelismo. Foram fundadores do Diário Popular, dirigido por
António Tinoco, neto de Charles Lepierre e com raízes açorianas. No entanto, Tinoco
e António Pedro derivaram para a oposição como, aliás, o próprio Rolão Preto.
O Século, entre os seus
fundadores, na década de 80, do século XIX, além de Magalhães Lima e outros
pilares do regime republicano, teve a participação de António Furtado, irmão do
cientista Francisco Arruda Furtado, o único português que se relacionou com
Darwin. Contou, muitos anos, com o profissionalismo de Raposo de Oliveira, que
havia sido, na transição da monarquia para a Republica, um dos redatores
parlamentares da época áurea d’A Lucta de Brito Camacho, historiada no mesmo
livro por Ferreira de Mira e Aquilino Ribeiro.
Nos meus verdes anos de Lisboa,
recordo-me n’O Seculo de Geraldo Soares, natural do Pico, colecionador de
livros, apaixonado de Natália Correia, até ao delírio. Remédios de Bettencourt,
chefiava a seção internacional. Agostinho Vieira de Areia Remédios de
Bettencourt, de seu nome completo – como se escrevia em algumas necrologias de
luxo – natural da Terceira, também era tradutor dos Livros do Brasil onde
assinava Vieira d’Areia.
Entre todos, Diniz da Luz
distinguia-se por várias singularidades. Era jornalista e padre, mais
jornalista do que padre e, fundamentalmente, pelo seu açorianismo irredutível.
Ele próprio se definia: «Em Lisboa sou dos Açores, nos Açores sou de S. Miguel;
em São Miguel sou do Nordeste; no Nordeste sou do Nordestino. E no Nordestino
sou do Burguete». Na reta final, ao sentir-se sem
amigos mesmo à porta de casa, acrescentava: «no Burguete – ai de mim! – sou … de
Lisboa que me não sai do pensamento, nem nos sonhos de cada noite. Em Lisboa
vivi a minha vida, quase trinta e um anos, pelo que me apetece voltar ao
princípio. No Burguete sou de Lisboa».
Observava ainda: «Podia escrever:
Porque me orgulho de ser Açoriano. Porém, o que tenho passado por doença e sem
família, fez estremecer essa ideia, embora as terras não tenham culpa dos males
dos seus filhos. Mas tinha tempo para respirar e ver o Benfica. O cargo anedótico
de Cônsul Geral dos Açores tirava-me o sono e o melhor das folgas de tempo
útil. Orgulho-me – concluía – de uma coisa: nunca deixei de receber um açoriano
ou o fiz esperar. Nunca fui dos açorianos encobertos em Lisboa».
Mas Diniz da Luz era também arisco
e refratário às receções e conveniências mundanas. Habituara-se a uma modéstia
excessiva. Morava no Rossio, num quarto alugado, de uma velha pensão, onde
chovia de Inverno. Almoçava e jantava na cantina da Guarda Republicana, no
quartel do Carmo. Tomava o pequeno-almoço no café Gelo quando ainda não estavam
os surrealistas. Exatamente o contrario do Padre Moreira das Neves, chefe de
redação do jornal as Novidades, órgão do episcopado, outro amigo excelente de
muitos anos, de convívio também quase diário, ao almoço, no mesmo restaurante,
próximo da redação do Novidades e do Hospital de Santa Marta. Homem de
confiança absoluta do Patriarca e dos sucessivos Núncios Apostólicos, Moreira
das Neves era autor de muitos textos que saíram com a assinatura do Cardeal
Cerejeira. Precursor de Tolentino da Nóbrega, Moreira das Neves, celebrava
batizados, casamentos funerais de pessoas importantes. Também era capelão do
Visconde do Botelho.
Por seu turno, Diniz da Luz era capelão de António Medeiros de Almeida que residia muito perto da minha antiga casa, na rua Barata Salgueiro. De manhã, muitas vezes com o ar mais desconsolado do mundo, surpreendia o vulto esguio e trepidante de Diniz da Luz:
«Você não pode calcular» –
gritava-me a esbracejar - «o que é dizer missa, todos os dias, com a capela
vazia. Não dá tusa nenhuma. O motorista ajuda a missa. Peço-lhe para trazer ao
menos a mulher. Responde-me. Só pode ser ao domingo…». «E não há vizinhos para
virem à missa? Perguntei-lhe: «Ao domingo vão a outras missas. Até para casa do
Visconde Botelho. Ficam deliciados com o Moreira das Neves» …
Foi numa destas manhãs de Lisboa,
enquanto eu avançava para o Diário de Noticias, na esquina da rua Barata
Salgueiro para o a Avenida da Liberdade (seria, anos depois, a sede do Banco Espírito
Santo) que vi Diniz da Luz, depois de celebrar missa, eufórico com o volume da Antologia
da Poesia Erótica e Satírica de Natália Correia, já apreendido pela Pide e pela
Censura.
«Então que tal? Com um riso
luciferino exclamou: – Está aqui tudo. Ofereceu-me com esta dedicatória que
você não tem. Sou amigo e admirador da Natália desde que vim para Lisboa. Estou
com a Antologia a atualizar o vocabulário para quando as coisas correrem mal ao
Benfica…»
Riu. Riu muito. Rimos os dois.
Muitíssimo.
Agora, lembro-me, de súbito, da última
visita que lhe fiz em São Miguel. Mantinha a palavra rebelde e solta. Como
sempre. Mas as frases, de vez em quando, não tinham sentido. Nenhum de nós se
riu. Como era costume.
Estava outro. Irreconhecível.
Quase um fantasma. Quase como as hortenses na antiga estrada para o Nordeste,
na voragem galopante do Outono para o Inverno. Tristemente desbotadas,
envelhecidas, exaustas da cor, da explosão de cor que
derramaram. Esgotara-se a exuberância, a energia, o viço que Diniz da Luz
exaltara na Ponta da Madrugada: «pingos de céu e mar que a terra/ troca em onda
de azul que não se perde/nem ao bater de encontro às serranias».
Ao aproximar-se o centenário do
nascimento, não consigo afastar a imagem de Diniz da Luz, tal qual o conheci,
anos e anos seguidos, igual a si próprio como jornalista, como poeta, como
amigo, 25 horas por dia açoriano, voz irreprimível de São Miguel, do Nordeste,
do Nordestino e do Burguete, dividido entre a rotina e as solicitações de
Lisboa e a presença dominadora do Pico da Vara e, sobretudo, do horizonte
vivido e sentido no alto das rochas abertas para o mistério e fascínio do mar
absoluto.
[NOTA: nasceu Diniz da Luz a 8 de
Setembro de 1915 em S. Pedro Nordestino (S. Miguel), frequentou o seminário em
Angra, foi ordenado sacerdote em 1938, trabalhou como prefeito num colégio de
Ponta Delgada; foi jornalista, poeta, cronista, ensaísta … e morre a 20 de
Dezembro de 1988]
Diniz
da Luz, Retrato Incompleto de um Micaelense Completo – por António Valdemar [Jornalista, carteira profissional nº24], jornal Correio dos Açores, 19 de Agosto de 2015, p.16 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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