domingo, 23 de agosto de 2015

DINIZ DA LUZ, RETRATO INCOMPLETO DE UM MICAELENSE COMPLETO


Diniz da Luz, Retrato Incompleto de um Micaelense Completo” – por António Valdemar, in Correio dos Açores

“Torrentes da memória a propósito do jornalista, do poeta, do colega e do amigo, a um mês do centenário do nascimento, onde voltará a ser homenageado. Pelo menos, na sua ilha e na sua terra

Conheci imensas pessoas mas dificilmente encontrei alguém como Diniz da Luz. Fumava, vorazmente, quatro ou cinco maços de cigarros. Julgo que excedia o Cardeal António Ribeiro ou o arquitecto Siza Vieira. Bebia cerca de trinta cafés, por dia. Também suplantava o escritor Ferreira de Castro. Os que assistiam, a seu lado, a um desafio de futebol, e se o Benfica tivesse algum azar, ouviam-no proferir os maiores palavrões contra o adversário. Ultrapassavam o recenseamento e as notas de Carolina Michaelis dos Autos de Gil Vicente e das Cantigas de Escárnio e Maldizer. Assemelhava-se ao pior e melhor da irrupção sarcástica e satírica de outro padre, José Agostinho de Macedo, miguelista ferrenho contra os liberais, autor dos Burros, da Besta Esfolada e da Tripa Virada.

Conheci, pessoalmente, em São Miguel, Diniz da Luz, cujo centenário do nascimento, decorrerá, a 8 de Setembro e voltará a ser homenageado. Pelo menos na sua terra e na sua ilha. Apresentou-nos Silva Júnior, no antigo Bureau de Turismo, um dos locais históricos de Ponta Delgada, onde chegavam jornais e revistas portugueses e estrangeiros, que nos traziam os sinais do mundo. Foi ainda num tempo em que tudo permanecia muito mais longe.

Radicava-me, pouco depois, em Lisboa (com a ilha dentro de mim) e víamo-nos, todos os dias e até várias vezes por dia. Na mesma rua, uma das fonteiras do Chiado e do Bairro Alto, berço e túmulo de tantos jornais. Ele trabalhava n’A Voz e eu no República. Todavia, as diferenças políticas e religiosas não representavam qualquer obstáculo a um convívio aberto e assíduo. Diniz da Luz entrara para A Voz, diário católico e monárquico, ainda dirigido por Fernando de Sousa o mais feroz e sistemático adversário da Maçonaria, e continuado por Pedro Correia Marques, também católico e monárquico, e ainda mais; apoiante do 28 de Maio, da ditadura militar de Gomes da Costa e da ditadura de Salazar. Requisitado à diocese de Angra, esteve no quadro d’A Voz de Janeiro de 1940 até fins de 1970. Não estava sujeito a trabalhos de agenda, nem lhe pediam textos de opinião política. Limitava-se à informação religiosa, mas com os condicionalismos de um jornal ligado ao que havia de mais conservador e comprometido com o salazarismo.

As posições frontais de Diniz da Luz causaram-lhe dissabores profissionais. Durante a Guerra apoiou a causa dos aliados. Terminada a guerra, o rei Jorge VI, da Inglaterra, atribuiu a Diniz da Luz uma condecoração. O rei Leopoldo II da Bélgica também o agraciou. Foi um ativo militante contra Hitler, o nazismo e o fascismo.

Logo que foi anunciado o Vaticano II, Diniz da Luz, embora se mantivesse como redator d’A Voz, passou a escrever artigos de opinião no Diário Popular, acerca das mudanças operadas pelo Concilio na estrutura tridentina da igreja. No seu jornal teriam de ser «amputados em questões fundamentais». «Bastam – disse-me várias vezes – as picardias habituais da Censura».

Encontrávamos-nos na Bertrand e, ao fim da tarde, na mesma leitaria. Recusava a Brasileira. Outras vezes, no Rossio, na Mónaco, à procura de jornais estrangeiros. Tínhamos amigos comuns. Dizíamos mal do Salazar e do salazarismo. Eramos controlados pela PIDE, na própria redação. Ele n’A Voz e eu, pouco depois, no Diário de Noticias e n’A Capital. (Fui notificado, com outros colegas, pela Comissão de Extinção da PIDE e interrogado pelo capitão António Pardal, por causa das denuncias de informadores que eram jornalistas, seguiam os nossos passos e escutavam as nossas conversas. Um dos denunciantes espiou Diniz da Luz, desde o primeiro até ao último dia em que trabalhou n’A Voz e exerceu altos cargos no Sindicato dos jornalistas).

Para todos nós, Diniz da Luz constituía uma das referências emblemáticas dos Açores, onde se destacava a figura tutelar de Vitorino Nemésio. Se bem me lembro – há mais de 50 anos – existiam outros açorianos em jornais e revistas: Rebelo de Bettencourt, amigo próximo de Fernando Pessoa, de Almada Negreiros e de Aquilino Ribeiro, na Gazeta dos Caminhos de Ferro, na revista Viagem e correspondente do Diário dos Açores; Jaime Brasil, a chefiar a redação do Primeiro de Janeiro em Lisboa, após a aposentação de Pinto Quartim (tive a honra de lhes suceder durante 12 anos). Num dos jornais mais antigos, o Portugal Madeira e Açores, trabalhava Breno de Vasconcelos, genealogista empenhado, que principiara no Correio dos Açores – suponho que depois de José Bruno – com Manuel Ferreira, Salomão Adrahy, Dias Júnior e Cícero de Medeiros.

Estavam ligados ao Diário da Manhã, A Voz, ao SNI e à agência ANI, Dutra Faria e Ramiro Valadão. Vinham do jornal e do partido de Rolão Preto. Foram sustentáculos indefetíveis do salazarismo e do marcelismo. Foram fundadores do Diário Popular, dirigido por António Tinoco, neto de Charles Lepierre e com raízes açorianas. No entanto, Tinoco e António Pedro derivaram para a oposição como, aliás, o próprio Rolão Preto.

O Século, entre os seus fundadores, na década de 80, do século XIX, além de Magalhães Lima e outros pilares do regime republicano, teve a participação de António Furtado, irmão do cientista Francisco Arruda Furtado, o único português que se relacionou com Darwin. Contou, muitos anos, com o profissionalismo de Raposo de Oliveira, que havia sido, na transição da monarquia para a Republica, um dos redatores parlamentares da época áurea d’A Lucta de Brito Camacho, historiada no mesmo livro por Ferreira de Mira e Aquilino Ribeiro.

Nos meus verdes anos de Lisboa, recordo-me n’O Seculo de Geraldo Soares, natural do Pico, colecionador de livros, apaixonado de Natália Correia, até ao delírio. Remédios de Bettencourt, chefiava a seção internacional. Agostinho Vieira de Areia Remédios de Bettencourt, de seu nome completo – como se escrevia em algumas necrologias de luxo – natural da Terceira, também era tradutor dos Livros do Brasil onde assinava Vieira d’Areia.

Entre todos, Diniz da Luz distinguia-se por várias singularidades. Era jornalista e padre, mais jornalista do que padre e, fundamentalmente, pelo seu açorianismo irredutível. Ele próprio se definia: «Em Lisboa sou dos Açores, nos Açores sou de S. Miguel; em São Miguel sou do Nordeste; no Nordeste sou do Nordestino. E no Nordestino sou do Burguete». Na reta final, ao sentir-se sem amigos mesmo à porta de casa, acrescentava: «no Burguete – ai de mim! – sou … de Lisboa que me não sai do pensamento, nem nos sonhos de cada noite. Em Lisboa vivi a minha vida, quase trinta e um anos, pelo que me apetece voltar ao princípio. No Burguete sou de Lisboa».

Observava ainda: «Podia escrever: Porque me orgulho de ser Açoriano. Porém, o que tenho passado por doença e sem família, fez estremecer essa ideia, embora as terras não tenham culpa dos males dos seus filhos. Mas tinha tempo para respirar e ver o Benfica. O cargo anedótico de Cônsul Geral dos Açores tirava-me o sono e o melhor das folgas de tempo útil. Orgulho-me – concluía – de uma coisa: nunca deixei de receber um açoriano ou o fiz esperar. Nunca fui dos açorianos encobertos em Lisboa».

Mas Diniz da Luz era também arisco e refratário às receções e conveniências mundanas. Habituara-se a uma modéstia excessiva. Morava no Rossio, num quarto alugado, de uma velha pensão, onde chovia de Inverno. Almoçava e jantava na cantina da Guarda Republicana, no quartel do Carmo. Tomava o pequeno-almoço no café Gelo quando ainda não estavam os surrealistas. Exatamente o contrario do Padre Moreira das Neves, chefe de redação do jornal as Novidades, órgão do episcopado, outro amigo excelente de muitos anos, de convívio também quase diário, ao almoço, no mesmo restaurante, próximo da redação do Novidades e do Hospital de Santa Marta. Homem de confiança absoluta do Patriarca e dos sucessivos Núncios Apostólicos, Moreira das Neves era autor de muitos textos que saíram com a assinatura do Cardeal Cerejeira. Precursor de Tolentino da Nóbrega, Moreira das Neves, celebrava batizados, casamentos funerais de pessoas importantes. Também era capelão do Visconde do Botelho.
 
 

Por seu turno, Diniz da Luz era capelão de António Medeiros de Almeida que residia muito perto da minha antiga casa, na rua Barata Salgueiro. De manhã, muitas vezes com o ar mais desconsolado do mundo, surpreendia o vulto esguio e trepidante de Diniz da Luz:

«Você não pode calcular» – gritava-me a esbracejar - «o que é dizer missa, todos os dias, com a capela vazia. Não dá tusa nenhuma. O motorista ajuda a missa. Peço-lhe para trazer ao menos a mulher. Responde-me. Só pode ser ao domingo…». «E não há vizinhos para virem à missa? Perguntei-lhe: «Ao domingo vão a outras missas. Até para casa do Visconde Botelho. Ficam deliciados com o Moreira das Neves» …

Foi numa destas manhãs de Lisboa, enquanto eu avançava para o Diário de Noticias, na esquina da rua Barata Salgueiro para o a Avenida da Liberdade (seria, anos depois, a sede do Banco Espírito Santo) que vi Diniz da Luz, depois de celebrar missa, eufórico com o volume da Antologia da Poesia Erótica e Satírica de Natália Correia, já apreendido pela Pide e pela Censura.

«Então que tal? Com um riso luciferino exclamou: – Está aqui tudo. Ofereceu-me com esta dedicatória que você não tem. Sou amigo e admirador da Natália desde que vim para Lisboa. Estou com a Antologia a atualizar o vocabulário para quando as coisas correrem mal ao Benfica…»

Riu. Riu muito. Rimos os dois. Muitíssimo.

Agora, lembro-me, de súbito, da última visita que lhe fiz em São Miguel. Mantinha a palavra rebelde e solta. Como sempre. Mas as frases, de vez em quando, não tinham sentido. Nenhum de nós se riu. Como era costume.

Estava outro. Irreconhecível. Quase um fantasma. Quase como as hortenses na antiga estrada para o Nordeste, na voragem galopante do Outono para o Inverno. Tristemente desbotadas, envelhecidas, exaustas da cor, da explosão de cor que derramaram. Esgotara-se a exuberância, a energia, o viço que Diniz da Luz exaltara na Ponta da Madrugada: «pingos de céu e mar que a terra/ troca em onda de azul que não se perde/nem ao bater de encontro às serranias».

Ao aproximar-se o centenário do nascimento, não consigo afastar a imagem de Diniz da Luz, tal qual o conheci, anos e anos seguidos, igual a si próprio como jornalista, como poeta, como amigo, 25 horas por dia açoriano, voz irreprimível de São Miguel, do Nordeste, do Nordestino e do Burguete, dividido entre a rotina e as solicitações de Lisboa e a presença dominadora do Pico da Vara e, sobretudo, do horizonte vivido e sentido no alto das rochas abertas para o mistério e fascínio do mar absoluto.

[NOTA: nasceu Diniz da Luz a 8 de Setembro de 1915 em S. Pedro Nordestino (S. Miguel), frequentou o seminário em Angra, foi ordenado sacerdote em 1938, trabalhou como prefeito num colégio de Ponta Delgada; foi jornalista, poeta, cronista, ensaísta … e morre a 20 de Dezembro de 1988]







Diniz da Luz, Retrato Incompleto de um Micaelense Completo – por António Valdemar [Jornalista, carteira profissional nº24], jornal Correio dos Açores, 19 de Agosto de 2015, p.16 – com sublinhados nossos.
 
J.M.M.
 
 

 

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