“Ramalho, morto ou vivo?” – por António Valdemar, in jornal Público
“A herança que Ramalho
deixou em textos de intervenção abriu novos horizontes. Desfez rotinas e
marasmos. Reformou hábitos e costumes arcaicos. Empenhou-se em manter Portugal
nos padrões europeus de vida e de cultura"
"Portugal é outro. Dentro de um outro mundo e em
permanente transformação. Terá algum sentido falar e escrever acerca de Ramalho
Ortigão, cujo centenário da morte hoje se completa, pois faleceu a 27 de
Setembro de 1915 quase com 80 anos? Que interesse pode suscitar esse jornalista
escritor que se caracterizou, fundamentalmente, um grande cronista, um grande
repórter, um notável crítico da vida social, cultural e política da segunda
metade do século XIX?
Muitas páginas dos livros de Ramalho estão datadas. Apesar disso não se
extinguiu o legado intelectual de Ramalho. Se procedermos, na maioria dos seus
textos, a uma descircunstancialização – no sentido a que Ortega y Gasset
atribuiu o mais amplo significado desta expressão – verificamos que Ramalho, numa
linguagem clara, fluente e sólida, estimula a reflexão e a crítica, combate a
mediocridade e desmascara a intriga e a corrupção.
Ramalho nasceu no Porto a 24 de Novembro de 1836 e
lá principiou a sua carreira intelectual. Lecionava francês no colégio do pai
(Eça de Queiroz foi um dos seus muitos alunos) e entrou para a redação do Jornal
do Porto. Exerceu durante alguns anos a tarimba diária do noticiário e do
folhetim. Foi destacado em 1867 para a cobertura da Exposição Universal.
Realizou um dos sonhos de um homem de letras. Conhecer Paris. Tomar o pulso da
capital do espírito. Frequentar os teatros, ver os museus, ir às bibliotecas e
livrarias, sentar-se à mesa de restaurantes e comer o que no Porto ou em Lisboa
era, gastronomicamente, traduzido em calão. Foi o primeiro e decisivo contato
com o mundo.
Ao contrário de Sampaio Bruno que permaneceu agarrado ao Porto, foi um
dos historiadores do Porto e dos seus homens ilustres, Ramalho Ortigão – apesar
de palavras cordiais escritas sobre o Porto – não gostava do Porto, nem dos
portuenses. As confissões a sua mulher (Cartas a Emília introdução e seleção de
Beatriz Berrini, páginas 56 e 57, edição da Biblioteca Nacional, 1993)
constituem um documento, sobre todos os aspetos inconcebível. É difícil
encontrar, em qualquer parte do mundo, tamanha repulsa de alguém pela sua
própria terra. Pela cidade do Porto que, em vida e a título póstumo, lhe
prestou as maiores homenagens. Este facto explica, porventura, ter-se radicado,
definitivamente, em Lisboa. Instalou-se, em 1868, com a família no Bairro Alto,
ao cimo da Calçada dos Caetanos, no último andar de um prédio com vista para o
Tejo. Trabalhava muito perto. Era funcionário da secretaria da Academia das
Ciências.
Retrato
do grupo "Vencidos da Vida". Sentados: Carlos Lima Mayer, Oliveira
Martins e Ramalho Ortigão; de pé: marquês de Soveral, conde de Sabugosa, Carlos
Lobo de Ávila e Eça de Queiroz; sobre a escada: Guerra Junqueiro, conde de
Arnoso e conde de Ficalho (1889) – via Casa Comum
Encontrou-se com Eça que terminara o curso de
Direito. Estabeleceu relações com a nova geração de intelectuais e artistas,
que vai promover as Conferências do Casino, o Centenário de Camões e o Centenário
de Pombal, referências emblemáticas do Portugal democrático, republicano e
laico; colaborou nos principais jornais e revistas de Lisboa. Por exemplo; na Revolução
de Setembro e no Diário de Notícias que se fundara, há pouco, como órgão de
informação geral, sem resvalar nas querelas partidárias. Ao mesmo tempo, principiou
a escrever com regularidade para o Brasil, para a Gazeta de Noticias que será,
também, uma das tribunas de Eça de Queiroz. De tal modo que alguns dos livros
apareceram primeiro editados no Brasil.
Entretanto, lançou com Eça de Queiroz As Farpas, crónica mensal de
política, de letras e de costumes. Em vez do sarcasmo escaldante e da sátira
feroz, uma rajada esfusiante de ironia passou a comentar as personagens e
instituições oficiais. Ao ingressar na diplomacia, Eça interrompeu a publicação
que viria a compilar em dois volumes com o título Uma Campanha Alegre. Enquanto
Ramalho prosseguiu, sem intermitências, até 1888, reunindo a maior parte dos
textos, em 11 tomos, sistematizados por temas e com o título genérico e
original As Farpas.
Ramalho n’As Farpas mostra-nos o que o Pais era – e não deixou de ser nos seus fundamentos – a compleição geográfica do território e a diversidade humana das populações; os vícios da política e da administração pública; as acrobacias e rábulas parlamentares; a produção literária e artística; aspetos insólitos do quotidiano de Lisboa; lacunas na educação e deficiências no ensino; falta de limpeza nas casas e nas ruas; a necessidade de regras de higiene pública e privada; as imposturas, as hipocrisias e as superstições da prática religiosa. A tudo isto juntou um conjunto perfis de figuras exemplares, em vários domínios da vida portuguesa.
Nos primórdios da sua carreira Ramalho escreveu dois
livros que atingiram grande sucesso: Banhos de Caldas e Águas Minerais e As
Praias de Portugal. Promoveram a descoberta do litoral e do interior, das
serras e da planície, das margens e do curso dos rios, numa altura em que as
viagens eram difíceis. O caminho-de-ferro estava a avançar muito lentamente. As
estradas eram péssimas. E o alojamento rudimentar. Percorreu o País desde o
Minho ao Algarve, desde Trás-os-Montes até ao Alentejo. Estudou cada região e
as qualidades e defeitos dos seus habitantes.
Além da França, com permanências demoradas em Paris, visitou parte da
Europa. Inteirou-se do que era a Holanda, a Suíça, a
Inglaterra, a Espanha e a Itália. Foi muitas vezes ao Brasil. Em especial ao
Rio de Janeiro onde tinha família e relações literárias com escritores, poetas,
jornalistas e políticos que muito o estimavam.
Apesar das várias opções políticas e ideológicas que
adotou e se refletiram na sua obra, As Farpas e outros livros de Ramalho
tiveram forte impacto em várias gerações. Em políticos, escritores e
panfletários que lutaram pela implantação da Republica: João Chagas, Lopes de
Oliveira, Tomaz da Fonseca, João de Barros. No grupo e na geração da Seara Nova – que
foi a consciência crítica e moral da 1ª Republica – admiraram Ramalho: António
Sérgio que o antologiou, prefaciando e anotando as Origens da Holanda; Câmara
Reys, assinalou a morte, de Ramalho logo no primeiro número da revista
Atlântico e incluiu-o e enalteceu-o nas Questões Morais e Sociais da Literatura;
Aquilino Ribeiro louvou-lhe o desassombro e os primores da escrita (O Século,
25 de Junho de 1958); e Raul Proença no Guia de Portugal cita-o, com abundância,
e acolheu-o como um dos orientadores no conhecimento e valorização de Portugal.
A trajetória de Ramalho, embora sem qualquer
filiação explícita, decorreu em Lisboa ao lado dos precursores da República, do
Socialismo e da Federação Ibérica.
Ao prestar serviço na Biblioteca da Ajuda conviveu com a família real. Aderiu e
apoiou a ditadura de João Franco. Radicalizou a posição monárquica após o
regicídio. Insurgiu-se contra a proclamação da Republica. Combateu o novo
regime dentro e fora de Portugal. Simpatizou com os integralistas. Para o
jornal monárquico A Restauração, de Homem Cristo Filho, escreveu um dos últimos
textos Carta de um velho a um novo (7 de setembro de 1914), reeditado em 1947,
pela Causa Monárquica. Elegeram-no mestre do nacionalismo português.
Manuel Gonçalves Cerejeira, futuro cardeal patriarca, no controverso livro A Igreja e o Pensamento Contemporâneo – desmistificado por Sílvio Lima, numa obra de análise crítica retirada do mercado pela PIDE e pela Censura e que lhe interrompeu a carreira universitária – exaltou Ramalho como um dos paradigmas morais e intelectuais, até porque, pouco antes da morte, se convertera ao catolicismo e solicitara funeral católico. Na revista Nação Portuguesa, Alberto de Monsaraz, escreveu um artigo sobre a morte de Ramalho considerando-o, um dos mentores do Integralismo Lusitano.
Almada Negreiros também o elogiou. O testemunho de
Almada provoca alguma surpresa. Para quem leu o Manifesto Anti Dantas estranha
o apreço por Ramalho. Todavia, Almada (íntimo de Homem Cristo Filho) e parte da
geração transformaram a Carta de um Velho a um Novo, numa cartilha politica e
num breviário nacionalista. Havia profundas diferenças literárias e estéticas,
mas identificavam-se com o ideário terminal de Ramalho. Pertenciam aos
adversários irredutíveis da República.
Seja como for, a herança que Ramalho deixou está
viva. E numa escrita viva. A maior parte d’ As Farpas, a Holanda, a colaboração
no Álbum de Glórias, de Rafael Bordalo e outros textos de intervenção
constituem referências obrigatórias. Exerceu significativa pedagogia cívica.
Abriu novos horizontes. Incutiu saúde em face do pessimismo militante e
dissolvente. Desfez rotinas e arrasou marasmos. Reformou hábitos caducos. Baniu costumes arcaicos. Empenhou-se em manter Portugal
fiel às raízes que o definem e o singularizam, mas inserido nos padrões
europeus de vida e de cultura”.
Ramalho, morto ou vivo? – por
António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências], jornal Público, 27 de Setembro de 2015, p.54 – com
sublinhados nossos.
J.M.M.
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