“Manuel, tal e qual” – por António Valdemar, in Público
“Teixeira Gomes «boémio, negociante, melómano, viajante, escritor, diplomata, Presidente da Republica”
De Manuel Teixeira Gomes revive a memória do intelectual e do
político que se afirmou como grande escritor, se impôs como notável diplomata e
se distinguiu como Chefe de Estado, um dos que mais prestigiaram a República.
Qualquer um destes aspectos é conhecido, na generalidade e, por vezes, com
alguma polémica.
Contudo, uma biografia feita por José Alberto Quaresma, editada
pela Imprensa Nacional e o Museu da Presidência da Republica, veio evidenciar
muitos pormenores, até agora desconhecidos do homem rebelde, insatisfeito,
frontal, aberto ao mundo, «com todos os sentidos despertos» – assim se
definiu Teixeira Gomes – «para glorificar o esplendor da luz e para divinizar
quantas maravilhas ela nos revela, desde o cristal das fontes, que fecundam a
terra sequiosa, até ao corpo humano, carne ambulante e sensual, onde se encerra
e se propaga a essência da razão e do amor»
Sete anos de investigação em arquivos públicos e privados,
nacionais e internacionais, a consulta de milhares de documentos inéditos – o
livro tem 560 páginas, apoiadas em 1699 notas factuais e justificativas –
permitem desvendar a intimidade quotidiana do homem. Aliás o objectivo é tão
visível quanto José Alberto Quaresma, para estabelecer uma aproximação com o
leitor, no decurso dos sucessivos capítulos da narrativa biográfica, nomeou
sempre Teixeira Gomes, apenas por Manuel.
Aprofunda as origens da família, a intervenção nas campanhas
entre liberais e miguelistas, os vínculos à Maçonaria, mortes e prisões
políticas; o Algarve remoto, sem estradas e transportes para vencer o
isolamento; a agricultura precária e a indústria de pesca e frutos secos; um
território pleno de recursos naturais, a querer despertar do marasmo e da
rotina.
Retrata o boémio, o negociante, o melómano, o viajante, o
escritor, o diplomata e o Presidente da Republica. Tal e qual reencontrou nos
testemunhos da história. Acompanha o seminarista em Coimbra; o estudante que
não conseguiu realizar o curso de Medicina em Coimbra e no Porto. Segue os
passos do jovem insinuante nas principais tertúlias de escritores, poetas,
músicos e artistas plásticos; o convívio, com aristocratas e republicanos, nos
salões dos condes de Proença-a-Velha; e a frequência, em Lisboa e outras
cidades europeias e do Norte de África, das mais famosas casas de prostitutas.
Ao publicar os primeiros livros, aos 40 anos, Teixeira Gomes
destacou-se, tal como Raúl Brandão e, logo após a morte de Eça de Queiroz,
entre os maiores escritores de língua portuguesa. Coleccionador de arte,
apaixonado pela música, conseguiu dedicar-se simultaneamente, aos trabalhos
práticos da produção, comercialização e exportação de frutos secos, na gerência
de empresas familiares, em Portimão e no escritório em Antuérpia. Tais aptidões
voltarão a ser exercidas, em Londres, em face da ausência de funcionários, para
despachar o expediente burocrático na representação diplomática portuguesa.
Identifica-se com a realidade politica, social e cultural da
transição do seculo XIX para o seculo XX, o percurso de Teixeira Gomes.
Participante e espectador crítico das lutas no fim da Monarquia e dos 16 anos
de Republica; dos cenários da 1ª Guerra Mundial, dos debates e conflitos nos
fóruns internacionais, os bastidores e tribunas da Sociedade das Nações.
Enquanto Presidente da República, de Outubro de 1923 a Dezembro de 1925,
enfrentou sucessivas crises partidárias e militares que provocaram quedas e
substituições de governos.
Procurou a reconciliação da classe política e das Forças
Armadas. Reuniu a 5 de Dezembro de 1925, os comandantes das unidades militares
para um almoço no Palácio de Belém. Ao pressentir que não havia, nem solução,
nem alternativa, fez a seguinte declaração que se tornaria profética: «enquanto
certos políticos da nossa terra teimarem em pensar com o estomago e digerirem
com os miolos, isto não tem concerto possível. E o pior é que já é muito tarde
para tê-lo, porque quer os senhores queiram, quer não (acentuou, voltando-se à
direita para o General Carmona e tocando-lhe nos galões) isto vai-lhes
directamente parar às mãos».
Perante o impasse, decidiu, no dia 10 de Dezembro, apresentar a
demissão. Meses depois, o Exército implantava a ditadura. Durou quase meio
século. Até ao 25 de Abril de 1974.
Teixeira Gomes deixou Portugal. Definitivamente. Resolveu
peregrinar de país em país. Foi o que chamou «a grande Primavera da Liberdade».
Andava só, transformado num vulgar cidadão anónimo, através do Mediterrâneo e,
por fim, do Norte de África. O Magreb passou a constituir a terra do seu refúgio
e do seu afecto. Mesmo em plena velhice, «saudável, próspero e feliz como um
deus que regressou do Olimpo», - ele próprio o confessa - fazia «cerca de dez
quilómetros de marcha diária, caminhadas sem fim até ao salutar cansaço que
prepara os sonos profundos de onde se ressurge mais rijo e satisfeito».
De 1931 a 1941 radicou-se em Bougie, actualmente denomina-se
Bejaia, tem um monumento à sua memória e uma escola com o seu nome. Manteve
rigorosa privacidade. Os contactos com Portugal, com a família, inclusive as
duas filhas e a mãe delas, limitaram-se a mera troca de correspondência. E sem
mencionar onde residia. Apenas indicava o número de uma posta-restante do
correio.
Escolheu o pequeno Hotel l’Etoile para se
consagrar, em tempo inteiro, à escrita. O quarto tinha (e tem) o número 13 e
uma janela para o mar. A vista abrange a cordilheira de Kabila, sempre coberta
de neve. Longe de tudo e de todos ali faleceu e se despediu da vida no momento
que desejava: «quando desponta a aurora, em manhã luminosa e tépida, sacudir
sobre o mar as cinzas dos sonhos». Foi a 18 de Outubro de 1941. Precisamente há
75 anos
Manuel, Tal e Qual –
por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências], jornalPúblico, 18 de Outubro de 2016 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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