AS
SOCIEDADES PATRIÓTICAS – PARTE II
[Extracto] “Os Estados Peninsulares e as Sociedades Patrióticas” - (A propósito do discurso de José Liberato Freire de Carvalho na noite de 24 de Julho de 1822)”
José Manuel Martins
NOTA:
As Sociedades Patrióticas (Parte II) é a continuação do prefácio ao livro
“Memória da Liberdade e do Constitucionalismo. Madrid-Lisboa / 1822”, que apresenta textos de José Liberato Freire de Carvalho e João Baptista da S. L. de Almeida Garrett, obra republicada pela Comissão Liberato (com assento em terras do
Mondego) a 7 de Julho de 2016, em Coimbra. A PARTE I pode ser lida AQUI.
► O Triénio Liberal (1820-1823)
É grande a similaridade entre o estabelecimento do regime
monárquico-constitucional em Espanha e em Portugal [7], mas não podemos esquecer
que a dinâmica do liberalismo peninsular estava ligado ao movimento geral que
se estendeu por toda a Europa e no qual os aspectos económicos, as invenções
técnicas, o progresso industrial e as estratégias de expansão dos países mais
desenvolvidos - como a Inglaterra e a França -, jogavam um papel decisivo: o
que não será de todo indiferente [8].
O Triénio Liberal (1820-1823) nos dois Estados Peninsulares é
aparentemente convergente, mas um exame à situação torna tudo mais complexo,
sendo o seu processo bastante ambíguo. Alguns factores [9] são comuns aos dois
estados: as inúmeras contradições ideológicas, económicas e sociais dentro da
monarquia absoluta, que precedem a mudança; as alterações provocadas pelas
invasões francesas que animam uma opinião pública mais esclarecida; o contágio
de matiz ideológico ou revolucionário importado de França e o regresso dos
emigrados; a emergência da burguesia, então ainda um grupo social minoritário;
a ausência do Rei e da Corte em ambos os países; um aparelho militar
subalternizado e sob comando de mãos estrangeiras; o fim dos impérios, com as
guerras da independência na América espanhola e a independência do Brasil; a
acção dos clubes e sociedades políticas e, principalmente, das associações
secretas, apesar da perseguição e montaria encetada a liberais e maçons.
A restauração absolutista em 1823, com a mão amiga da Santa
Aliança e o eterno conflito entre o liberalismo moderado e o liberalismo
radical, retardou o anúncio de uma regeneração [10] nos dois Estados e atrasou o avanço para uma Ibéria contemporânea. De facto,
uma Europa a caminho da revolução industrial, com novas dinâmicas
administrativas e sociais e profundas alterações das relações sociais, sob
forte liderança de uma burguesia empreendedora e esclarecida, encontra nos
Estados Peninsulares uma burguesia incapaz de “alterações significativas” [11]
e regeneradoras, de que não era alheio o atraso económico nos dois países.
Seria, no entanto, o “primeiro assalto à fortaleza” do absolutismo e do
legitimismo tradicional, a “primeira grande ofensiva liberal”.
É conhecido o conflito que deu origem à Guerra Peninsular
(1807-1814) ou Guerra da Independência (em Espanha) e de como confrontados com
a resistência das populações ibéricas e com apoio inglês, as tropas
napoleónicas são obrigados a retirar da Península. Os acontecimentos nos dois
países, no “seguimento da falência da aventura napoleónica”, originaram uma
vaga nacionalista, patriótica e liberal, dando início a um longo processo de implantação
do primeiro liberalismo, de influências recíprocas. A Constituição de Cádis
(1812) terá, por isso mesmo, o seu corolário na Constituição liberal portuguesa
de 1822 [12].
A elite intelectual liberal que propunha um mundo novo, em
Portugal e Espanha, forja-se entre os letrados que o gérmen do iluminismo
ilustrou, a partir da reforma pombalina de 1772 [13]
(entre nós) e com o afluxo de portugueses e espanhóis emigrados.
O século XIX foi um curioso período, profundamente
revolucionário, em que a luta para uma nova ordem liberal, mesmo com os abalos
sofridos que se conhecem, traz a utopia da cidadania, do idealismo da liberdade
individual, liberdade de reunião, liberdade de expressão, liberdade de
imprensa, liberdade do comércio, valores que fizeram ruir os escombros do
absolutismo e da velha ordem; mesmo já durante o Triénio Liberal, foi visível
essa fecundidade cultural, essa “aurora” de luz feita a partir dos clubes, das
Sociedades Patrióticas, das lojas maçónicas e por um periodismo virtuoso e
combativo. A ruptura política, entre o despotismo e o regime constitucional,
estava em marcha.
Mas tal não bastou para que (entre nós) o primeiro liberalismo
triunfasse, tal a “incipiente e contraditória experiência constitucional
tentada pelas Cortes Gerais de 1820-22” [14].
A burguesia não beneficiava dos meios e das estruturas (sociais e mentais) como
as que existiam além Pirenéus, onde o capitalismo, arrastado pelo impulso das
técnicas, do comércio e da indústria, lutava contra os entraves ao seu próprio
desenvolvimento; pelo contrário, a burguesia (com contradições insanáveis entre
a burguesia agrária e a comercial) foi, perante as suas insuficiências e
bloqueios (reforma dos forais, por exemplo), obrigada a “arranjos políticos”
com a velha classe dirigente. Isto é, a Economia Política [15], que já fazia luz em
alguns sábios, restou apenas entre os letrados, sem nunca aceder, em rigor, aos
patamares do trono e da governação, que manteve o seu espírito conservador e
obscurantista. Só a vitória do liberalismo em 1834 - com a derrota do
absolutismo e as consequentes legislações inovadoras de Mouzinho da Silveira e
Ferreira Borges, apoiadas na reforma da instrução pública [16] de Passos Manuel ou
na posterior reforma descentralizadora (1878) de Rodrigues Sampaio - levará ao
lento ruir das bases do antigo regime e dos valores tradicionais,
possibilitando a “regeneração económica”, o devir de um novo modelo de
desenvolvimento [17],
enfim, o (hesitante) começo de um “novo mundo”.
[7]
Para além dos estudos
clássicos sobre a Revolução de 1820, que adiante citaremos, veja-se o trabalho
de Manuel Filipe Cruz Canaveira, Liberais
Moderados e Constitucionalismo Moderado (1814-1852), INIC, 1988.
[8] Sobre a questão económica
nesta fase do liberalismo vintista, consultar entre nós: Fernando Piteira
Santos, Geografia e Economia da Revolução
de 1820, Lisboa, 1962; Julião Soares de Azevedo, Condições económicas da revolução portuguesa de 1820, Básica
Editora, 1976 (2ª ed.).
[9] Ver, principalmente: Joaquim
de Carvalho, Período de indecisão e
triunfo da corrente regeneradora, História
e Portugal (Damião Peres), vol. VII, cap. II, pp. 60-73; Albert Silbert, Le problème Agraire Portugais ao Temps des
premières Cortès Libèrales, Paris, 1968; Manuel Fernandes Tomás. A Revolução de 1820, Seara Nova, 1974, com
importante prefácio de José Tengarrinha; O
Liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX, Sá da
Costa, 1981.
[10] O vocábulo “regeneração” foi
largamente utilizado e abundantemente citado pela corrente liberal em ambos os
países da península (em Portugal, o seu uso é bem anterior ao movimento
político de 1851 ou golpe do marechal Saldanha). Sobre o assunto ver: Telmo dos
Santos Verdelho, ob. cit; Maria
Cândida Proença, A Primeira Regeneração.
O Conceito e a Experiência Nacional (1820-1823), Horizonte, 1990; Joel
Serrão, Da Regeneração à República,
Horizonte, 1990. Ver, ainda, Luís Reis Torgal, A contra-revolução e a sua imprensa no vintismo: notas de uma
investigação, Análise Social, 1980, vol XVI, nº 61-62, pp. 279-292.
[11] Cf. Luís Almeida Martins, Um prelúdio de 500 anos de Guerra Civil de
Espanha, revista História, Ano XI, nº 115, 1989, p.13.
[12] O pronunciamento militar
português (11 de Novembro de 1820) comandado por Gaspar Teixeira, conhecido por
“Martinhada”, ao fazer um ultimato ao Governo Provisional (nascido da Revolução
de 1820) onde se impunha que “se jurasse a constituição espanhola” de Cádis até
à convocação das Cortes, diz bem dos acontecimentos paralelos que decorriam nos
dois países, como também pronuncia as profundas divergências que opunha os
liberais moderados aos exaltados em Portugal.
[13] No período pombalino, o contacto com a literatura
das “luzes” - textos de Locke, Voltaire, Rousseau e dos enciclopedistas em
geral (lidos muitas vezes no original), bem como de portugueses como Ribeiro
Sanches, Filinto Elísio ou Cavaleiro de Oliveira – é realizado em núcleos
restritos, bibliotecas particulares ou Sociedades, como foi o caso de Valença do Minho (biblioteca Diogo
Ferrier), Lamego (animado por
Agostinho José Freire), Coimbra ou Lisboa (Casa do Risco da Ribeira da Naus, onde pontificava José Bonifácio
de Andrada) – ver Luís A. de Oliveira Ramos, Sob o Signo das Luzes, INCM, 1987, p. 135 e segs; sobre a reforma
Pombalina na Universidade de Coimbra, ver Maria Eduarda Cruzeiro, A reforma pombalina na história da
Universidade, Análise Social, 1988, vol. XXIV, pp.165-210.
[14] Cf. Joel Serrão, Da Regeneração à República, ob.
cit., p. 41. Sobre os trabalhos das Cortes Constituintes, no que diz
respeito a aspectos de natureza económica, consultar José Luís Cardoso, A legislação económica do vintismo: economia
política e política económica nas Cortes Constituintes, Análise Social,
1991, nº112/113, pp 471-488. José Manuel Tengarrinha (Manuel Fernandes Tomás, ob.
cit.), aponta o debate da reforma dos forais, da questão do direito da
propriedade ou da transferência da propriedade rural (que só se verifica a
parti de 1834), como expressão de mero compromisso e que não levava à “destruição das estruturas do Antigo Regime”
(pp. 18-22). Ver, também Adrien Balbi, Essai
Statistique sur Le Royaume de Portugal, 1822 (aliás, ed. fac-similada pela
FEUC, 2004, II vols).
[15] Ver a este propósito, Victor de Sá, Perspectivas do Século XIX, Portugália,
1964, p 17 e segs.
[16] Consultar, sobre o assunto,
a excelente obra de Luís Reis Torgal e Isabel Nobre Vargues, A revolução de 1820 e a Instrução Pública,
Paisagem Editora, Porto, 1984, em especial o cap. III, Vintismo e Instrução
Pública, pp.31 e segs.
[17] O desenvolvimento económico português foi lento e
tardio. As invasões francesas, as alterações da estrutura político-colonial com
a independência do Brasil, a guerra civil, a ineficiência no ensino e instrução
pública, a escassez de capital e existência de uma burguesia dividida, explicam
algum do fracasso do modelo político-económico do vintismo. Sobre o assunto ver
Jaime Brasil, A industrialização num país
de desenvolvimento lento e tardio: Portugal, 1870-1913, Análise Social,
1987, nº 96, pp 207.
[A CONTINUAR] - sublinhados nossos
J.M.M.
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