"Soares 65, o anúncio do líder” – por António Valdemar, in
Público
“Em 1965, Mário
Soares proferiu um discurso que foi um marco, uma fronteira na oposição e uma
das componentes do processo que o 25 de Abril irá prosseguir e mudar o curso da
História”
Há tempo para viver e há tempo para morrer. A saúde cada vez
mais precária de Mário Soares tinha-se agravado de modo
implacável. Perdera a agilidade de movimentos. Extinguira-se o entusiasmo
que lhe fervia nos olhos, se refletia na voz e lhe inundava o rosto. Sentia-se
entre os escombros de um mundo que ajudara a construir. Ainda chegou a ter
consciência da crise profunda que ameaça a Europa e se tem manifestado em
Portugal.
Depois, ficou reduzido a um espectro do que fora. Mas insistiu
sempre em viver. Embora identificasse alguns amigos, estava cada vez mais
frágil e mais ausente. O convívio, um dos seus maiores prazeres, passou a ser
difícil. Queria citar um nome, referir um acontecimento, mas não conseguia.
Faltavam-lhe as palavras que queria dizer. Ou, então, esquecera tudo e todos.
Mário Soares foi em Portugal o maior político da sua geração e
do seu tempo. Dominou a segunda metade do século XX e, no início do século
XXI, ainda continuou presente. Herdou do pai o vírus da política, o
empenhamento na militância, o sentido do risco e a firmeza e vigor na ação para
destituir Salazar e erradicar o salazarismo. Orgulhava-se do magistério de
António Sérgio, Jaime Cortesão, Bento Caraça, Câmara Reis e Mário de Azevedo
Gomes. Considerava-se discípulo, no ensino secundário de Álvaro
Salema e Agostinho da Silva; e na universidade de Vieira de Almeida e de
Magalhães Godinho. Este último prefaciou-lhe a primeira tese de
licenciatura O Nacionalismo Político
de Teófilo Braga recusada, por motivos ideológicos, por alguns
professores do júri, na Faculdade de Letras de Lisboa.
Para a sua formação, também reconhecia a importância de Álvaro
Cunhal, enquanto regente de uma sala de estudos do Colégio Moderno, ao
concluir uma disciplina do antigo sétimo ano do liceu. Através dessas
explicações criou uma relação direta com uma personalidade que o fascinou. Quando
perguntei a Álvaro Cunhal, num encontro no Martinho da Arcada, qual o
contributo intelectual e político que exercera em Mário Soares, respondeu-me
com o seu humor corrosivo: “Nenhum. Só consegui ensinar-lhe as coordenadas
celestes para um exame de Geografia. O dr. Mário Soares nunca conseguiu
aprender comigo as coordenadas terrestres”…
A 14
de Dezembro de 1965, falecia Mário de Azevedo Gomes. Chefiava, na altura, a oposição
ao salazarismo. A década de 60, a partir de Agosto de 1960, e com a morte
de Jaime Cortesão, confrontou-nos com o progressivo desaparecimento das figuras
paradigmáticas. O Diretório Democrato-Social – bastante desativado –
admitiu a hipótese de entregar a presidência a Cunha Leal, antigo ministro da I
Republica.
Mas a
primeira geração, formada na Seara Nova – Manuel Mendes, Fernando
Abranches Ferrão, António Macedo, Carlos Cal Brandão e outros –, não aceitava
Cunha Leal. Perduravam os ecos de uma das mais contundentes polémicas de Raul
Proença: o conflito entre os princípios e os interesses, o antagonismo entre as
conveniências económicas, os valores morais e a ética politica.
É
neste contexto que Mário Soares, no funeral de Mário de Azevedo Gomes, no
cemitério dos Prazeres – onde irá agora repousar, transitoriamente, até lhe
prestarem honras no Panteão Nacional –, proferiu um discurso que ficou a ser um
marco na sua trajetória, uma fronteira na oposição e uma das componentes do
processo que o 25 de Abril irá prosseguir e mudar o curso da História.
Estive
lá como repórter do Diário de Notícias e como amigo e admirador de
Azevedo Gomes, oriundo de famílias açorianas e, ele próprio, nascido na ilha
Terceira. Recordo-me do que se passou e do que a Censura truncou e
suprimiu. É um momento histórico da carreira política de Mário Soares. Talvez
haja um registo no espólio de Igrejas Caeiro. Lembro-me de ter feito a
gravação.
Ao
usar da palavra, Mário Soares, num ambiente de apertada vigilância
policial, falou acerca do futuro da oposição. E disse, perentoriamente, que,
falecido Mário de Azevedo Gomes, líder indiscutível, não aceitariam outro líder
que não fosse da geração do próprio Mário Soares.
O
consenso foi significativo: na sua geração, na geração anterior, e, ainda, nos
sobreviventes do grupo originário da Seara Nova e de alguns dos
últimos civis e militares que implantaram a República. Afastava-se a
hipótese de Cunha Leal suceder a Mário de Azevedo Gomes.
Era a
oportunidade de a nova geração dar testemunho e de Mário Soares assumir o papel
principal na liderança. Já conquistara protagonismo e visibilidade
pública. Já concebera um projeto para Portugal. Assentava
na República Moderna e na social-democracia europeia. A oposição passava a
ter um rosto jovem. Ganhava maior amplitude e tornava-se mais eficaz.
Em
numerosas circunstâncias Mário Soares demonstrara coragem, determinação e
energia. Voltou a repetir sempre que necessário. Tinha o perfil adequado para
as lutas a travar, à frente da oposição, dentro e fora do País. Estávamos em
Dezembro de 1965. Pouco antes completara 41 anos. O discurso, naquele dia, no
funeral de Azevedo Gomes, constituiu a afirmação e também o anúncio da
grande liderança política nacional e internacional de Mário Soares.
Soares 65, o anúncio do líder –
por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências, antigo aluno de
Mário Soares no Colégio Moderno], jornal Público (online), 7 de Janeiro de 2017
– com sublinhados nossos.
J.M.M.
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