“O Íman do Mundo” – por José Manuel dos Santos, in Público [online]
“Soares achava que a literatura é o
grande íman do mundo, tornando-o menos insuficiente, mais inteligível, menos
opaco, mais incandescente. Era herdeiro de um ideia de literatura como
imortalidade”
Nos
anos do fim, quando quase tudo nele deixava de ser o que fora, isso ainda lhe
era um ponto de aplicação, onde, como Arquimedes, se apoiava para erguer o seu
mundo. Depois da conversa na sala, levava ali os que o visitavam. Agora,
estamos no escritório. Ele, com a mão incerta, aponta na estante as prateleiras
dos livros que, desde jovem, foi publicando e diz: “Com uma vida tão
atribulada, ainda consegui escrever alguns livros.” São uma centena, com as
traduções. E há na sua voz um orgulho triste. Esse orgulho olha o passado e não
o futuro, por saber que já não é possível acrescentar livros novos àquela longa
fila deles.
Mário
Soares viveu sempre rodeado de livros – os seus e os dos outros. Achava que ler
e escrever é aquilo que distingue os homens dos outros animais. E é aquilo que
distingue os homens uns dos outros. Olhava de lado, com um olhar de suspeita e
troça, os políticos que não escreviam, que não sabiam escrever. Mesmo nos que
escreviam, distinguia os que escreviam bem e os que escreviam mal. E um dos
seus desdéns era pelos políticos que não liam, senão relatórios, nem escreviam,
senão notas. “Aquele nunca leu um livro!”, dizia, com uma voz cheia de
desprezo.
A
grande razão que o levava a desagradar-se de ler relatórios não era,
diferentemente do que se afirmava, a de que não lhe interessavam os assuntos de
que os relatórios tratavam. Era porque os relatórios estavam quase sempre mal
escritos: redigidos numa linguagem que diz em muitas e impróprias palavras o
que poderia (e, achava ele, deveria) ser dito em poucas e exactas palavras.
Então, preferia chamar o autor do relatório, olhá-lo nos olhos e fazer-lhe
perguntas. Assim, o obrigava a falar claro e a dizer o que não tinha dito.
Assim, o forçava a desfazer aquelas perífrases inclinadas e vazias. Assim, o
levava a expor a sua ignorância dissimulada com lugares-comuns num inglês
ingénuo e prepotente. Vi, várias vezes, muitos autores de relatórios entrarem
no seu gabinete com um passo seguro e altivo – e saírem de lá com um passo
vacilante e vencido.
Para
Soares, um grande político é aquele que tenta coincidir com um grande escritor.
Eram esses os que mais o fascinavam: Marco Aurélio, Frederico II, infante D.
Pedro, João Pinto Ribeiro, D. Luís da Cunha, Mouzinho da Silveira, duque de
Palmela, Passos Manuel, Disraeli, Jaurès, Clemenceau, Teófilo Braga, B.[asílio] Teles,
J.[oão] Chagas, Teixeira Gomes, Afonso Costa, Blum, Azaña, De Gaulle, Churchill,
Malraux, Senghor, Mendès France, Brandt, Mitterrand, Obama. E talvez fosse o
gosto pela escrita a única coisa que ele absolvia no Salazar que condenava. Em
Soares, “os dois corpos do rei”, de que fala o famoso ensaio de teologia
política sobre a Idade Média, escrito por Ernst Kantorowicz, eram o corpo
político e o corpo literário.
No
livro em que reúne textos sobre escritores, a que deu o muito intencional e
expressivo título de Incursões Literárias, escreve: “O meu pai que era um
pedagogo nato, um homem que tinha o dom de conhecer as pessoas, sempre me
aconselhou a ser escritor. Pretendia que eu tinha alguma facilidade para
escrever e realmente tinha, talvez demasiada, penso hoje, para poder ter sido,
alguma vez, um bom escritor. De qualquer modo, a literatura sempre me
apaixonou. (…) É certo que sempre tive, talvez, uma visão literária da vida e
das personagens romanescas ou não, que encontrei no meu caminho. Adquiri o
hábito de inventar histórias, totalmente ficcionadas, de pessoas que conheci e,
por esta ou aquela razão, me interessavam.” Em França ou na Grã-Bretanha, um
auto-retrato tão discretamente indiscreto teria dado origem a exegeses e
a teses (há imensos livros sobre a relação de Churchill, De Gaulle ou
Mitterrand com a escrita e a literatura). Aqui, ninguém deu por isso […]
[…] Soares
achava que a literatura é o grande íman do mundo, tornando-o menos
insuficiente, mais inteligível, menos opaco, mais incandescente. Era herdeiro
de uma ideia da literatura como imortalidade. Costumava dizer: “Ninguém sabe
quem são os primeiros-ministros do tempo do Eça, mas toda a gente sabe quem é o
Eça.” Como os da sua geração, achava também que a literatura dá voz. E que é
liberdade.
Um
dos grandes prazeres que tinha na vida, além do de ler, era o de falar de
livros e de escritores – sobretudo com escritores. No meio do tumulto político,
viu-o passar horas a falar de Garrett ou Herculano, de Camilo ou Eça, de Antero
ou O. Martins, de Ramalho ou Junqueiro, de Pessoa ou Pascoaes, de R. Brandão ou
T. Gomes, de Miguéis ou Nemésio, com João Gaspar Simões (tinha muito orgulho na
dedicatória cheia de admiração que Simões lhe fez na biografia de Pessoa),
Agostinho da Silva (seu antigo explicador, com quem dava passeios de bicicleta
a falar de filosofia, literatura, arte, cinema, numa espécie de “Educação do
Príncipe”), Casais Monteiro, Maria Lamas, Palma-Ferreira (muito assíduo, muito
imaginativo), Torga, V. Ferreira, Cesariny, Pacheco, Natália, David, Abelaira,
Urbano, Sophia, Eugénio, O’Neill, Alçada, C. Oliveira, C. Pires, M. da Fonseca,
Saramago, Agustina (num jantar memorável com Cela), Alegre, Abranches
Ferrão, Barradas de Carvalho, Joel Serrão, Piteira Santos, António Valdemar.
Escutava segredos e intrigas com o sorriso encantado de quem sabia que a
maledicência e a conspiração literárias ainda são mais insidiosas e mortíferas
do que a má-língua e a maquinação políticas.
Se
viajava, ou se algum escritor estrangeiro passava em Lisboa (vários vieram a
seu convite, para o Balanço do Século, por exemplo), convidava-o para almoçar
ou jantar: Borges, Bellow, le Carré, Eco, Cela, T. Ballester, Brodsky, Semprún,
Rushdie, Milosz, H. M. Enzensberger, Soyinka, J. Amado, Vargas Llosa, Garcia
Márquez, Octavio Paz e mais, muitos mais.
Os
seus serões eram cheios de política, de literatura, de história, de arte. O
tempo passava e os nomes passavam com ele. Saltava-se de Eça para Zola, de R.
Rolland para Orwell, de Sérgio para Abel Salazar, de B. Caraça para Martin du
Gard, de Régio para Cortesão, de M. Godinho para Braudel, de L. Caballero para
Lorca, de Churchill para Malraux, de Roosevelt para Hemingway, de Balzac para
Delacroix, de Koestler para Gide, de Manuel Mendes para Soares dos Reis, de V.
de Almeida para Ortega, de Steinbeck para Portinari, de S. Pereira Gomes para
Pavia, de Aquilino para Almada, de Alberty para Tàpies, de Picasso para Camus,
de Cesário para V. da Silva, de Columbano para Pessanha. Falava de escritores
como se falasse da família – de uma outra família. Mesmo os que não tinha lido
eram para ele parentes que não conhecia, mas que, ainda assim, não pertenciam
menos à família. E, quando falávamos de um poeta, as palavras com que falávamos
eram atravessadas pela voz nítida e ardente de Maria Barroso a dizer-nos um
poema, uma estrofe, um verso: “Floriram por engano as rosas bravas” (Pessanha);
“Naquele piquenique de burguesas” (Cesário) ; “Raiva de não ter trazido o
passado roubado na algibeira!“ (Pessoa / Álvaro de Campos); “Acusam-me de mágoa
e desalento” (Carlos Oliveira); “Sob as mordaças/ calam-se as palavras” (J.
Namorado). A noite avançava com lentidão rápida, e nós avançávamos com ela.
Outro
dos seus contentamentos maiores era o de ouvir e de contar histórias. Aprendeu
essa arte, refinada, maliciosa e encantatória, nas conversas quotidianas das
tertúlias dos cafés que, desde jovem, frequentara, como era uso na época. Sabia
histórias divertidíssimas e, em muitas delas, havia grandes ensinamentos para a
política e para a vida. Tinha histórias íntimas e públicas, épicas e cómicas,
passadas e presentes. Nelas, havia amores, conquistas, traições, ciladas,
infidelidades, poderes, vaidades, aventuras, ridículos. E no seu contar havia diálogos,
apartes, anedotas, trocadilhos, mímicas, gargalhadas. Para contar, usava a
memória e a imaginação, o imprevisto e o suspense. Contava para fazer aparecer
o que desaparecera, levado pelo tempo e pelo esquecimento. Contava com um ritmo
seguro, uma cadência certa, um clímax súbito. Soares contava histórias e o
fascínio por elas – e por ele – ia aumentando num crescendo glorioso. Um dos
livros que, entre gargalhadas, prometia escrever – e nunca escreveu – era o dos
funerais oficiais mais divertidos a que tinha assistido (Brejnev, Andropov,
Tchernenko, Hirohito, Hassan II, uma cena com o príncipe Rainier no funeral do
conde de Barcelona, no Escorial, etc.).
Na
escrita, fazia o louvor e a defesa de um estilo clássico, ordenado, directo e
claro, de firme precisão e de fria perfeição, que procurava praticar. Mas, por
vezes, a sua escrita trocava a recta pela curva e ganhava as sinuosas, ardentes
e deleitosas (esta podia ser uma palavra dele) digressões barrocas, com apostos
e continuados sucessivos, ênfases e perífrases, vaivéns e ziguezagues, num
movimento ondulatório, vibrante e voluptuoso, magnificado aqui e ali por um
sopro romântico. Nos seus livros, há quase sempre reflexão e narrativa,
argumentação e valoração, descrição e comentário, comemoração (comemorar-
lembrar em comum) e predição (predizer – dizer antes). O Portugal
Amordaçado, o seu livro dos livros, é disso um exemplo e é nisso exemplar. Aí,
a política está na vida e a vida está na política. E a vontade de liberdade
está nas duas […]
[…] Um
dos grandes gostos de Soares era o de ir a livrarias (tinha uma no prédio onde
morava) e alfarrabistas. Visitava-os com avidez, com concupiscência, num desejo
de satisfazer a sua logofilia, ou mesmo logofagia (como diria o seu amigo de
infância D. Mourão-Ferreira). Comprava muitos livros, numa apropriação
simbólica do saber. Cá ou lá fora, conhecia os lugares onde descobria o que lhe
interessava. Adorava conversar com os livreiros (quando viveu em Paris, fundou,
com outros exilados portugueses, uma livraria na Rue Gay-Lussac) e os
alfarrabistas (quando era Presidente, teve uma conversa na televisão com o mais
antigo deles, José Maria Almarjão). Os troféus de caça que gostava de exibir
eram as compras de livros raros ou manuscritos dos autores que admirava.
Lembro: as primeiras edições de Vieira, de Camilo, de Eça, de Pessoa, algumas
com dedicatórias. Ou a edição original completa da Enciclopédia de Diderot e
d’Alembert, ou a primeira edição de todo o Victor Hugo. Tinha um encadernador,
que punha no primeiro lugar da hierarquia dos seus artistas-artesãos, seguido
do barbeiro, do alfaiate e do jardineiro…
Quando
viajava, Soares transportava uma pesada pasta com livros. Levava muitos para
poder escolher bem. Escolher bem – escolher de acordo com a vontade do momento,
com o interesse do dia, com o desejo da noite. Lia vários livros ao mesmo
tempo, como alguém que assim fica com muitas mãos, muitos olhos e muitos pés
para andar por caminhos longos e curtos, conhecidos e desconhecidos, variados e
até opostos. Quando descobria um grande livro, esse passava a ser o grande
assunto das suas conversas.
As
suas casas foram sendo, a um ritmo crescente, ocupadas, sitiadas, devoradas
pelos livros. A sua biblioteca, de dezenas de milhares de volumes, é reveladora
dos seus interesses vastos e variados: política, literatura, história, ensaio,
geografia, artes. Muitos desses livros têm dedicatórias dos autores, que
mostrava com uma vaidade infantil. Como era conhecida a sua paixão, escritores
e editores de todo o mundo lhos enviavam. Ao seu gabinete chegavam diariamente
dezenas de volumes, ficando amontoados, pois não deixava que os levassem sem os
ver e agradecer.
Se
Soares vivia rodeado de livros, acrescentava às torres de Babel que o cercavam
as revistas e os jornais, portugueses e estrangeiros, que todos os dias recebia
numa abundância que exasperava quem queria mantar a sua casa arrumada, ordenada
e habitável. Assisti a muitas fúrias de Adamastor num cabo das tormentas
matinal, geradas por não encontrar os livros, as revistas ou os jornais que
estava a ler ou que queria ler.
A
leitura deles era, hegelianamente, a sua oração matinal de homem moderno. E era
a sua primeira ocupação como político. Essa leitura, feita com atenção, cuidado
e desvelo, inspirava-o, dava-lhe ideias, sugeria-lhe acções. Lia e tomava
apontamentos nos seus cadernos e blocos. Dessas notas, mal chegava à Rua da
Emenda (PS) , a S. Bento (primeiro-ministro), a Belém (Presidente da
República), ou à fundação, fazia telefonemas, dava instruções, escrevia cartas,
marcava encontros. Era com leitura que, todas as manhas, punha o mundo a girar.
Soares
não deitava papéis fora. Guardou tudo, desde o princípio até ao fim da vida, e
obrigava quem trabalhava com ele a guardar tudo. No final das reuniões, mandava
recolher o que ficara sobre a mesa. O seu arquivo, depois acrescentado com
outros arquivos muito importantes, é assim amplo e diverso. É um dos maiores
arquivos da nossa história contemporânea.
Soares
lia sempre: livros, jornais, revistas, catálogos. Soares escrevia sempre:
livros (até há um romance inédito, escrito na prisão), discursos, artigos,
prefácios, apontamentos. Como escrevia à mão (só houve um período, dos anos 60
para os 70, que escreveu à máquina), tinha no dedo um calo da caneta. Esse calo
dava-lhe mais orgulho do que qualquer título, cargo ou diploma.
Ao
longo dos anos, foi enchendo de observações e reflexões cadernos íntimos que se
foram somando e hoje estão, inéditos, no seu espólio. Um dia, se verá o que
esse “diário” diz de uma vida tão longa e tão rica. Como estes cadernos provam,
essa vida foi-se olhando a si-mesma no divino e demoníaco espelho da escrita.
Os cadernos provam também que aquele Mário Soares extrovertido, ligeiro,
espontâneo, intuitivo, inspirado, improvisador, impulsivo era completado por um
Mário Soares introspectivo, profundo, reflectido, meditativo, prudente,
metódico, aplicado, grave, que pesava os actos da sua vida na balança das
palavras. D. Quixote e Sancho Pança ao mesmo tempo, Soares era, afinal, muito
mais complexo, enigmático e indecifrável do que parecia e do que queria parecer.
Este homem, que passou a vida a dar notícias de si, talvez tenha deixado na
letra densa e sinuosa das palavras destes cadernos algumas notícias que não nos
tenha dado. Pode ser que sejam as chaves de um mundo não imaginado.
“Há
na palavra, no verbo, qualquer coisa de sagrado que nos impede de fazer dele um
jogo de acaso. Manejar sabiamente uma língua é praticar uma espécie de
feitiçaria evocatória”, diz Baudelaire. Para Mário Soares, ler e escrever
dava-lhe a certeza de que podia haver sempre um dia seguinte. Um dia seguinte
mesmo ao dia da sua morte
O íman do mundo [extracto] –
por José Manuel dos Santos, jornal
Público (online), 7 de Janeiro de 2017 – com sublinhados
nossos.
J.M.M.
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