António Valdemar, “jornalista, antigo aluno do Colégio
Moderno (propriedade da família Soares) e do próprio Mário Soares, privou
durante décadas com o antigo Presidente da República. Aqui deixa um testemunho
inédito sobre aspectos menos conhecidos da vida do antigo PR. Da cultura, à
política ou às viagens. Sem esquecer a gastronomia”
Era
um animal político. Mal acordava, Mário Soares queria saber tudo o que
acontecera. Mergulhava na leitura dos jornais e revistas. Portugueses.
Franceses. Espanhóis. Entretanto, seguiam – se os telefonema. Organizava
mentalmente essa informação para enfrentar mais outro dia.
O perfil
do homem público não se diferenciava muito do homem no convívio íntimo. Nos
afetos calorosos, nas aversões ferozes. Mudou, evidentemente, de opinião sem
alterar princípios fundamentais. Há situações que, de momento, não vale a pena
enumerar. Todavia, era espontâneo nas simpatias e antipatias. As reconciliações
possíveis não erradicaram os motivos de cisão, de incompatibilidade, de
afastamento. De corte de relações políticas. De relações pessoais. Ou ambas as
coisas.
Não
se adaptou à internet. O computador colocado na secretaria, do seu gabinete na
Fundação, era apenas um elemento decorativo. Até ao fim, tudo o que leu tinha
de ser em papel. Escrevia, com rapidez e fluência, na sua letra miúda. Cada vez
mais miúda. Mas, em certas ocasiões, emendava muito. As secretarias, durante
décadas, a Osita e a Maria José, habituaram – se a decifrar os manuscritos
labirínticos, os «textos aracnídeos» conforme exclamei ao ver uma folha A4
repleta correções, de acrescentamentos, de cortes, de repuxos.
Ao falar
– lhe nisso respondeu – me: «Procuro, apenas, ser claro». Insisti: «O seu
mestre Prof. Francisco Vieira de Almeida costumava advertir: «O simples não é o
fácil». Soares olhou – me de alto a baixo e pediu para repetir. E acrescentou:
«Eu que o diga...»
Era
um homem de cultura. Apesar de nunca ter sido escritor na verdadeira aceção da
palavra, frequentou tertúlias de Lisboa e de Paris e sentia – se em pé de
igualdade ao lado dos outros intelectuais. Procurava estar ao corrente das
novidades. Comprava tudo o que lhe interessava e alguns livros que, não fazendo
parte das suas curiosidades habituais, já constituíam uma referência.
Além
dos milhares de livros que tinha em casa, e nas casas de Nafarros e do Algarve,
instalou no 4º andar do seu prédio, uma «nova biblioteca». Perante aquele
universo bibliográfico, devidamente, sistematizada por temas e autores,
confirmei o prazer, mais do que isso, a volúpia de ter edições raras.
Encadernações preciosas. Primeiras edições, de livros com dedicatórias dos
autores e anotações dos possuidores.
Não
esqueço o deslumbramento que manifestou ao visitar a biblioteca de Pina
Martins, de folhear primeiras edições de Erasmo e Damião de Gois. «Estou
esmagado. É demais...» Nesse dia, ao jantar comigo e com o José Manuel dos Santos
- seu colaborador direto, durante décadas e amigo muito próximo - embora
houvesse matéria política escaldante, continuava dominado pela emoção que lhe
causara a coleção de Pina Martins. E, de vez em quando, repetia: «Estou
esmagado. ... Estive para cheirar o papel mas o Pina deve usar inseticidas».
Mário
Soares toda a vida também frequentou livrarias e alfarrabistas. Mesmo quando
era Primeiro- Ministro, Presidente da Republica, deputado do Parlamento
Europeu. Incluiu entre os seus amigos poetas e escritores. Uns ainda da geração
do pai, como Jaime Cortesão e Aquilino; da geração seguinte Rodrigues
Migueis e Miguel Torga; outros da sua geração como Carlos de Oliveira, Cardoso
Pires, Sophia, Natália Correia, Mário Cesariny ou Luís Pacheco. Outros ainda das
gerações mais recentes.
O
mesmo aconteceu com artistas plásticos. Admirava Columbano mas o seu apreço e
convívio estenderam – se, por exemplo, a Júlio Pomar, a Vieira da Silva, a
Jorge Martins. Escapava – lhe a música. Perguntava – me um dia: «Consegue
escrever com música?». «Sempre que estou em casa escrevo melhor com música».
«Mas que música?" – insistiu. «Com os clássicos. Quase sempre os mesmos».
«Compreendo perfeitamente...».
De
todos os escritores portugueses o que mais admirava era Eça de Queiroz. Outra
das suas admirações profundas era Teixeira Gomes. Várias vezes, na sua casa do
Vau, partilhamos a leitura de páginas antológicas do Agosto Azul e de pequenos
grandes textos acerca das metamorfoses da luz e da cor, das praias e do mar do
Algarve, das pedras com memória e das terras com aromas.
Era
um homem de coragem. Política e pessoal. Deu provas da sua determinação na
resistência ao salazarismo, nas prisões que suportou. No verão quente de 75, ao
insurgir – se contra outros totalitarismos. Em campanhas eleitorais, ao ser
agredido na Marinha Grande. Ao assistir, no encerramento de um Congresso da
Internacional Socialista, da qual era vice – presidente, ao atentado a Sartawi,
observador da OLP e abatido por um membro de um grupo radical, do Abu Nidal, no
Hotel de Montechoro.
Estava
preparado para as situações mais diversas. Trágicas, cómicas, insólitas. Em
1990, como Presidente da Republica entregou o Premio de Poesia a Natália
Correia e, ao mesmo tempo, aproveitou a oportunidade para a distinguir com a
Ordem da Liberdade. Natália Correia ouvia o discurso com o seu ar desafiador.
Enalteceu,
de início, em duas frases os méritos literários de Natália e os seus
contributos para a Democracia, antes e depois do 25 de Abril. A seguir Mário
Soares, numa breve nota pessoal, quando salientava, apenas e tão só, que
Natália Correia fora «uma das mulheres mais belas da Lisboa dos anos 40 e 50»
ouviu – se, em toda a sala, sem necessidade de microfone, a cólera vulcânica e
impetuosa de Natália; «Lá está ele a falar do meu corpo. Olhou sempre para mim
como uma fêmea. Nunca contemplou o meu espírito. Nem mesmo aqui...»
Era
de mais. Excedera os limites aceitáveis. Ultrapassara broncas sucessivas que
marcaram a sua presença na Presidência Aberta nos Açores. A cerimónia começava
a perder a dignidade institucional. Mário Soares decidiu abreviar o discurso.
Horas depois, num jantar reservado, riu. Riu imenso. Rimos todos com ele. A
amizade manteve – se na íntegra. Continuou a prestar a Natália todas as
homenagens. Em vida, por ocasião da morte e depois da morte.
Era
um apreciador da boa mesa. A mulher é que tratava dos assuntos domésticos. Tal
como acontecera com a mãe. Mas havia pequenas coisas que lhe davam satisfação.
Ir comprar doces e alguns queijos. No tempo das castanhas, de regresso a casa,
mandava o motorista parar numa esquina e comprava uma ou duas dúzias de
castanhas para a sobremesa. Com tinto.
Frequentou
os melhores restaurantes do mundo. Saboreou os pratos mais diversos. Evitava
ementas sofisticadas. Gostava, sobretudo, de pratos tradicionais: uma sopa de
legumes, a abrir; carne à jardineira; uma boa posta de pescada cosida; uma
omelete cremosa, com salsa picada. Pastéis de bacalhau. Pataniscas com arroz de
feijão. Comida caseira portuguesa. E gostava de bons vinhos. Comia e bebia com
moderação. Apreciava queijos. Olhava para a tábua com varias marcas como um
filatelista percorria as folhas de um álbum. Jean Daniel, num jantar de
família, ao experimentar vários queijos não se conteve perante um Serpa: «Ça c’
est le fromage». Um sorriso, de orelha a orelha, traduziu o contentamento de
Mário Soares ao verificar que os amigos, se sentiam bem recebidos, na sua casa
e à sua mesa.
Deliciava
– se, por exemplo, com pão-de-ló. Oferecia, generosamente. «Desculpe não gosto
de doces!». Com o ar mais sério do mundo dizia: «Comprei por sua causa. Coma ao
menos uma fatia?!». Em face da minha recusa exclamava: «Então como eu. Está
ótimo. Não sabe o que perde». Repetia. E com uma colher de sopa rapava ainda o
doce de ovos que estava dentro do pão-de-ló. Ficava regalado. Como uma criança.
O menino de sua mãe.
Era
um apaixonado pelas viagens. Nos anos 60 conheceu parte da Europa com a mulher
e os filhos. De país em pais. Surpreendendo os contrastes das paisagens.
Percorrendo monumentos e museus. Visitou o Brasil, após a fundação do Partido
Socialista, para falar com exilados políticos, desde militares da Rotunda e
seareiros que participaram na revolta do 7 de Fevereiro, como Sarmento Pimentel
e Jaime de Morais, até Casais Monteiro, Vítor da Cunha Rego e Manuel Pedroso
Marques.
Voltou
ao Brasil em viagens de Estado, recebido com todas as honras. Foi noutras
ocasiões fazer conferências e tomar parte em colóquios. Tinha relações pessoais
com Jorge Amado, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, António Cândido, Celso Furtado,
Cândido Mendes de Almeida, Fernando Henrique Cardoso, António Houaiss, José Aparecido de Oliveira, entre
muitas outras personalidades.
Era
agora o que não queria ser. Das últimas vezes que esteve no Rio convidaram – no
para uma jantar, com políticos e intelectuais. Ali se encontrou com Roberto
Marinho, o diretor e proprietário do jornal O Globo, da Televisão O Globo, da
rádio CBN, do Globonews, do maior império da comunicação social não só do
Brasil, mas também da América Latina. Marinho com noventa e muitos anos que
pareciam robustos fazia confusões tremendas. Ao cumprimenta–lo, Soares logo
ficou intrigado quando Marinho o interpelou: «Sabe alguma coisa daquele
político português, muito simpático, parece – me que se chama Soares e que foi
ou ainda é Presidente da Republica? Ele está bem? Se estiver com ele apresente
– lhe os meus cumprimentos...»
Com o
melhor dos sorrisos disse: «Está bem. Muito bem... Darei. Darei...» Ao contar-
me o que se passara com Roberto Marinho disse – me: «Estou a avançar para os
80. Espero que isto não me aconteça. Seria um horror». Entre centenas de outras
estórias, de um convívio de muitos anos, recordo – me deste episódio que o
estarreceu. E agora nos choca. Profundamente. Basta evocar imagens da
televisão, nas últimas aparições públicas. Deixou de ser quem era e do que
sempre quis ser. Já estava ausente de tudo e ausente de si próprio.
Soares, tal e qual [texto revisto pelo autor] –
por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências, antigo aluno de Mário Soares no Colégio Moderno], jornal Expresso (online), 7 de Janeiro
de 2017 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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