“O Inventor” – por António
Valdemar, in Caderno E, Expresso
O “Diário de Notícias” foi a sua última tribuna. Escrevia a
crónica semanal ‘Os Corvos’, que saía aos domingos, sempre na mesma página.
Tinha repercussão nos mais diferentes estratos sociais. De Salazar ao merceeiro
e ao barbeiro da esquina. A colaboração de Leitão de Barros não trazia
assinatura e vinha paginada num espaço próprio e com caracteres tipográficos
próprios. Todos sabiam quem era o autor. O título remetia, evidentemente, para
Lisboa. Leitão de Barros, porém, ocupava-se do que lhe apetecia e do que se
passava em qualquer parte do país e até no estrangeiro. Homem de muitos
ofícios, lecionou Desenho, Geometria Descritiva e Matemática nos liceus Camões
e Passos Manuel.
Isto constituiu apenas um modo de sobrevivência económica. Os
seus interesses repartiam-se por outras áreas. Soube, contudo, atingir o renome
intelectual — conforme diversas vezes me disse — para ganhar “o dinheiro que
desejo para não pensar no dinheiro”. Ficou na história do cinema. Os seus filmes
e documentários marcaram uma época. Desde “Malmequer” (1918) até “Vendaval
Maravilhoso” (1948), passando por “Severa”, extraído da peça e da narrativa
romanceada de Júlio Dantas e que foi, em 1931, o primeiro filme sonoro
português. Fixou o cenário marítimo e piscatório da Nazaré e da Póvoa de Varzim,
o universo rural de “As Pupilas do Senhor Reitor”, o pitoresco dos bairros
humildes de Lisboa e a realidade telúrica e humana das populações dos
arredores. Ficou ainda na história do jornalismo da primeira metade do século XX.
António Cortez Pinto apresentou, em 2015, na Universidade Nova de Lisboa, uma
tese de doutoramento acerca da orientação que desempenhou em dois semanários. Fundou
e dirigiu “O Domingo Ilustrado” (1925-1927) e “O Notícias Ilustrado”
(1928-1935), que se afirmaram pela renovação gráfica, pela abundância de temas
relatados e comentados e pela diversidade da colaboração.
E como era Leitão de Barros no dia a dia com qualquer um de nós?
Ou com o poder político e económico? Ou com os diretores dos jornais?
Imprevisível. Umas vezes agradável, outras desagradável. Muito simpático ou
ostensivamente antipático. E como era, ainda, Leitão de Barros com a família?
Com a mulher, os filhos, os netos, as cunhadas e os cunhados? Joana Leitão de
Barros e Ana Mantero, duas netas que privaram ainda com o avô, procuraram-me, recentemente,
para obter informações e aclarar dúvidas que lhes suscitou a leitura de um
artigo meu de 1996, no dia do centenário do nascimento de Leitão de Barros. Preparam
um livro que se baseia em documentação inédita encontrada no espólio, um acervo
de muita correspondência, recebida e enviada; de muitas fotografias, de muitos
recortes de jornais e revistas. Ao serem divulgados e contextualizados, vão surgir
— garantiram-me — “revelações até agora desconhecidas a propósito do homem e da
obra”.
José Leitão de Barros nasceu em Lisboa, a 22 de outubro de 1896,
e entrou na “ínclita família” dos Gameiros pelo casamento, em agosto de 1923,
com Helena, uma das filhas de Alfredo Roque Gameiro, que seguiu o pai na
aguarela e no desenho (José tinha 27 anos e Helena 28). Raquel, outra filha de
Roque Gameiro, principiou mais cedo na ilustração e na aguarela e atingiu maior
notoriedade. Ainda outra filha, Maria, casou com Martins Barata e proporcionou novas
ramificações. Havia mais dois filhos, Manuel e Rui. Este último, escultor, em
agosto de 1935, com 29 anos, morreu, juntamente com a mulher (que estava
grávida), na estrada de Sintra, num choque entre a moto que conduzia e um
automóvel. Aos Gameiros juntou-se a dinastia dos Barros. Uma irmã de José casou
com o arquiteto Cottinelli Telmo, sogro de Daciano Costa. E outra irmã, Teresa,
formada em Letras, lecionou, no tempo áureo das Guardiolas, no Liceu Maria
Amália, três ou quatro gerações que, em grande parte, guardaram deplorável
memória das suas aulas; integrou o júri do polémico concurso organizado por
António Ferro em que Fernando Pessoa enviou a “Mensagem”; e, antes e já depois
do 25 de Abril, trabalhou na biblioteca e no arquivo do “Diário de Notícias”.
Era feia e assumidamente reacionária. Tinha bigode e vestia mal. Desde o chapéu
até aos sapatos.
ALMADA E OS “PAINÉIS”
Em agosto de 1960, entrei como repórter para o “Diário de
Notícias”. O lendário chefe da secretaria, Mário Barros — uma das raras pessoas
vivas que privaram com o poeta Gomes Leal; que pertencera a uma tertúlia do
Café Chave d’Ouro ligada ao 28 de Maio e de que fazia parte o general Gomes da
Costa; e que conhecera, de perto, toda a geração do “Orpheu” (tratava por tu
Almada Negreiros e Alfredo Guisado) —, disse-me, enquanto marcava, pelo
telefone, um serviço de agenda: “O Leitão de Barros quer conhecer-te, por causa
dessa trapalhada da questão dos ‘Painéis’, das tuas entrevistas com o Almada.
Ele está convencido de que, no ‘Diário de Notícias’, é a única pessoa que pode
falar e escrever sobre os ‘Painéis’ e que o que é preciso saber é quem foi que
os pintou e para onde se destinavam os ‘Painéis’.” Em ‘Os Corvos’, Leitão de
Barros tinha dado algumas alfinetadas que haviam irritado Almada, que me
comentou com acidez: “Só faltava agora este preopinante...”
Dias depois, em plena redação, tivemos a primeira aproximação.
Eu preparava-me para sair e ele chegava com o texto de ‘Os Corvos’ para publicar
no domingo. Dirigi-me ao seu encontro e identifiquei-me. A conversa
prolongou-se até às 4h ou 5h da madrugada. Era a ‘Nau Catrineta’. Tinha sempre
muito que contar (era um conversador fascinante, como Almada, Nemésio, o professor
Vieira de Almeida, António Pedro e poucos mais). Estou a ouvi-lo. Principiou ao
ataque: “Como é que tu, que és tão novo, mais ainda do que eu julgava, te
atreves a escrever sobre os ‘Painéis’? Já leste o livro de José de Figueiredo? Como
é que o monstro sagrado do Almada te deu as entrevistas que nunca me quis dar?
Ele, se calhar, não quis foi discutir geometria comigo...”
Deixei-o falar à vontade. Descarregou os nervos. Referi-lhe que
passei alguns meses no Museu Nacional de Arte Antiga, apresentado por Almada ao
dr. João Couto, que me explicou as várias teses e me pôs à disposição o
essencial e o acessório que havia na biblioteca.
[a continuar]
O Inventor [Parte I] –
por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências], revista
E, Expresso, 15 de Julho de 2017, pp. 46/50
– com sublinhados nossos.
J.M.M.
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