quinta-feira, 20 de julho de 2017

LEITÃO DE BARROS - “O INVENTOR” [PARTE II]


O Inventor” [parte II] – por António Valdemar, in Caderno E, Expresso

A FESTA DE DESPEDIDA

A nossa relação pessoal passou a ser assídua. Uma ou duas vezes tentei entrevistá-lo: “Quanto é que tu me pagas? Vais receber dinheiro um texto feito com as minhas ideias? Resolvi dizer o que penso apenas nos ‘Corvos’. Começo a ficar seco e não desejo repetir-me”, declarou com um ar desconcertante. Apareceu recentemente no espólio, inventariado pelas netas, uma carta minha, que revela a proximidade que tivemos, a propósito da festa que Leitão de Barros ofereceu, cerca de um ano antes de falecer, na Casa do Banzão, em Colares. Foi, ao pressentir a morte, uma despedida dos amigos e de algum mundo oficial. Teve o aparato barroco dos cortejos históricos: GNR a cavalo e com uniforme de gala, à chegada dos visitantes, em redor da moradia e da torre... Reuniu quase todo o mundo das letras, das artes, da música, do teatro e do cinema. Incluiu, ainda, gente do Governo e da oposição. Do reviralho republicano. Compareceram, como é óbvio, do “Diário de Notícias” o diretor Augusto de Castro, a coordenadora do suplemento “Artes e LetrasNatércia Freire, o chefe da redação João Coito, o jornalista Artur Maciel. Surpreendeu-me a distinção do convite que Leitão de Barros me fez pelo telefone e o cartão que mandou, pelo correio, para minha casa. Não vi mais ninguém do “Diário de Notícias”. Estiveram, possivelmente, administradores.
APOSTA NO INSTITUCIONAL

Para a necrologia de Leitão de Barros, preparada com razoável antecipação, li ‘Os Corvos’, no livro e no jornal. Voltei a lê-lo para o artigo que escrevi no centenário do seu nascimento. Consultei, ainda, número a número, a coleção de “O Domingo Ilustrado” e de “O Notícias Ilustrado”. Encontrei, por exemplo, textos de Fernando Pessoa e desenhos e textos de Almada Negreiros. Leitão de Barros não hesitou publicar, em “O Domingo Ilustrado”, uma versão do último manifesto de Almada Negreiros, “Pa-Ta-Pon”, uma catalinária fulminante contra Martinho Nobre de Melo, catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa. Jovem ministro da Justiça de Sidónio, na altura, Martinho era um dos dirigentes da ditadura militar que, pela primeira vez, incluiu no Governo o ainda desconhecido Oliveira Salazar. Entretanto, Leitão de Barros teceu rasgados elogios a Almada, classificando- o “o maior nome da arte modernista”. Contudo, as preferências de Leitão de Barros, ao recolher opiniões para um inquérito ou qualquer outro destaque, recaíam em Afonso Lopes Vieira e António Correia de Oliveira, entre os poetas; em Carlos Malheiro Dias e Antero de Figueiredo, entre os escritores; e em Carlos Reis e Roque Gameiro, entre os artistas plásticos.
Nos momentos solenes, o Dantas era infalível. Apostava, portanto, nos valores institucionais. Não se apercebeu do significado das vanguardas europeias nem da importância do “Orpheu”. Enredou-se nas anedotas de café, na chicana das gazetilhas, nas ferroadas das caricaturas. Não reparou, ignorou ou encolheu os ombros quando — dois ou três anos antes do “Manifesto Anti-Dantas” de AlmadaFernando Pessoa, ao criticar o “Bartolomeu Marinheiro” de Afonso Lopes Vieira, escrevia sem papas na língua: “Os portugueses de amanhã, se forem educados na estupidez pela leitura das obras infantis como o ‘Bartolomeu Marinheiro’ [...], terão por Shakespeare o sr. Júlio Dantas, por Shelley o sr. Lopes Vieira e... serão espanhóis.” (Não ficámos espanhóis, mas Afonso Lopes Vieira, durante o salazarismo, era um dos poetas que figuravam nos livros de instrução primária... Ilustrados por Raquel Roque Gameiro)

A DISPERSÃO CONTÍNUA
A opção que Leitão de Barros tomou, no decurso de uma dispersão contínua, por fazer muitas coisas e ao mesmo tempo, se impediu que ficasse reduzido a pão e laranjas, mas sem o conforto financeiro que pretendia, em termos culturais transformou- o, como artista plástico, escritor e homem de teatro, num epígono de epígonos. Uma tarde, no ateliê da Rua D. Pedro V, perguntei-lhe se já tinha refletido na ascensão de artistas, poetas e escritores da sua idade ou ligeiramente mais velhos (casos de Fernando Pessoa, Almada, Eduardo Viana, Jorge Barradas e António Soares), uma vez que ele se colocara à margem de uma geração com um contributo inovador em que poderia ter participado?

A resposta foi imediata: “Não tenho nada a ver com o Amadeu Cardoso e muito menos com o Picasso.” E pormenorizava: “O Viana é um pintor excecional. O Almada é e foi sempre o Almada. O Barradas só ganhou projeção nacional, aos 50 anos, ao abandonar as colaborações nos jornais e ao dedicar-se à cerâmica. Formou uma nova escola de ceramistas. Mas, por exemplo, o António Soares, os seus óleos, guaches e desenhos situam-se antes do Picasso e do Amadeu. Lá fora, é claro, pois aqui estávamos agarrados ao Silva Porto e ao Pousão, ao Columbano e ao Carlos Reis. E quem frequentou a Escola de Belas-Artes era triturado pela severidade do desenho lecionado pelo Condeixa e pelo Luciano Freire. O Soares teve a sorte de não passar por lá...”
A OBSESSÃO DO SOARES

“Eu poderia ter escolhido outro caminho... Todos gostam imenso do Soares, embora seja um indivíduo intratável. É o autor da maior parte das capas dos principais livros do António Ferro. Foi duas vezes Primeiro Grande Prémio de Pintura, atribuído pelo Ferro nos Salões de Arte Moderna do SNI. Consagrado na Exposição Internacional de Paris. O Almada nunca perdoou isso ao Ferro. O Soares fez um retrato estupendo do cardeal Cerejeira, outro retrato estupendo da rainha Leonor de Gusmão, para o Paço Ducal de Vila Viçosa. Não te esqueças do retrato da Natacha e do retrato da irmã. Não têm nada a ver com o modernismo, com o retrato do Fernando Pessoa feito pelo Almada ou com os retratos do Mário Eloy. Se lho encomendassem, o Soares teria retratado o Salazar e o Dantas. Eu sabia e sei fazer o mesmo que o Soares faz e que vai repetindo há 40 anos com pequenas variações. Ele compra revistas francesas da moda e de turismo: pega naquilo, dá uma volta e aparecem aquelas mulheres, deslumbrantes e esquisitas, de Paris, num cabaret, lábios pintados, um cigarro na mão ou entre os lábios; ou, então, numa terrasse de Montmartre, com blusas e casacos lindíssimos. Quem é que não gosta?”
SETE DIAS E MEIO...

“Conheces aquela história do Soares imaginada pelo Bernardo Marques? Uma delícia!” É evidente que já a ouvira ao próprio Bernardo Marques e a Abel Manta ou a Jorge Barradas. Disse que a ignorava, e Leitão de Barros, como um gato arrepiado e com rasgos impetuosos de farsa, à maneira de Gervásio Lobato, recriou com humor cáustico: “O Mário Ribeiro, dono do Bristol Club, instalado onde está a sede do Benfica, arranjou, dentro do edifício, um ateliê para o Soares e, mais tarde, outro para o Guilherme Filipe. O Mário Ribeiro adorava as pinturas e desenhos do Soares. Entrava em êxtase com as mulheres nas capas do ‘ABC’. Pagou ao Soares uma viagem a Paris para ele ir mesmo a Paris. Tinha muito dinheiro. As roletas chegavam a funcionar 24 horas. Nenhum artista ou escritor amigo do Mário Ribeiro pagava nada no Bristol. Comiam e bebiam à vontade. Só pagavam às putas se fossem com elas para a cama. Como era possível o Soares a impingir-nos Paris sem nunca ter posto lá os pés? Então o Soares andou em Paris quinze dias para ver mesmo Paris. Mas, como viveu sempre de noite e se levantou sempre às 5h ou 6h da tarde, o Bernardo dizia, com imensa graça e toda a verdade, que ele ficou apenas sete dias e meio... Daí para cá o Soares cria mulheres e faz paisagens de Paris quando, afinal, são vestidas e despidas, à noite e de madrugada, na casa onde mora, na Rua de Santo António dos Capuchos, cujas traseiras dão para as traseiras do Patriarcado. É assim que ele e o Cerejeira se cumprimentam. O retrato do Cerejeira foi executado a partir de fotografias escolhidas pelo padre Moreira das Neves. O Cerejeira nunca posou, é inimaginável, às horas em que o Soares trabalha...
O LEGADO DE RAMALHO

Um dos mestres de Leitão de Barros era o Ramalho Ortigão das “Últimas Farpas” e de “O Culto da Arte em Portugal”. Incutiu-lhe, a ele e a muitos outros jovens da sua geração, desiludidos e inconformados com a I República, a chama do nacionalismo e o fervor do regionalismo, a urgência da salvaguarda e recuperação do património, da conservação e restauro de monumentos. Ramalho também fez despertar a nova geração para o aprofundamento das raízes históricas e culturais que emergem dos cancioneiros medievais, dos ‘Amadizes’, da obra lírica e épica de Camões, do teatro de Gil Vicente, do teatro, da poesia e da literatura de viagens de Garrett.
Este legado, que ganhou forte expressão em Afonso Lopes Vieira e em Roque Gameiro, também perdura em Leitão de Barros e na atividade que este desenvolveu no cinema, no teatro, no jornalismo, nos cortejos históricos e na Exposição do Mundo Português.

[a continuar]

O Inventor [Parte II] – por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], revista E, Expresso, 15 de Julho de 2017, pp. 46/50 – com sublinhados nossos.

J.M.M.

Sem comentários: