“O Inventor” [parte II] – por António Valdemar, in Caderno E, Expresso
A FESTA DE DESPEDIDA
A nossa relação pessoal passou a ser assídua. Uma ou duas vezes
tentei entrevistá-lo: “Quanto é que tu me pagas? Vais receber dinheiro um texto
feito com as minhas ideias? Resolvi dizer o que penso apenas nos ‘Corvos’.
Começo a ficar seco e não desejo repetir-me”, declarou com um ar
desconcertante. Apareceu recentemente no espólio, inventariado pelas netas, uma
carta minha, que revela a proximidade que tivemos, a propósito da festa que Leitão
de Barros ofereceu, cerca de um ano antes de falecer, na Casa do Banzão, em
Colares. Foi, ao pressentir a morte, uma despedida dos amigos e de algum mundo
oficial. Teve o aparato barroco dos cortejos históricos: GNR a cavalo e com
uniforme de gala, à chegada dos visitantes, em redor da moradia e da torre...
Reuniu quase todo o mundo das letras, das artes, da música, do teatro e do cinema.
Incluiu, ainda, gente do Governo e da oposição. Do reviralho republicano.
Compareceram, como é óbvio, do “Diário de Notícias” o diretor Augusto de
Castro, a coordenadora do suplemento “Artes e Letras” Natércia Freire, o chefe
da redação João Coito, o jornalista Artur Maciel. Surpreendeu-me a distinção do
convite que Leitão de Barros me fez pelo telefone e o cartão que mandou, pelo
correio, para minha casa. Não vi mais ninguém do “Diário de Notícias”.
Estiveram, possivelmente, administradores.
APOSTA NO INSTITUCIONAL
Para a necrologia de Leitão de Barros, preparada com razoável
antecipação, li ‘Os Corvos’, no livro e no jornal. Voltei a lê-lo para o artigo
que escrevi no centenário do seu nascimento. Consultei, ainda, número a número,
a coleção de “O Domingo Ilustrado” e de “O Notícias Ilustrado”. Encontrei, por
exemplo, textos de Fernando Pessoa e desenhos e textos de Almada Negreiros. Leitão
de Barros não hesitou publicar, em “O Domingo Ilustrado”, uma versão do último
manifesto de Almada Negreiros, “Pa-Ta-Pon”, uma catalinária fulminante contra Martinho
Nobre de Melo, catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa. Jovem ministro da
Justiça de Sidónio, na altura, Martinho era um dos dirigentes da ditadura
militar que, pela primeira vez, incluiu no Governo o ainda desconhecido
Oliveira Salazar. Entretanto, Leitão de Barros teceu rasgados elogios a Almada,
classificando- o “o maior nome da arte modernista”. Contudo, as preferências de
Leitão de Barros, ao recolher opiniões para um inquérito ou qualquer outro destaque,
recaíam em Afonso Lopes Vieira e António Correia de Oliveira, entre os poetas;
em Carlos Malheiro Dias e Antero de Figueiredo, entre os escritores; e em Carlos
Reis e Roque Gameiro, entre os artistas plásticos.
Nos momentos solenes, o Dantas era infalível. Apostava,
portanto, nos valores institucionais. Não se apercebeu do significado das
vanguardas europeias nem da importância do “Orpheu”. Enredou-se nas anedotas de
café, na chicana das gazetilhas, nas ferroadas das caricaturas. Não reparou,
ignorou ou encolheu os ombros quando — dois ou três anos antes do “Manifesto
Anti-Dantas” de Almada — Fernando Pessoa, ao criticar o “Bartolomeu Marinheiro”
de Afonso Lopes Vieira, escrevia sem papas na língua: “Os portugueses de
amanhã, se forem educados na estupidez pela leitura das obras infantis como o
‘Bartolomeu Marinheiro’ [...], terão por Shakespeare o sr. Júlio Dantas, por
Shelley o sr. Lopes Vieira e... serão espanhóis.” (Não ficámos espanhóis, mas
Afonso Lopes Vieira, durante o salazarismo, era um dos poetas que figuravam nos
livros de instrução primária... Ilustrados por Raquel Roque Gameiro)
A DISPERSÃO CONTÍNUA
A opção que Leitão de Barros tomou, no decurso de uma dispersão
contínua, por fazer muitas coisas e ao mesmo tempo, se impediu que ficasse
reduzido a pão e laranjas, mas sem o conforto financeiro que pretendia, em
termos culturais transformou- o, como artista plástico, escritor e homem de teatro,
num epígono de epígonos. Uma tarde, no ateliê da Rua D. Pedro V, perguntei-lhe
se já tinha refletido na ascensão de artistas, poetas e escritores da sua idade
ou ligeiramente mais velhos (casos de Fernando Pessoa, Almada, Eduardo Viana,
Jorge Barradas e António Soares), uma vez que ele se colocara à margem de uma
geração com um contributo inovador em que poderia ter participado?
A resposta foi imediata: “Não tenho nada a ver com o Amadeu
Cardoso e muito menos com o Picasso.” E pormenorizava: “O Viana é um pintor excecional.
O Almada é e foi sempre o Almada. O Barradas só ganhou projeção nacional, aos
50 anos, ao abandonar as colaborações nos jornais e ao dedicar-se à cerâmica.
Formou uma nova escola de ceramistas. Mas, por exemplo, o António Soares, os
seus óleos, guaches e desenhos situam-se antes do Picasso e do Amadeu. Lá fora,
é claro, pois aqui estávamos agarrados ao Silva Porto e ao Pousão, ao Columbano
e ao Carlos Reis. E quem frequentou a Escola de Belas-Artes era triturado pela
severidade do desenho lecionado pelo Condeixa e pelo Luciano Freire. O Soares teve
a sorte de não passar por lá...”
A OBSESSÃO DO SOARES
“Eu poderia ter escolhido outro caminho... Todos gostam imenso
do Soares, embora seja um indivíduo intratável. É o autor da maior parte das capas
dos principais livros do António Ferro. Foi duas vezes Primeiro Grande Prémio
de Pintura, atribuído pelo Ferro nos Salões de Arte Moderna do SNI. Consagrado
na Exposição Internacional de Paris. O Almada nunca perdoou isso ao Ferro. O Soares
fez um retrato estupendo do cardeal Cerejeira, outro retrato estupendo da
rainha Leonor de Gusmão, para o Paço Ducal de Vila Viçosa. Não te esqueças do
retrato da Natacha e do retrato da irmã. Não têm nada a ver com o modernismo,
com o retrato do Fernando Pessoa feito pelo Almada ou com os retratos do Mário
Eloy. Se lho encomendassem, o Soares teria retratado o Salazar e o Dantas. Eu
sabia e sei fazer o mesmo que o Soares faz e que vai repetindo há 40 anos com
pequenas variações. Ele compra revistas francesas da moda e de turismo: pega
naquilo, dá uma volta e aparecem aquelas mulheres, deslumbrantes e esquisitas,
de Paris, num cabaret, lábios pintados, um cigarro na mão ou entre os lábios;
ou, então, numa terrasse de Montmartre, com blusas e casacos lindíssimos. Quem
é que não gosta?”
SETE DIAS E MEIO...
“Conheces aquela história do Soares imaginada pelo Bernardo
Marques? Uma delícia!” É evidente que já a ouvira ao próprio Bernardo Marques e
a Abel Manta ou a Jorge Barradas. Disse que a ignorava, e Leitão de Barros,
como um gato arrepiado e com rasgos impetuosos de farsa, à maneira de Gervásio
Lobato, recriou com humor cáustico: “O Mário Ribeiro, dono do Bristol Club,
instalado onde está a sede do Benfica, arranjou, dentro do edifício, um ateliê
para o Soares e, mais tarde, outro para o Guilherme Filipe. O Mário Ribeiro
adorava as pinturas e desenhos do Soares. Entrava em êxtase com as mulheres nas
capas do ‘ABC’. Pagou ao Soares uma viagem a Paris para ele ir mesmo a Paris.
Tinha muito dinheiro. As roletas chegavam a funcionar 24 horas. Nenhum artista ou escritor amigo do Mário Ribeiro pagava nada no
Bristol. Comiam e bebiam à vontade. Só pagavam às putas se fossem com elas para
a cama. Como era possível o Soares a impingir-nos Paris sem nunca ter posto lá
os pés? Então o Soares andou em Paris quinze dias para ver mesmo Paris. Mas,
como viveu sempre de noite e se levantou sempre às 5h ou 6h da tarde, o
Bernardo dizia, com imensa graça e toda a verdade, que ele ficou apenas sete
dias e meio... Daí para cá o Soares cria mulheres e faz paisagens de Paris
quando, afinal, são vestidas e despidas, à noite e de madrugada, na casa onde
mora, na Rua de Santo António dos Capuchos, cujas traseiras dão para as
traseiras do Patriarcado. É assim que ele e o Cerejeira se cumprimentam. O retrato
do Cerejeira foi executado a partir de fotografias escolhidas pelo padre
Moreira das Neves. O Cerejeira nunca posou, é inimaginável, às horas em que o
Soares trabalha...”
O LEGADO DE RAMALHO
Um dos mestres de Leitão de Barros era o Ramalho Ortigão das
“Últimas Farpas” e de “O Culto da Arte em Portugal”. Incutiu-lhe, a ele e a muitos
outros jovens da sua geração, desiludidos e inconformados com a I República, a
chama do nacionalismo e o fervor do regionalismo, a urgência da salvaguarda e
recuperação do património, da conservação e restauro de monumentos. Ramalho
também fez despertar a nova geração para o aprofundamento das raízes históricas
e culturais que emergem dos cancioneiros medievais, dos ‘Amadizes’, da obra
lírica e épica de Camões, do teatro de Gil Vicente, do teatro, da poesia e da
literatura de viagens de Garrett.
Este legado, que ganhou forte expressão em Afonso Lopes Vieira e
em Roque Gameiro, também perdura em Leitão de Barros e na atividade que este
desenvolveu no cinema, no teatro, no jornalismo, nos cortejos históricos e na
Exposição do Mundo Português.[a continuar]
O Inventor [Parte II] – por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], revista E, Expresso, 15 de Julho de 2017, pp. 46/50 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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