“O Inventor” [Conclusão] – por António Valdemar, in Caderno E, Expresso
LANÇAMENTO DE SALAZAR
Espectador e crítico dos primórdios do século XX, Leitão de
Barros assistiu à desagregação da monarquia e a sucessivos episódios trágicos
que derrubaram a República. Apoiou o consulado de Sidónio Pais e também o golpe
de 28 de Maio de 1926, que implantou a ditadura militar e preparou a ditadura
do Estado Novo. Participou no lançamento e consolidação da imagem de Salazar.
António Ferro, por sugestão de Mário Barros a Eduardo Schwalbach, diretor do
“Diário de Notícias” (Augusto de Castro estava, na altura, em Bruxelas, à
frente da Legação de Portugal), fez as entrevistas, depois publicadas em livro
e traduzidas em várias línguas, que revelaram os objetivos políticos de Salazar
como chefe do Governo.
Leitão de Barros, diretor de “O Domingo Ilustrado” e de “O Notícias
Ilustrado”, acompanhou essa promoção de Salazar e também a completou no cinema,
por exemplo, em documentários acerca de algumas das instituições do
salazarismo, como a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa. Enquanto esteve
no jornal “O Século”, nos anos 30 e 40, entre numerosas iniciativas que
desenvolveu, Leitão de Barros criou “O Século Ilustrado” e a Feira Popular de
Lisboa; entrevistou Salazar e também, no Castelo de Bellevue, nos arredores de
Paris, a rainha D Amélia, que enalteceu as obras do Estado Novo e a ação de
Salazar.
O POLEIRO DE ‘OS CORVOS’
Leitão de Barros ficou na história do “Diário de Notícias”
dirigido por Augusto de Castro. Fez crónicas e reportagens na Inglaterra, na
Espanha e no Brasil. Mas, durante os 15 anos de permanência no jornal,
assinalou-se fundamentalmente através da coluna semanal ‘Os Corvos’. Eram
textos que se aproximavam da intimidade alfacinha introduzida nos folhetins do
século XIX, de Júlio César Machado e Gervásio Lobato, e da mordacidade satírica
de “As Farpas”, de Ramalho, e de “Os Gatos”, de Fialho.
'Os Corvos’ denunciam o temperamento irrequieto de Leitão de Barros.
Ele conciliava a efusão lírica, a toada elegíaca e o entusiasmo patriótico com
erupções irreprimíveis de sarcasmo. Era feroz — e regra geral oportuno —
perante a mediocridade, o mau gosto e o vazio da pompa académica. Mas não
ponderou a advertência de Fernando Pessoa num texto de acaso de Álvaro de
Campos: “O poeta superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que
decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir.” Esse foi um
dos erros que cometeu ao apreciar os poetas, escritores e artistas do seu
tempo. E de outros tempos.
CERCADO DE INVEJAS
‘Os Corvos’ — de que há uma reduzida seleção, feita pelo próprio
Leitão de Barros, em 1959 e 1961, dois volumes ilustrados por João Abel Manta —
mobilizaram a curiosidade e interesse de milhares de leitores. Refletiam as
tendências estéticas, os modelos literários e as opiniões políticas e sociais
de Leitão de Barros, que registou de 1953 a 1967, no “Diário de Notícias”, o
que ocorria na cidade, no país e alguma coisa do que chegava até nós.
Insistiu, alguns meses antes de falecer, na autópsia possível da
realidade do Portugal que tivemos. Debatia-se com a degradação física, o
envelhecimento progressivo, a consciência aguda da morte. Procurava ajustar
ideias e projetos para enfrentar um mundo bastante diferente daquele em que
assumira intervenção decisiva. Tinha propostas para Lisboa: valorizar a
Avenida, recuperar Alfama, as ruínas do Carmo; cuidar dos jardins e dos
miradouros; incentivar o turismo e a hotelaria; ajudar as crianças e os velhos.
Contudo, mesmo na agonia do salazarismo, eram outras as
conceções na arquitetura, na urbanização, na educação e no ensino, na segurança
social, nas exigências das populações. Em especial dos jovens.
Morreu, como viveu, cercado de invejas. Não lhe perdoavam nem o talento
nem o êxito. Numa carta inédita — no espólio, a cargo das netas —, Eduardo
Malta descreve, com minúcia, citando nomes, a sabotagem para inviabilizar uma
votação para Leitão de Barros ser eleito sócio correspondente da Academia de Belas-Artes.
Não era uma questão de currículo, mas aversão pessoal. Faltou-lhe até, naquela
altura, para ter quórum, a solidariedade de uma pessoa muito próxima e da
família. Em nova votação admitiram-no. Era tarde. Não tomou posse. Estava
moribundo...
POSTERIDADE INEXORÁVEL
José Leitão de Barros, cidadão de Lisboa, falecido há 50 anos, a
29 de julho de 1967, recebeu as maiores homenagens e teve um enterro imponente,
da Basílica da Estrela para um jazigo no Cemitério dos Prazeres. Estou certo de
que ele gostaria de ter feito a notícia da sua morte e a reportagem do funeral,
distribuindo os adjetivos de luxo para verter as lágrimas e acentuar as
condolências
Teve honras na toponímia, com o nome numa rua em São Domingos de
Benfica. É pouco para quem deu muito. Não é única a situação. Em diversas circunstâncias,
já verificáramos outros casos de retumbante prestígio oficial ou oficioso que
se eclipsaram decorrido meio século ou talvez menos. Mergulharam no esquecimento.
O mesmo que envolve a memória de Leitão de Barros. Manter na íntegra, depois da
morte, o protagonismo atribuído em vida não é fácil. A posteridade é inexorável
O Inventor –
por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências], revista
E, Expresso, 15 de Julho de 2017, pp. 46/50
– com sublinhados nossos.
J.M.M.
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