“O silêncio do fogo na voz da dor… ” – por Nádia Piazza, in Público, 23/07/2017
“Estamos tão cansados, mas não podemos estar. Os mortos não se
calam e não nos deixam cansar. Gritam por Justiça! Exigem Mudança!
A Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande, o
grande, brutal e devastador incêndio que lavrou do dia 17 a 24 de Junho de
2017, nos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de
Pêra, é um movimento cívico que partiu dos familiares e amigos das vítimas
mortais desta tragédia. Uma associação cujo mote é apurar responsabilidades e
ajudar a construir um futuro em que tal tragédia e crueldade não volte a
acontecer!
Esta é a descrição do que pretendemos ser, com a ajuda de todos
e a lembrança de todos aqueles que partiram. Porque hoje somos uma comunidade
traumatizada. Uma comunidade sujeita a uma tal brutalidade que não se nos apaga
da memória... O cheiro a terra ardida é algo que nos envolve, que nos macilenta
e que se entranhou em cada um de nós.
A perda de dezenas de vidas e de forma tão trágica que roça a
loucura deixou uma sociedade e todo o seu contexto à volta num luto imposto. A
vida acabou ali, naquela estrada para muitas pessoas. Inocentes. E acabou
também parte de uma vida para os que ficaram. Os que ficámos, ficámos mais
pobres, mais sós, apenas com o alento das memórias, mas com a revolta de toda
esta situação. São filhos sem pais. São pais sem filhos... são casas sem gente,
é gente sem gente, não é natural!
Olho à volta e as pessoas não se riem, choram sozinhas,
acanhadas, não se olham nos olhos, com vergonha pela sua impotência, com medo;
o cenário é deprimente e não nos ajuda a superar com dignidade a tragédia. O
Inverno não tarda e com ele as ruas despidas de vida. Despidas de ainda mais
vida.
Há rancor, ressentimento com o território e com as entidades
públicas. O Estado falhou. A Nação não existiu.
Mas não falhou apenas nesta tragédia. O Estado vem falhando ao
longo de décadas. O Estado padece de uma cegueira crónica, está enfermo de um
tal sentimento de negação de si próprio. Nega o seu estado de país rural, um
país orgulhosamente rural e por isso mesmo rico.
Enquanto Estado é um conceito frio, masculinizado, distante, de
um ente que impõe tributos e leis aos seus súbditos, um amontoado de entidades
supostamente hierarquizadas, com dirigentes supostamente competentes, e que
supostamente deveriam cumprir e fazer cumprir um conjunto de leis e regras que
se vão aprovando (ou não!) conforme as vontades políticas da estação. Assim se
vai governando Portugal. Sem pactos de regime e visão a longo prazo. Vão-se
puxando o tapete uns aos outros, não se apercebendo que, por fim, só restam
cacos, dor e tristeza para governar.
Nação, por sua vez, é um conceito acolhedor, integrador,
feminino, belo, quase maternal, que agrega o seu Povo e o seu Território. É o
que dá sentido à reunião das pessoas num determinado território a que chamamos
“a nossa terrinha”, “o nosso cantinho a beira-mar plantado”, a proa desta
“jangada de pedra”. Portugal.
O Estado falhou nesta tragédia levando consigo o sentimento de
pertença de Nação que tínhamos. O Estado não protegeu a sua Nação. Não
assegurou o seu Território e com ele o seu Povo...
Fomos vítimas desta ausência insuportável de Estado. Ontem e
hoje. Mas não amanhã. Porque já chega de incêndios que ceifam vidas. Incêndios
como os de 2003, 2005 e Junho de 2017, e que contabilizam, até a data, 100
vítimas mortais em solo português, não podem voltar a acontecer. É hora de
todos dizermos “Basta!”. Este Estado que não quer ver secou uma parte
importante da sua Nação, aquela que moveu este país por séculos, o Interior.
A primeira muralha e frente de defesa do País no passado contra
as invasões estrangeiras, o celeiro do País em tempo de vacas magras, o emissor
de soldados nas guerras ultramarinas, o mercado de mão-de-obra barata em tempos
de construção europeia... Quando o Interior e os seus recursos já não eram
precisos, substituídos pela oferta de bens e serviços mais baratos, o Povo e o
Território do Interior foram abandonados À sua sorte. Emigrem! E assim o
fizeram, abandonados à sua sorte.
Não houve solidariedade em tempos de vacas gordas, não houve
estratégia para o Território quando os dinheiros dos Fundos Estruturais
Europeus chegavam a rodos. Foram anos de esquecimento, de esvaziamento
progressivo e consistente das instituições regionais e locais, depois
seguiram-se as empresas e, por fim, as pessoas. Sobreviver é preciso.Foram sucessivas décadas de descaso com o Interior, de negligência com o Território, com a Floresta e a Agricultura. Tendo como consequência a emigração das pessoas em idade ativa, restando uma população envelhecida e empobrecida a exigir cuidados redobrados do pouco Estado que restou e que nos foi esventrado e sobretudo das autarquias locais e misericórdias.
Parecia propositado... o Interior tornou-se terra de ninguém, envergonhado de o ser, abandonado e, assim, por fim, vergado.
Deveríamos dar graças por nos termos tornado a maior região
eucaliptizada da Europa... Fomos “agraciados” pela falta de oportunidade! O
Território estava a saldos e ninguém quis saber.
O Interior tornou-se um canteiro de ervas daninhas, sem
jardineiros — as suas gentes. Um barril de pólvora em que se soma a indústria
do fogo institucionalizada e um qualquer ano eleitoral. Os ingredientes ideais
para a tempestade perfeita.
A tragédia de 17 a 24 de junho de 2017 estava mais que
anunciada. Foi apenas uma questão de tempo... e o tempo não pára! E com ele
foram muitas vidas abreviadas. Cedo demais... Cedo demais!
Por ti, meu filho..."
O silêncio do fogo na voz da dor… – por Nádia Piazza, jornal Público, 23 de Julho de 2017, p. 3
J.M.M.
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