DIA: 7 de Fevereiro a 7 de Maio 2018;
LOCAL: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia – Edificio Sabatini, Planta 1 [Calle Santa Isabel, 52, Madrid;
“Toda a arte é uma forma de literatura, porque toda a arte é
dizer qualquer coisa.” Escolhida milimetricamente, a frase de Álvaro de Campos,
que está na origem do título da exposição dedicada ao universo pessoano, é
certeira na forma como define a mostra que acaba de ser inaugurada no Reina Sofía, em Madrid, o museu mais visitado de Espanha. Em bom rigor, ajuda-nos a
perceber que esta é e não é uma exposição sobre Fernando Pessoa. Partindo da
obra e das suas conceções estéticas, ela funciona, de igual modo, como um
apreciável cartão-de-visita para as vanguardas portuguesas do início do século
XX, que permanecem pouco conhecidas no país vizinho. Quem o explica é João
Fernandes, cocomissário da exposição (com a historiadora Ana Ara) e, desde
2012, subdiretor da instituição madrilena: “O que mostramos é a originalidade das
conceções modernistas de Pessoa, a relação delas com as artes visuais do seu
tempo e a singularidade das vanguardas portuguesas, que não são meras sequelas
do cubismo ou do futurismo parisienses.”
É muito provável que a possibilidade de estabelecer este
engenhoso triângulo conceptual não seja alheia ao facto de um português
participar na direção do museu, mas essa escolha deve ser vista à luz da linha programática
da instituição: “Temos estado atentos a histórias menos conhecidas da história
da arte que refletem o passado a partir de um ponto de vista que não seja
colonizado pelas relações de poder que determinaram o reconhecimento de certos
centros artísticos”, refere João Fernandes.
À semelhança do que aconteceu com a apresentação de Amadeo em
Paris, em 2016, com origem na Fundação Gulbenkian, que também coproduz esta exposição,
esta é uma oportunidade de ouro para a divulgação da arte portuguesa da
primeira metade do século XX, cuja relativa invisibilidade em Espanha não é
alheia à própria centralidade daquele país (com Picasso, Dalí, Miró e outros)
no cânone modernista.
A operação é ambiciosa e multifacetada, aproximando-se do
universo pessoano a partir de um acervo que inclui cinema, livros, manifestos, revistas
e correspondência pessoal e de um conjunto de 160 obras em desenho, pintura e
fotografia, bem representativas da arte mais avançada que se fez em Portugal
entre 1914 e 1936 e onde pontificam, entre vários outros, trabalhos de Amadeo
de Souza-Cardoso, Almada Negreiros, Eduardo Viana, Mário Eloy ou do casal
Robert e Sonia Delaunay.
Os detalhes biográficos incluem aspetos idiossincráticos, como a
relação de Pessoa com a cidade de Lisboa ou a astrologia, mas a exposição foca-se
decisivamente nas propostas estéticas do português, nomeadamente, os conceitos
e movimentos que instigou, em nome próprio ou através dos seus múltiplos
heterónimos, como o Paulismo, o Intercecionismo ou o Sensacionismo. O interessante
é que a montagem vai estabelecendo nexos entre essas construções dirigidas à
literatura e as artes visuais, através de obras que vieram, por exemplo, do
Museu do Chiado ou da Fundação Cupertino de Miranda e de museus estrangeiros
como o Centro Georges Pompidou ou o Thyssen-Bornemisza.
O primeiro desses ‘ismos’, o Paulismo, que, segundo [João] Fernandes, corresponde
a “uma das suas grandes intuições, a de que o simbolismo oitocentista é uma das
origens da vanguarda”, reflete o seu interesse pela poesia de Camilo Pessanha
ou a cumplicidade com Teixeira de Pascoaes, que o leva a escrever na “Águia”, o
órgão oficial do Saudosismo. A formulação de Pessoa apela à convivência de
imagens paradoxais e decadentistas e é aqui apresentada na companhia do
tríptico “A Vida”, do simbolista António Carneiro, dos desenhos místicos de Pascoaes,
das explorações próximas de uma estética déco de Amadeo e de “Orfeu nos
Infernos” (1917), uma das duas únicas pinturas de Santa-Rita Pintor que
sobreviveram. O núcleo central da exposição dedica-se ao Intercecionismo (que
Pessoa considerava mais uma metodologia criativa do que uma estética), que tem
pontos de contacto com o cubismo mas corresponde a uma aceção menos rígida dos
mesmos fundamentos, e ao Sensacionismo, “o mais amplo conceito das suas
vanguardas, que supõe sentir tudo de todas as maneiras e que se manifesta na
heteronímia e sua diversidade”.
A exposição faz acompanhar estes desenvolvimentos com algumas
das pinturas de Amadeo que, partindo do cubismo, mais se aproximam da abstração
ou do icónico “K4 Quadrado Azul” (1916), de Eduardo Viana. Em algumas das obras
é ainda clara uma das especificidades portuguesas: a convergência das práticas
mais especulativas com uma atenção sistemática às formas populares e ao
artesanato. Não por acaso, essa terá sido uma das fontes de sintonia com os
Delaunay, que haviam chegado, com o orfismo, a uma alternativa ao cubismo picassiano
e de quem se mostram pinturas alimentadas pelo plasticismo extrovertido da
cultura popular minhota assimilado durante a sua estadia.
Paralelamente, incluem-se as revistas — como a “Águia”, a
“Orpheu”, a “Portugal Futurista” ou a “Athena” — de importância decisiva,
porque é nelas que “artistas e escritores coincidem”. Outro núcleo importante e
normalmente pouco visível reflete a relação do modernismo português com as
artes cénicas e performativas e que aqui inclui os desenhos de Almada para o
ballet “A Princesa dos Sapatos de Ferro”, o seu painel “Jazz” para o Cine San
Carlos, em Madrid, e várias notícias sobre os ballets russos em Portugal, bem
como folhetos e cartazes de divulgação impregnados por uma estética modernista.
A secção final da exposição sinaliza o segundo e menos radical modernismo
português com obras em acorde expressionista ou lírico de Mário Eloy, Sarah
Afonso ou Júlio e a centralidade cultural da revista “Presença”, que foi
decisiva na receção de Pessoa para lá do seu círculo geracional. Como lembra
João Fernandes, “os intelectuais da ‘Presença’ não só o publicam na revista
como, no caso de João Gaspar Simões, vão fazer a edição da obra do Pessoa nas edições
Ática”. A revista é ainda o pretexto para estabelecer outro nexo, desta vez com
o cinema de Manoel de Oliveira, de quem se inclui o filme “Douro, Faina
Fluvial”, de 1931, que traz a estética vanguardista ao cinema português.
A exposição desenvolve-se, aliás, entre dois momentos
cinematográficos. No início mostram-se imagens de “Conversa Acabada”, um filme
em torno de Pessoa e Mário de Sá-Carneiro realizado por João Botelho em 1981;
e, no fim, “Conserva Acabada”, uma curta-metragem de João César Monteiro (1990)
que ironiza a transformação de Pessoa num ícone pop.
Estes e outros momentos ilustram a fertilidade da figura de
Pessoa inscrita na obra, nas ideias, na sua teia de afinidades e na sua irradiação
iconográfica como eixo possível de uma apresentação abrangente da especificidade
modernista portuguesa.
O catálogo que se edita com a exposição conta com textos de
Marta Soares, Fernando Cabral Martins e António Saéz Delgado e vários do próprio
Fernando Pessoa sobre as questões que são exploradas na exposição, oferecendo
um olhar múltiplo que ajuda a explicar a sua atual universalidade. “Pela
valorização da contradição e do paradoxo, e pela heteronímia, Pessoa é um
intérprete fundamental da cisão do sujeito e da crise do autor moderno”,
salienta João Fernandes. Por estas e outras razões, ele e a sua corte de heterónimos
são bem conhecidos dos espanhóis, mas esta é uma oportunidade única de o
descobrirem entre os seus companheiros de aventuras modernistas.
Pessoa e Companhia – por Celso
Martins, revista E,
Expresso, 10 de Fevereiro de 2018, pp. 63/65 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
1 comentário:
Obrigada por este excelente blogue, que continue em 2024 e por muitos anos.
Uma gralha: "Intersecionismo" (de intersecção, interseccionismo) em vez de "Intercecionismo" (de intercepção, interceptar).
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