“Polémicas à portuguesa” – por
Diogo Ramada Curto, in Caderno E, Expresso
Jorge
Borges de Macedo é o pioneiro da história tradicionalista de Portugal. Aquela
que vê a pátria como excecional e encara o liberalismo e a República como
desvios ou anormalidades
“O historiador Jorge Borges de Macedo (1921-1996) foi pioneiro
no estabelecimento da atual agenda de uma historiografia tradicionalista. Autor
de uma extensa obra, começou por afirmar os seus créditos através de um
conjunto de trabalhos sobre o marquês de Pombal, a economia portuguesa do
século XVIII e as relações de dependência de Portugal em relação à Inglaterra
durante as Invasões Francesas. Entretanto, mudou de orientação ideológica. A
proximidade ao marxismo de início da sua carreira deu lugar — depois de entrar
na Faculdade de Letras — a uma série de perspetivas tradicionalistas, centradas
numa história política e cultural. Porém, foi só depois do seu saneamento
político da Faculdade de Letras de Lisboa, após o 25 de Abril, que passou a
assumir o papel de principal guardião de uma história pátria, excecional e
tradicionalista. É urgente reunir em volume os seus estudos sobre os séculos
XIX e XX, que andam dispersos, para perceber melhor o modo como marcaram a
escrita da história contemporânea.
Para já, será possível adiantar que, pelo menos num ponto, a sua
influência perdurou até aos nossos dias: o liberalismo e a República foram um
desvio, uma anormalidade em relação ao destino de uma pátria excecional, com
oito séculos de existência. Vale a pena perceber como este aspeto acabado de
referir se conjuga com uma interpretação muito própria daquilo que Borges de
Macedo considerava ser uma característica marcante da cultura portuguesa: as
polémicas entre intelectuais, em que os séculos XIX e XX foram férteis. Porém,
constatar a centralidade das polémicas é uma observação relativamente consensual.
O que é questionável são as razões aduzidas por Borges de Macedo para explicar
por que motivo essas mesmas polémicas foram um elemento central da cultura
portuguesa.
Primeiro, as polémicas do século XIX não deviam ser só
relacionadas com as suas herdeiras do século XX. Enquanto “um dos temas básicos
da cultura portuguesa”, elas encontravam a sua principal razão de ser numa
linha de continuidade que remontava, pelo menos, à guerra da independência
nacional (1640-1668). Foi no âmbito desta argumentação que sustentou: “As
transformações políticas do liberalismo interromperam a perceção do processo
essencial da sua continuidade” (“Revista de História das Ideias”, vol. 5, 1983,
pp. 471-531, máxime pp. 472-473).
Em segundo lugar, sempre na opinião de Borges de Macedo, a
propaganda republicana, que começou a surgir com o máximo de intensidade a
partir de 1890, apenas discutiu o governo, sem querer discutir o país. Porém,
com a proclamação da República não veio, nem poderia vir a regeneração do país.
Pelo contrário, a República ficou-se por uma espécie de politiquice, uma vez
que da herança do liberalismo apenas resultou que “muitos aspetos da vida
política pareciam agravar-se em instabilidade e choque de renovadas ambições”
(idem, p. 474). A ponto de se poder dizer que só quando à República sucedeu o
Estado Novo foi possível retomar os referidos temas básicos da cultura
portuguesa, incluindo neles a denominada “problemática polémica”.
Recapitulando, para Borges de Macedo existiam elementos que se
mantiveram constantes na cultura portuguesa. Um deles era constituído pelos
conflitos de opinião, mais especificamente pelas polémicas. As polémicas do
século XIX limitaram-se a retomar temas de debates tradicionais, numa linha de
continuidade com o que se teria passado anteriormente.
Quanto às ideias republicanas e ao que, através delas, se
desencadeou: elas não passaram de propaganda política. Uma imagem que esconde,
no fundo, um enorme desprezo pela vida política... Foi preciso esperar pelo
Estado Novo para acabar com os desvios trazidos por uma política da
instabilidade e retomar um dos temas básicos da cultura portuguesa: o das
polémicas.
Justificar o autoritarismo
Vale a pena refletir sobre a argumentação de Borges de Macedo —
tão inteligente, quanto perversa e inspiradora, até aos nossos dias — nos seus
propósitos de justificar diferentes tipos de autoritarismo. Quer este último
surgisse associado aos tempos de um absolutismo anterior ao liberalismo, grosso
modo anterior a 1820; quer fosse o próprio autoritarismo de Salazar, com o qual
em 1926 se pôs termo à I República. Em qualquer dos casos, as polémicas do
liberalismo e da República não podiam ser consideradas como um modo de fazer
valer ideias progressistas e modernizadoras.
Como interpretar esta agenda conservadora para a história de
Portugal? Representará ela, tão-só, um modo de retomar a raiva dos
integralistas, nomeadamente de António Sardinha, contra o liberalismo e a
República? Como é que a mesma agenda, na versão de Borges de Macedo,
estabelecida entre a década de 1960 e a de 1980, acabou por se difundir e se
naturalizar, chegando até aos nossos dias? Não terá essa mesma agenda
historiográfica conservadora acabado por obter o respeito de muitos
historiadores ditos de esquerda, também eles interessados em usar o passado
incutindo-lhe valores progressistas, mas considerando que todos os pontos de
vista são válidos, uma vez que a história é apenas uma arte que deve ser
praticada bem longe das ciências sociais, logo, dos instrumentos de prova que
esta última requer?
Polémicas às dúzias
Responder a todas as questões acabadas de enunciar obriga a
clarificar o nosso ponto de vista e, sobretudo, implica um estudo do sentido e
dos contextos mais pertinentes das grandes polémicas, pelo menos as que
ocorreram na segunda metade do século XIX. Trata-se de um trabalho em relação
ao qual há que contar com vários contributos, como os que se encontram na
compilação clássica organizada por Artur Anselmo e prefaciada por Vitorino
Nemésio, com desenho gráfico de Sebastião Rodrigues (“As Grandes Polémicas
Portuguesas”, 2 vols., Verbo, 1964-1967); nas “Polémicas de Camilo”, na edição
de Alexandre Cabral (Portugália, 1964-1967); no livro de Ana Isabel Buescu, “O
Milagre de Ourique e a História de Portugal de Alexandre Herculano” (Instituto
Nacional de Investigação Científica, 1987); e, ainda, no importante trabalho de
Ana Maria Pina, “A Quimera do Ouro: os Intelectuais Portugueses e o
Liberalismo” (Celta, 2003). Esclareça-se, também, que investigações sobre
polémicas poderão concentrar-se nalguns nomes ou em momentos de particular
intensidade. Por exemplo, está por fazer um inventário das polémicas em que se
envolveram Joaquim de Araújo, Adolfo Coelho, Inocêncio Francisco da Silva e
tantos outros.
Batalha Reis e as polémicas do seu tempo
Identificar a linguagem violenta e os ataques pessoais de muitas
polémicas, em que Camilo Castelo Branco foi useiro e vezeiro, não deverá fazer
com que o sentido mais profundo das mesmas possa ser descartado. Conforme
desabafou Jaime Batalha Reis, a 12 de setembro de 1873: “Em Portugal, as
polémicas, longe de versarem ideias, não passavam de ofensas pessoais”
(“Correspondência entre Antero de Quental e Jaime Batalha Reis”, ed. Maria
Staak, Assírio e Alvim, 1982, p. 154). As pessoas é que contavam; as ideias
eram secundárias. Logo, seria impossível dizer que existissem sequer condições
para um debate de ideias em Portugal. Esta característica afigurava-se-lhe uma
das maiores debilidades da cultura portuguesa, mas não a única. Mais importante
era, sem dúvida, a falta de instrução que afetava os mais diversos estratos
sociais. Projetos e estudos, relacionados com a modernização do país, nos quais
Batalha Reis se envolveu de modo sistemático durante a sua longa vida, foram o
principal modo de contrariar a situação por ele mesmo denunciada. O objetivo
consistiu, pois, em abrir caminho para que as ideias — circundadas dos seus
inevitáveis debates e sem evitar polémicas — frutificassem.
Mas qual era a experiência que o autor tinha de tais polémicas?
Quais as controvérsias, a que assistiu ou em que se envolveu, que o levaram a
fazer uma tal generalização e a formular um juízo tão severo — e porventura
injusto — acerca da sua superficialidade? Será mesmo verdade que as polémicas
incidiam, sobretudo, sobre pessoas — ligadas ou separadas por grupos distintos
— e não sobre ideias?
À luz da historiografia existente, há pelo menos duas grandes
polémicas a ter em conta. A primeira opôs António Feliciano de Castilho a
Antero do Quental e Teófilo Braga, num conflito claro de gerações, que se
desenrolou ao longo de 1865 e 1866. Conhecida pela polémica em torno do Bom
Senso e Bom Gosto ou Questão Coimbrã. Os seus principais estudiosos foram
Alexandre da Conceição, Fran Paxeco, Rui de Abreu Torres, Manuel Antunes, Bernard
Martocq, Amadeu de Carvalho Homem e Alberto Ferreira em conjunto com Maria José
Marinho. Meritório foi o trabalho desenvolvido pelos últimos, que compilaram,
anotaram e estudaram os principais textos que compuseram a referida polémica (4
vol., Portugália, 1966-1970; 2ª ed., Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1985-1989).
Do Brasil, José Feliciano de Castilho — irmão de António que,
com a sua autoridade, parecia dominar os modos de consagração do meio literário
— atirou uma das últimas pedradas, para ridicularizar as “nebulosidades
filosóficas” de Teófilo Braga e Antero de Quental, respetivamente, na “Visão
dos Tempos” (1864) e nas “Odes Modernas” (1865). Com uma ironia mordaz,
declarou que até ficara “convencido e convertido”. O problema estava em que os
seus adversários, na ânsia de darem cabo de tudo, só falavam de coisas que não
se percebiam, tal “como se cada cidadão se exprimisse em português e tivesse a
resposta em malaio” (“A Águia no Ovo e nos Astros”, Rio de Janeiro, Pereira
Braga, 1866, pp. 5-6).
A segunda dessas polémicas ocupou o primeiro semestre de 1871.
Foi composta pelas célebres Conferências do Casino Lisbonense, que acabaram por
suscitar uma série de reações e ser proibidas em julho pelo marquês de Ávila e
Bolama. Das conferências que tiveram lugar, as mais conhecidas foram a de
Antero de Quental sobre as causas da decadência dos povos peninsulares nos
últimos três séculos, a de Eça de Queiroz sobre literatura e a de Adolfo Coelho
sobre educação. Ao contrário do que sucedeu com a Questão Coimbrã, de que Jaime
Batalha Reis terá ouvido falar, mas na qual não se envolveu diretamente, a sua
conferência sobre o socialismo chegou a estar anunciada, mas nunca foi
proferida. Entre os principais estudiosos das Conferências e da Geração de 70,
figuram António Salgado Júnior, Manuel Mendes, António Quadros, Flausino
Torres, José Augusto França, Álvaro Manuel Machado, Fernando Catroga, João
Medina e Carlos Reis.
Que não haja dúvidas: há nessas polémicas ofensas pessoais e
tricas sobre assuntos que podem ser considerados menores ou mais relacionados
com aspetos conotados com a adoção deste ou daquele género literário. Porém, os
primeiros a repudiar tais aspetos foram os que se envolveram nessas mesmas
lutas. Ao contrário do que argumentou Jorge Borges de Macedo, o mais
interessante nessas polémicas do liberalismo oitocentista não pode ser reduzido
ao facto de elas estarem em linha com uma qualquer tradição, tomada como uma
constante da cultura portuguesa com raízes nos séculos anteriores. O mais
relevante dessas polémicas — parece a muitos dos seus estudiosos — consistiu em
terem-se constituído em palco de uma luta pela emancipação de ideias, de homens
livres, tendo em vista encontrar as vias para criar uma sociedade mais justa.
Elas permitiram uma forma de expressão, logo, de luta em nome do progresso, da
liberdade e da justiça social.
Talvez por isso mesmo, Eça de Queiroz deixou na célebre carta a
Carlos Mayer, reunida nas “Prosas Bárbaras”, obra póstuma, prefaciada por
Batalha Reis, um testemunho das lutas em que a sua geração se envolvera. E,
numa recusa do classicismo, dos sentimentos monárquicos correspondentes e das
ideias literárias associadas a António de Castilho, sintetizou: “Nós, meu
amigo, somos uma geração desiludida por três revoluções, amolecida por uma
invenção horrível — a música, tomada de dúvida religiosa, geração que vê
esvaecer-se Cristo, a quem tanto tempo amou, e não vê chegar a liberdade, por
quem há bastante tempo espera.” E, mais adiante, voltou a sublinhar: “Queremos
ver o homem — não o homem dominado pela sociedade, entorpecido pelos costumes,
deformado pelas instituições, transformado pela cidade, mas o homem livre,
colocado na livre natureza, entre as livres paixões. A arte é simplesmente a
representação dos carateres tais quais eles seriam, abandonados à sua vontade
inteligente e livre, sem as peias sociais” (Obras, vol. I, Lello, 1958, p.
621).
Polémicas à portuguesa – por Diogo
Ramada Curto, revista
E, Expresso, 3 de Fevereiro de 2018, pp. 71/72 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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