sábado, 3 de fevereiro de 2018

ANTERO DE QUENTAL - ENTRE EROS E THANATOS


LIVROPoesia II – Sonetos Completos, de Antero de Quental; edição crítica de Luiz Fagundes Duarte, Abysmos, 2018, 441 pags.

Entre Eros e Thanatos” – por António Valdemar, in Caderno E, Expresso
“A criação poética de Antero de Quental teve o maior impacto na sua geração e continuou a motivar, no século XIX e no século XX, as gerações seguintes. Marcada por Cesário Verde e Camilo Pessanha, a geração do “Orpheu” também não ficou indiferente à poesia de Antero, em especial aos “Sonetos”. Está provado que Fernando Pessoa recebeu forte influência de Antero. Manuscritos existentes na Biblioteca Nacional revelam que Pessoa “não seria o que é se não tivesse havido, antes, um Antero, sobretudo, no espírito de muitas odes e de muitos dos ‘Sonetos’”.

Revelam, ainda, que Pessoa deixou traduções para inglês de muitos sonetos e projetou uma edição das Poesias de Antero, constituída por seis pequenos volumes, uma edição encadernada, de 370 páginas, do tipo da de Coleridge, por W & Foyle e da qual existe um exemplar, com a sua assinatura na sua biblioteca pessoal, na Casa Fernando Pessoa.

A propósito da geração do Orpheu, refira-se, também, o retrato quase desconhecido de Antero – que a Revista do Expresso divulgou – da autoria de Almada Negreiros e que fez parte da exposição retrospetiva apresentada, em 2017, na Fundação Gulbenkian.
Estas e outras questões encontram-se pormenorizadas no volume “Poesia II, Sonetos Completos”, que acaba de ser publicada na série Obras Clássicas da Literatura Portuguesa Século XIX, projeto em curso da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, e, no caso concreto, na sequência de “Poesia I”, que reuniu as “Odes Modernas e Primaveras Românticas”. Em ambos os volumes, a edição crítica é da responsabilidade do filólogo Luiz Fagundes Duarte, professor da Universidade Nova de Lisboa, que tem feito outras edições críticas e estudado os manuscritos autógrafos de escritores como Eça de Queirós, Fernando Pessoa, José Régio ou Vitorino Nemésio. Antero de Quental (1842-1891), além de uma recolha de sonetos de juventude — Coimbra, 1861 —, a chamada edição Sténio [pseudónimo literário do seu colega, amigo e também açoriano Alberto Teles (1840 1917)], publicou, no Porto, em 1881, outra edição de “Sonetos”, numa altura em que já atingira o maior prestígio intelectual, e, cinco anos mais tarde, em 1886, os “Sonetos Completos”, acompanhados por um estudo introdutório de Oliveira Martins, que inclui, com a anuência de Antero, cinco outras poesias a que chamou “lúgubres”: ‘Os Cativos’, ‘Os Vencidos’, ‘Entre Sombras’, ‘Hino da Manhã’ e ‘A Fada Negra’.
Em 1886, Antero acrescentou sonetos inéditos e dispersos estruturados em cinco ciclos correspondentes à sua evolução intelectual e filosófica, às intervenções cívicas, aos combates políticos e às efusões sentimentais e que ficaram assim distribuídos: 1860-1862, vinte; 1862-1866, vinte e oito; 1864-1874, dezassete; 1874-1880, vinte e três; e 1880-1884, vinte e um. Desta compilação surgiu uma segunda edição (1890), ainda em vida do autor, sem alterações nos textos dos sonetos, mas incluindo 46 traduções de 32 sonetos para alemão (por Wilhelm Storck), espanhol (Curros Enríquez e Baldomero Escobar), italiano (Giuseppe Cellini, Marco Antonio Canini, Emilio Teza e Tommaso Cannizzaro) e francês (Fernando Leal).
O conjunto de 109 sonetos de Antero teve sucessivas reedições, muitas das quais repetindo gralhas e outras incorreções que afetaram a autenticidade do texto. Entretanto, António Sérgio organizou, no âmbito do centenário do nascimento de Antero, celebrado em 1942, uma edição anotada, mais tarde inserida nos Clássicos Sá da Costa, e que não só manteve lapsos tipográficos como também alterou por completo a sistematização preconizada por Antero e Oliveira Martins.
 
 
A atual edição crítica realizada por Luiz Fagundes Duarte — com rigor textual levado ao extremo e com exaustiva erudição biográfica e bibliográfica —, apresenta as sucessivas variantes introduzidas pelo poeta, a partir dos manuscritos autógrafos, quando disponíveis, ou da última edição em vida. Numa secção de ‘Addenda’, Luiz Fagundes Duarte apontou três sonetos apócrifos, um dos quais a propósito de Camões, no centenário de 1880, ao qual Antero não se associou e assumiu atitude crítica: o soneto ‘Ananké’, que se provou não ser de Antero, mas sim de Joaquim de Araújo, pelo que desaparece do corpus anteriano. Mais ainda: dois sonetos atribuídos a Antero que circulavam, desde 1916, nos meios espíritas como tendo sido ditados por Antero através de um médium. Todavia, um dos outros méritos e revelações que se deparam nesta edição consistiu no trabalho meticuloso de verificação de largas centenas de manuscritos, em arquivos nacionais e estrangeiros, e de consulta em coleções de jornais e revistas, para recuperar todos os dispersos de Antero, até agora conhecidos. Perfazem 176 sonetos (traduções incluídas) relativos a diferentes períodos e que se encontram integrados na já referida arrumação por etapas cronológicas

Esta investigação, porém, não está concluída. Previsto para breve, e também a cargo de Luiz Fagundes Duarte, está o aparecimento do último tomo, “Poesia III – Poemas Dispersos, Alterados e Destruídos”, que virá substituir o volume póstumo “Raios de Extinta Luz”, preparado por Teófilo Braga (1892) e, posteriormente, acrescentado (1948) por António Salgado Júnior e José Bruno Carreiro. Nele se misturam sonetos e não sonetos, publicados uns em vida de Antero e outros póstumos. O critério e exigência agora adotados irão, certamente, corrigir e esclarecer lacunas e incorreções que perduram desde a edição “a vários títulos espúria” de Teófilo Braga.
Os “Sonetos” de Antero chegaram, através da tradução alemã de Wilhelm Storck, ao conhecimento de Tolstoi que registou a profunda emoção e apreço que lhe causaram. Antes da obra ortónima e heterónima de Fernando Pessoa, Antero de Quental foi um dos poetas portugueses de maior projeção e reconhecimento universal. Oliveira Martins afirmou que os “Sonetos” de Antero “não são os quaisquer episódios particulares de uma vida de homem; são a refração das agonias morais do nosso tempo, vividas, porém, na imaginação de um poeta”.
Embora tenha escrito nas mais diversas modalidades estróficas, Antero optou quase sempre pelo soneto que imortalizara “Dante, Miguel Ângelo, Shakespeare e Camões” para exprimir, conforme salientou, “a forma completa do lirismo puro”. Foi, portanto, na concisão lapidar do soneto, que Antero manifestou as crises de angústia metafísica, as lutas políticas, as efusões sentimentais e o exacerbado pessimismo, o testemunho do sofrimento físico resultante de sucessivas doenças que lhe tornaram a vida insuportável e aceleraram o trágico encontro com a morte.
Os “Sonetos” de Antero colocam-nos perante o grito que arde, o verbo que anuncia e o murmúrio que soluça, a presença dominadora de Eros e Thanatos, matriz de um imaginário que oscila entre a labareda do amor e o espetro da morte. E, muitas vezes, a fatalidade e o orgulho de ser açoriano. No auge da mais ruidosa das polémicas em que esteve envolvido, não hesitou em considerar os portugueses de outras regiões do país os meus “quase patrícios”. Era a reivindicação das suas origens que, além das circunstâncias familiares, denunciaram na sua poesia, em especial nos “Sonetos”, os fatores geográficos que singularizam o arquipélago.

O mar é, assim, um dos lugares onde podemos, na sua ilha ou em qualquer outra parte do mundo, estar perto de Antero, de olhar horizontes que o quotidiano oculta e de ouvir, na voz do vento, o legado sempre vivo da sua inquietação”

SONETO

Este é o livro das vinganças nobres,
O inferno dos que têm o céu na terra:
Nem vingança; justiça
- Oh vós que as lagrimas
Trazeis sempre nos olhos, sem se querem,

Lázaros no banquete da existência,
Oh filhos do dever! Lede este livro,
Porque através de um mundo de misérias
Do largo peregrinar chegando ao termo,

Heis- de ouvir, lá das bandas do futuro,
A grande voz do Cristo, a voz eterna,
Erguer – se sobre os filhos da verdade:

«- Felizes dos que sofrem – terão prémio:
Feliz do pobre e triste, órfão de afetos,
Será rico: no céu seu pai o espera!»

[Nota] Coimbra, Dezembro de 1861 e incluído com o número 129, pag. 191 da atual edição, com o titulo “Na Primeira Pagina do Inferno do Dante”. Pela primeira vez – e nesta edição critica – passa a integrar os Sonetos Completos de Antero.
Eros e Thanatos – por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], revista E, Expresso, 3 de Fevereiro de 2018, pp. 72/73 – texto agora acrescentado pelo autor e com sublinhados nossos.
António Valdemar
J.M.M.

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