“Celebrar António Sardinha, ou
a Antítese do Lugar onde quero ir” – por Paulo Mendes Pinto, in Público,
15-03-2018
Tenho direito a não me identificar e a pedir que não me obriguem
a ler este nome na placa identificativa de uma artéria lisboeta.
“Cada época tem a sua visão, as suas narrativas sobre os
acontecimentos, sobre o fluir e sobre as personagens. Cada ideologia distribui
prémios e afasta incómodos. Reescrevemos o passado de acordo com as vontades do
presente. Mas estas alterações ao sabor dos ventos dominantes são
interessantes. Mostram um certo pulsar social e político. Dão-nos uma visão de
como a heroicidade pode, por um decreto, ser transformada em crime de
lesa-pátria.
E, por vezes, há crimes que não são de lesa-pátria, mas sim de
lesa-humanidade. Há avanços que civilizacionalmente fazemos e que não queremos
abandonar, nem dar, sequer, possibilidade de mostrar que estamos bem como
estamos. Não, no que respeita ao respeito pelo outro, no que respeita ao
Humano, não podemos pensar que o adquirido é, de facto, adquirido.
Neste que é ano em que comemoramos os 70 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, não nos podemos contentar com distrações, com
ausências e com silêncios. Há que consolidar estes princípios de valorização do
ser humano, da sua diversidade, do direito que cada um de nós tem em ter as
suas ideias, as suas pertenças, as suas identidades.
Há poucas horas descobri que em Lisboa há um topónimo que
recorda António Sardinha, integrista, antiliberal, antimaçónico, anti-tudo-o-que-de-liberdades-defendemos.
Por fim, foi talvez o maior mentor, a base, do antissemitismo em Portugal. Foi
dado no início do Estado Novo; mas ainda existe.
Os primeiros laivos verdadeiramente antissemitas em Portugal, na
mais correta aceção da palavra, encontramo-los próximos de um quadro ideológico
e nacionalista muito específico, nos grupos que se vão organizando na década de
10 do séc. XX contra a implantação da República, grupos monárquicos,
antiliberais e antimaçónicos. Talvez o primeiro autor panfletário antissemita
tenha sido Mariotte, i.e., o P.e Amadeu de Vasconcelos, que em 1913
escreveu Os Meus Cadernos, onde vituperava contra a “raça maldita”, os
judeus.
Mas o ano de 1914 seria um ano bastante importante na formulação
do antissemitismo português. Hipólito Raposo publicava a Nação Portuguesa e
António Sardinha, que nos traz aqui, em edição de autor, publicava O
Sentido Nacional de Uma Existência/António Thomaz Pires e o Integrismo Lusitano.
Sardinha vocifera contra toda a mistura de gentes que os Descobrimentos
implicaram, dando especial destaque à “porca infeção hebraica, de que não
escapámos incólumes” (p. 41). Sardinha, o “paladino do antissemitismo
lusitano”, nas acertadas palavras de Jorge Martins, defende o monarca D. João
III na sua luta pela instalação da Inquisição em Portugal e demonstra a
necessidade e vantagens desse tribunal religioso perante as “influências do
morbo judengo”.
Sardinha seria um autor com uma produção continuada no campo do
ódio contra os judeus. No ano seguinte, em 1915, daria ao prelo a obra O
Valor da Raça. Nesta obra, que se destinava a concurso para professor da
Faculdade de Letras de Lisboa, Sardinha revelava uma total ignorância da
história judaica, assim como da própria Pré-História humana, que aqui usava para
definir uma “raça lusa”. Misturando referências à Atlântida, Sardinha defendia
uma homogeneidade étnica e territorial com base na mais distante antiguidade.
No ano seguinte, reforçaria esta tese com o texto “O território e a raça”
incluído na obra A Questão Ibérica, no qual argumentava ainda mais
veementemente a origem atlante da raça lusitana. Mais tarde, no Glossário
dos Tempos, editado em 1942, Sardinha diria que a raça lusa era a última
barreira ao “alastramento semita” (p. 162).
No seu ideário, Sardinha associava os judeus à maçonaria. Em
1940, no livro Ao Princípio Era o Verbo, acusa o Marquês de Pombal de ser
a origem de toda uma linha de degenerescência e de assalto à natureza cristã da
identidade, bem como o liberalismo de ser uma “forma espiritual do semitismo” e
o capitalismo uma “inegável extração talmúdica” (p. XXII-XXIV).
Citamos o fim de um seu soneto, “Madre Inquisição”, retirado da
obra editada em 1937, Pequena Casa Lusitana, na medida em que mostra da
melhor forma o pensamento radical de Sardinha, defendendo e desejando a
Inquisição:
Ó santa Inquisição, acende as
chamas!
E no fulgor terrível que derramas,
Vem acudir à pátria portuguesa!
(p. 122)
E no fulgor terrível que derramas,
Vem acudir à pátria portuguesa!
(p. 122)
Palavras
para justificar esta afirmação podemos tê-las na leitura dos tempos. É a época,
sim. Mas não somos nós, hoje. E é aqui, na tensão entre o que foi e o que quero
passar para o futuro, que eu me tenho de posicionar como cidadão e como pai.
Sim, António Sardinha existiu, como muitos outros antissemitas portugueses. Mas
quero valorizar tudo o que ele abominava: o judeu, o muçulmano, o protestante,
o ateu, o maçon, o liberal, o republicano. O meu mundo é cosmopolita e é esta
diversidade que eu quero passar como legado ao futuro.
Hoje
eu não me identifico com movimentos como o que Sardinha defendia e alimentou.
Hoje, a sociedade em que eu vivo e que pretendo deixar para os vindouros é de
Igualdade, de Fraternidade e de Diálogo. Sobretudo, é de Respeito. Tenho
direito a não me identificar e a pedir que não me obriguem a ler este nome na
placa identificativa de uma artéria lisboeta, cidade que desde o século XV foi
de “muitas e desvairadas gentes”, como afirmava Damião de Góis, outro
perseguido pela Inquisição que Sardinha desejava.
Lisboa
representa exactamente o oposto de António Sardinha”
Celebrar António Sardinha, ou a Antítese do Lugar onde quero ir
– por Paulo Mendes Pinto, jornal
Público, 15 de Março de 2018, pp. 54/55 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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