Partiu de entre todos nós, FERNANDO
FERNANDES, livreiro da mítica livraria portuense “Leitura” (com uma entrada na
rua de Ceuta e outra pela rua José Falcão; foi fundada em Setembro de 1968 por
Fernando Fernandes e José Carvalho Branco, silenciando-se só em 1999), um
espaço de encontro, esperança e luta contra a ditadura, um local de culto que
uma geração conheceu e venerou. Anos antes (1958) já Fernando Fernandes, o
guardião dos livros, tinha decidido entrar no mundo dos livros, criando a
livraria “Divulgação”.
Fernando Fernandes nasceu em Águeda
e vem residir [em 1941; cf. Pedro Pereira Leite, Pela estrada larga: O Livreiro Fernando Fernandes e as memórias duma geração – texto que seguimos de perto e
para qual remetemos a sua gostosa leitura] para a cidade do Porto, que muito
amou. Órfão muito cedo, acedeu ao convite para dirigir a sessão de livros da
papelaria Aviz. Tinha 18 anos e um especial assombro e entusiasmo pelo papel
impresso. Estava traçado o seu destino nessa nobre “arte de vender livros”, da
qual muitos dos livreiros herdaram muito do que sabem. O “poeta dos livros” marcou,
seguramente, toda uma geração de livreiros. Fernando Fernandes não era, porém, um simples e erudito livreiro, era um cidadão íntegro e de corpo inteiro, que vivia intensamente o seu tempo, por isso não espanta que tenha (em 1953) integrado o MUD Juvenil [idem, ibidem], combatendo com determinação a ditadura. Foi aí, porventura, pelas tertúlias culturais organizadas pela oposição, e onde participa, que lhe nasce esse gosto e entrega pelo serviço público cultural, ornamento do seu negócio do livro.
Foi preso (1955), internado no hospital
psiquiátrico [Conde Ferreira; idem ibidem] e julgado no célebre processo [o seu
advogado era Alexandre Babo] que levou à prisão 52 democratas do Porto, na violenta
repressão salazarista que se abateu contra os estudantes universitários do
Porto, e que culminou na proibição legal (1957) do MUD Juvenil. Sai em
liberdade e regressa à sua secção de livros da papelaria Aviz.
Em 1958, na sequência da sua colaboração
com o movimento cívico “Convívio” [que editava os cadernos Convívio, como
depois publicava livros; tinha os bons auspícios de Afonso Cautela], vendendo
no seu estabelecimento as suas edições, foi-lhe feito a proposta de criar uma livraria,
convidando Fernando Fernandes para a sua direção. Fernando Fernandes depois de
muita hesitação [“foi a decisão mais difícil da minha vida” – ibidem] deixou o
trabalho na papelaria Aviz (com alguma tristeza, pela sua grande amizade com o proprietário,
Manuel Camanho) e funda em Junho a livraria “Divulgação”, “na esquina da rua de
Ceuta nº 88, com a rua José Falcão. Como novidade, a nova livraria organizava-se
com secções temáticas, publica um boletim bibliográfico mensal, patrocinava sessões
de autógrafos com escritores, tinha uma galeria de arte e secção de discos,
organiza exposições bibliográficas [como aquela organizada em 1963, por José
Augusto Seabra, sobre o vate Fernando Pessoa, e que ficaria célebre pelo
incidente verificado com o dr. Pedro Veiga (Petrus), e que não cumpre aqui
referir]. Tudo isso era notoriamente inovador, pelo que desde o seu início foi
um centro dinamizador cultural da cidade e um local conotado com o reviralhismo
conspirativo e a oposição à ditadura. A Divulgação abriu mesmo duas livrarias
mais, uma (1964) em Lisboa e outra em Viana do Castelo, o que de certo modo originou
problemas financeiros que se foram agravando, levando ao encerramento da livraria
em 1968 [sobre este assunto ver Pedro Pereira Leite, ibidem].
Fernando Fernandes não desiste e,
com o apoio de Jaime Castelo Branco (que se torna seu sócio) reabre a livraria
[recuperando-a da tutela da Bertrand], agora com o nome de “Livraria Leitura”.
De novo impera o mesmo espírito de amor aos livros e tributo aos seus ledores,
a mesma “referência da elite intelectual do Porto”, pelo que floresce e alarga-se
a outras zonas e regiões (caso de Aveiro). Até ao 25 de Abril de 1974, foi objeto contínuo
de vigilância da PIDE, mas mesmo assim lá se encontravam os inúmeros opúsculos,
textos e livros proibidos de circular pela censura, continuando a ser um local
de paragem obrigatória ao cidadão democrata e livre, uma espaço de tertúlia
cultural e de fraternidade. Em 1998 Fernando Fernandes reforma-se, “descontente
com o rumo que estava a ser seguido pelo mercado livreiro, com a emergência de
novos espaços comerciais, onde nem sempre o livro é tratado com a devida deferência”.
Em 2017, Fernando Fernandes leiloa a sua estimada biblioteca (o Catálogo com a colaboração
de Armando Alves e Albano Martins) e sua colecção de Arte.
Morre a 30 de Setembro de 2018.
[NOTA: agradecimento especial a Pedro Baptista]
J.M.M.
1 comentário:
De toda essa história, faltou dizer que a Livraria Leitura talvez se tivesse salvado, ou pelo menos tido prolongada a existência, se, no início dos anos 90, Fernandes & Branco, Lda. tivesse dado sociedade a um dos seus mais empenhados e competentes colaboradores, Ribeiro de seu nome, o principal vendedor que estava à frente da loja da rua de Ceuta. Se foram os dois sócios, ou um só deles, quem lhe negou esse merecido reconhecimento, não se sabe. Sabe-se que esse valioso capital humano (que a esquerda tanto apregoa, mas que na prática desconhece) se mudou para uma editora onde, supostamente, lhe teriam oferecido melhores condições. Um fim inglório para uma livraria que talvez se tenha expandido demasiado, aliada à reforma antecipada (aos 63 anos!...) do principal gerente, sem a garantia de continuadores capazes e interessados. O outro gerente não concordou com a venda das quotas do sócio à Assírio & Alvim, e inopinadamente exerceu o direito de preferência, vendendo-as mais tarde ao problemático e deficitário grupo Civilização, que como seria de esperar, deu com os burros na água (da casa-mãe e das que foi comprando)… De livraria aprazível onde todos cabiam, clientes e livros incluídos, a última Leitura era uma triste loja às moscas, onde o cliente era afugentado por empregados ariscos e desconfiados.
Enviar um comentário