“Da Resistência a Fernando
Pessoa” – por António Valdemar, in Caderno E, Expresso
Motivos literários, políticos e religiosos ajudam a explicar a
lenta, polémica e difícil compreensão do poeta
"Fernando Pessoa, Um Retrato Fora da Arca”, por Zetho Cunha
Gonçalves, integra mais de 400 páginas com artigos e depoimentos repartidos em quatro
núcleos temáticos: a homenagem da revista “Presença” em 1936, os próximos do
seu convívio, o presente da amizade retribuído e as vozes da intimidade comunicantes.
Pretende ser “a mais alentada recolha de textos alguma vez dada a público, não
só de Fernando Pessoa sobre os seus pares mais próximos, como também, sobretudo
daqueles com que eles mais intimamente conviveram humana e literariamente”. É
um contributo, sem dúvida, mas não se poderá considerar exaustivo.
A recuperação de textos dispersos principiou com as “Páginas de
Doutrina Estética”, coligidas por Jorge de Sena, em 1946, e insere-se, a partir
de 1942, no âmbito das obras completas editadas pela Editorial Ática, de Luís
de Montalvor. Disponibilizou elementos fundamentais para elaborar as primeiras biografias
e estudos críticos. Assinala os primórdios da divulgação ainda muito contestada
da produção ortónima e heterónima de Fernando Pessoa.
A escolha para “Um Retrato Fora da Arca” dos dois artigos de
Alfredo Guisado no semanário “O Diabo”, de 1935 e de 1936, escritos sob o
impacto da morte de Pessoa, e devido a muitos disparates nos jornais e de
lamentáveis omissões, merece, todavia, ser completada com a entrevista que
Alfredo Guisado concedeu à revista “Autores”, (número 10, de 1960) e que, embora
não assinada, é da autoria do diretor e único redator Luís de Oliveira
Guimarães.
Ainda sobre Alfredo Guisado aguarda-se, há muito, a colheita e a
seleção de centenas de artigos e crónicas acerca do grupo e da geração do
Orpheu, no jornal “República”, do qual foi um dos diretores de fins dos anos 40
a fins dos anos 60. Traçou perfis de amigos e companheiros, descreveu episódios
desconhecidos, envolveu-se em guerrilhas com Gaspar Simões e Casais Monteiro.
ERROS CRASSOS
A polémica desencadeada, em 1950, por Gaspar Simões, nos dois tomos
de “Vida e Obra de Fernando Pessoa” motivou a crítica pertinente de Augusto Ferreira
Gomes, em entrevista de que lemos, agora, alguns excertos reveladores. Todavia,
o ataque mais documentado e profundo depara-se em “Fernando Pessoa — Notas a
uma Biografia Romanceada”, por Eduardo Freitas da Costa. Pertencia à família, convivera
de perto com Pessoa, nos últimos anos. Estava habilitado para rebater opiniões,
apontar lacunas e denunciar erros, alguns deles crassos. Por ser um adversário
político confesso, João Gaspar Simões recusou-se a proceder às retificações que
se impunham em edições posteriores.
A propósito de erros crassos existem outros nas “Páginas Íntimas
e de Autointerpretação”, organizadas por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.
São, por exemplo, detetáveis na identificação de Esther Duval, que era a atriz
Esther Leão, ou acerca de Carlos Corado, como mais um possível heterónimo de
Pessoa. Tratava-se, afinal, de Carlos Celestino Corado, grande contador de
histórias de bastidores políticos e culturais, colega de Pessoa no Curso
Superior de Letras, bibliotecário do Palácio de São Bento e do “Jornal do
Comércio”. Retificou o equívoco Hernâni Cidade, num artigo publicado n’ “O
Primeiro de Janeiro”.
AS RESTRIÇÕES DA IGREJA
A igreja católica, durante décadas, formulava as maiores restrições
a Fernando Pessoa, enquanto glorificava Mário Beirão, autor do hino da Mocidade
Portuguesa e, sobretudo, António Correia de Oliveira, a proposta sempre na
manga para um candidato português ao Nobel da Literatura. Uma das vozes mais
influentes da igreja, o padre Moreira das Neves, consultor da nunciatura e do episcopado,
biógrafo encartado do cardeal Cerejeira, chefe de redação do jornal
“Novidades”, órgão diário do episcopado até ao 25 de Abril, depôs no inquérito
do semanário “Acção”, mas não foi selecionado para “Um Retrato Fora da Arca”.
Não seria despiciendo divulgar o que, então, disse Moreira das
Neves. Reconhecia Fernando Pessoa “um dos poetas mais densos da literatura
portuguesa” e, logo a seguir, afirmava perentoriamente: “Crivado de enigmas e
com sede de luz, debateu-se entre Deus e o poder das trevas. Daí o hermetismo de
muitos dos seus versos e o pendor profético de tantos outros. Lastimo todos os
erros que Fernando Pessoa não soube evitar.”
Afonso Lopes Vieira, um dos denominados “mestres da portugalidade”,
autor do Avé de Fátima e da Oratória de Fátima musicada, em 1932, por Ruy Coelho,
no inquérito da “Acção”, sobre Fernando Pessoa foi categórico: “Quanto à sua
vasta obra poética, pelo que conheço, encontro um exoterismo (sic) ou cabalismo
que sinto pouco e entendo mal.”
FRASEOLOGIA UNIVERSITÁRIA
Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, até ao fim dos
anos 50, fundador e diretor da revista “Colóquio”, até 1975, Hernâni Cidade,
colega de Pessoa no Curso Superior de Letras — em texto agora não recuperado do
inquérito da “Acção” — ao pronunciar-se acerca de Fernando Pessoa considerava
que a sua poesia “procura, acima de tudo intuir os frémitos desconexos, os
nevoentos emaranhamentos do mundo interior, em sua atividade subconsciente
pré-lógica”.
Esta fraseologia que sempre foi peculiar a Hernâni Cidade, seja
a escrever ou a falar sobre Camões, Vieira e outros poetas e escritores
clássicos ou contemporâneos, marcou sucessivas gerações de alunos.
A opinião que predominava na Faculdade de Letras de Lisboa, foi
alterada por Vitorino Nemésio, catedrático de Literatura Portuguesa Contemporânea.
Não sendo um pessoano militante, incitou Jacinto do Prado Coelho a não continuar
com a novela camiliana — uma das especialidades do pai, António do Prado
Coelho, discípulo de Teófilo — e a preparar a tese Diversidade e Unidade em
Fernando Pessoa, concluída em 1949.
BANDEIRA POLÍTICA
Outro depoimento do insuspeito José Osório de Oliveira que se
limitou à “Mensagem”. “Teve, esse livro — acentuou — a pior sorte que em
Portugal pode ter uma obra literária; servir de bandeira política”. Muitos “do
outro lado, passaram a admirar Fernando Pessoa só no dia em que ele escreveu
contra a extinção das ordens secretas”.
Em face de tudo isto a oposição republicana, socialista e
comunista, até aos anos 50/60, rotulava Fernando Pessoa de poeta fascista. Tanto
mais que publicara, em 1928, a “Defesa e Justificação da Ditadura Militar”.
Recorde-se que Pessoa rejeitou este folheto editado pelo Núcleo de Ação
Nacional. Com efeito, na nota biográfica, com data de 30 de março de 1935
escreveu: “Deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isto e
talvez que repudiar muito.”
A POSIÇÃO DE MÁRIO SOARES
Os preconceitos dos neorrealistas foram, por vezes, ostensivos.
Deveriam ser recolhidos e analisados. Mário Soares — companheiro e amigo dos
neorrealistas, editado na coleção do Novo Cancioneiro, casado com Maria Barroso,
intérprete dos principais poetas do neorrealismo — aproximou-se de Fernando
Pessoa “só no exílio em Paris e, fundamentalmente, depois do regresso a
Portugal” — confidenciou-me, recordando o forte impacto na sua formação literária
e cívica incutido por Álvaro Salema. “A minha visão democrática de Portugal” —
prosseguia — “foi alicerçada com a leitura de escritores, poetas e ensaístas
dos séculos XIX e XX“. E enumerava: “Herculano e Garrett, Antero e Oliveira Martins,
Eça que li e continuei a ler e a reler, até aos intelectuais da República, ao
grande escritor da República, Teixeira Gomes, e aos críticos da República, Sérgio,
Cortesão e Proença”. A referência era, portanto, a “Seara Nova” e não o
“Orpheu”.
Já Presidente da República, numa viagem a bordo do “Sagres”, em
agosto de 1986, entre Ponta Delgada, escala nas Berlengas e desembarque no
Tejo, aproveitou a oportunidade para, “em contato direto com o mar” fazer uma
leitura da “Mensagem”. Leu e gostou muito. Pessoa, para Mário Soares, passou a
constituir uma surpresa. Antes o grande poeta era Antero que Álvaro Salema “o
obrigou no 7º ano do liceu a ler e a comentar”, na edição dos sonetos prefaciada
por António Sérgio. Diversas vezes disse a Mário Soares que não era a obra
principal de Pessoa. Respondia-me que “era o único livro que Pessoa editara em
português, que teve o cuidado de rever cada poema e que fez a sistematização num
todo simbólico”. Procurei lembrar a Mário Soares a opinião do próprio Pessoa
sobre a “Mensagem” e que reencontro agora textualmente na famosa e histórica
carta a Casais Monteiro sobre os heterónimos: “Não foi feliz a estreia, que de
mim mesmo fiz com um livro da natureza de Mensagem. Sou, de facto, um
nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso — referia
Pessoa na mesma carta — e até em contradição com isso, muitas outras coisas.”
AS DECLARAÇÕES DE ÁLVARO CUNHAL
No Martinho da Arcada, num encontro organizado por Luiz Machado,
em maio de 1991, interroguei Álvaro Cunhal sobre Pessoa, a relação de Pessoa
com os fascismos europeus e a “Mensagem”. O Pessoa que Cunhal gostava era
Álvaro de Campos. Acerca da “Mensagem” — e estou a transcrever um texto gravado
— foi ainda mais categórico: “A ‘Mensagem’ é um momento contraditório na obra
de Fernando Pessoa. É uma encomenda do Secretariado da Propaganda, do futuro
SNI, uma obra para um prémio, fomentada e inspirada por António Ferro.” “É uma
obra fraquíssima, porque Pessoa quis conformar a obra poética com a mensagem
política. E o resultado foi que a obra poética fracassou completamente. A
‘Mensagem’ — insistiu — é um fracasso.” Fez questão de acrescentar logo: “Mas
em Almada Negreiros, um homem profundamente comprometido com a ditadura fascista,
eu reconheço o grande desenhador que ele foi. Isto conforma que é preciso saber
distinguir a obra de arte do artista e a sua opção política.”
Tentei demonstrar que os poemas da “Mensagem” eram das primeiras
duas décadas do século, publicadas em vários jornais e revistas, muito
anteriores à fundação do Secretariado dirigido por António Ferro. Imperturbável,
Álvaro Cunhal concluiu a rir, “Olhe que não… olhe que não…”
“MALABARISMO” FREQUENTE
Gustavo de Fraga, no mesmo inquérito, promovido pela “Acção”
entrevistou — e vem agora na íntegra em “Um Retrato Fora da Arca” — Vieira de
Almeida, antigo colega de Pessoa no Curso Superior de Letras, personalidade do
maior prestígio intelectual e cívico. Recordo-me muito bem que, ao falar de
Pessoa, Vieira de Almeida caía no absurdo de afirmar que “o seu caso não é
excecional, pois (António) Feijó também se serviu do heterónimo de Abreu e
Lima”, sem distinguir e clarificar a diferença entre pseudónimo e heterónimo.
Muito mais grave, ainda, era quando Vieira de Almeida — sem conseguir dilucidar
as diversas personas de um “drama em gente” — declarava com veemência: “Pessoa
foi, frequentemente, um malabarista. Há na sua poesia malabarismo, ironia… e
creio que muitas vezes ele próprio não sabia onde terminava isso e começava
algo diferente.”
DOIS CRIMES DO JORNALISMO
Mesmo em cima da morte e do funeral de Fernando Pessoa, Norberto
de Araújo, um dos jornalistas mais celebrados da época e ainda hoje lembrado
como “mestre de estudos olisiponenses”, na página semanal que mantinha no “Diário
de Lisboa”, enaltecia o teatro de Eduardo Schwalbach e as crónicas de Augusto
de Castro — dois diretores do “Diário de Notícias” — com os adjetivos mais retumbantes,
enquanto reduzia Fernando Pessoa a uma figura estranha e bizarra, a vaguear nas
ruas da cidade (“Diário de Lisboa”, 5- 12- 1935). Não era de esperar outra
coisa de Norberto de Araújo e de muitos outros jornalistas. Uma das raras
exceções foi António Ferro. Aliás, o próprio Fernando Pessoa, em carta a
António Ferro, identificava, na época, o jornalismo português mergulhado em
“dois grandes crimes mentais — a lentidão e a tradição”; (…) “o bolor
radicalmente póstumo dos Emídios Navarros, Marianos de Carvalho, Eduardo Coelho
e quantos mais, de igual estirpe, que pesam no passado do jornalismo presente
como calos do abismo.”
Entre os méritos de Fernando Pessoa, um retrato fora da arca,
organizado por Zetho Cunha Gonçalves, somos confrontados com testemunhos curiosos.
Não deixa de ser interessante conhecer depoimentos que revelam os insólitos
motivos literários, políticos e religiosos que determinaram a lenta, difícil e
polémica compreensão da obra de Fernando Pessoa até atingir toda a irrecusável dimensão
nacional e projeção universal.
Da Resistência a Fernando Pessoa –
por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências], revista
E, Expresso, 22 de Setembro de 2018, pp. 66/67
– com sublinhados nossos.
António Valdemar
J.M.M.
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