“Apesar de você!” – por Marcelo
Rubens Paiva, in jornal Estado de S. Paulo
Apesar de você, as cores do arco-íris continuarão as mesmas, ele
sempre estará entre o céu e a terra, continuará lindo a nos emocionar. Mulheres
continuarão a desejar mulheres, homens se beijarão e se amarão: o amor não tem
limites, o desejo não tem barreiras. A composição familiar nunca mais será a
mesma. Os jovens não deixarão de mudar padrões, quebrar regras. O amor vencerá
a bala. A Inteligência sempre vencerá a burrice.
Drummond continuará arquiteto das palavras, Niemeyer, o poeta
das formas. Ambos continuarão gauche na vida. Livros poderão ser proibidos, mas
jamais serão esquecidos, poderão estar escondidos nos labirintos das estantes, no
labirinto da nossa memória.
Apesar de você, a palavra será a melhor arma, o pensamento,
livre, as ideias brotarão, os questionamentos serão infinitos, é da nossa
essência, é nossa vocação.
Apesar de você, florescerá na primavera, a solidariedade
existirá, o altruísmo continuará vital como o ar. Apesar de você, a bondade
estará entre nós. Vamos esperar para tudo melhorar, vamos esperar para o dia
amanhecer sem ódio, sem tiros, vamos esperar a tempestade passar.
Apesar de você, Dom Quixote lutará contra moinhos de vento,
Riobaldo, contra o amor por outro jagunço, Canudos, contra as tropas da
insensatez, Zumbi, contra a escravidão. A dívida social não será paga. A
história dos negros não será reescrita nem recontada. Uma ditadura continuará a
ser assassina, e a tortura, nunca mais! Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o
que fazem.
Hoje é dia 20 de outubro. Hoje é celebrado o dia do poeta. Hoje
é dia de Manuel Bandeira. Apesar de você, podemos ir embora pra Pasárgada, onde
somos amigos do rei, termos o amor que quisermos, na cama que escolhermos e, se
aqui não somos felizes, lá a existência será uma aventura, lá faremos ginástica,
andaremos de bicicleta, montaremos em burros brabos e, cansados, nos deitaremos
na beira do rio, porque em Pasárgada tem tudo, é outra civilização, nos
sentiremos seguros, e no dia mais triste, o mais triste de todos, amaremos quem
quiser, porque lá somos amigos do rei.
Apesar de você, toda a cultura será acessível, Brecht proporá a
revolução, a angústia estará na solidão, a dor da alma não terá cura, até o dia
em que decidirmos não sofrer mais e agir. Sofreremos por causa de você,
superaremos apesar de você. Nossos ancestrais não sairão do lugar, seus
ensinamentos irão nos guiar, apesar de você. Os mortos continuarão vivos entre
nós. Continuarão a nos inspirar. Luther King continuará mito. Jesus a nos
defender. Simone de Beauvoir nos fez pensar. Gandhi é o mito da paz.
O índio guerreiro vai lutar, vai se esconder e sobreviver, vai
defender a sua mata, unir-se aos animais, defender sua família, até o último
guerreiro, e mais uma vez o mal não vencerá. Os rios terão o poder de se
regenerar, os mares, de se recompor, a fumaça vai se dissipar, as bombas vão se
calar. A floresta vai renascer das cinzas. A destruição não nos acometerá.
Cometas vão passar. O Universo continuará a se expandir e ser
enigmático. As descobertas nos surpreenderão. O conhecimento será sempre o
caminho, não o ponto final. O desconhecido será conhecido, para voltar a ser
desconhecido, que será conhecido, e desconhecido. Teorias podem ser reescritas,
nunca extintas ou ignoradas.
Michelangelo será eternamente belo. Leonardo, genial. Van Gogh
pintará as cores do vento. Pollock, a representar nossa loucura. Picasso, a
incongruência. Miró será eternamente arrebatador. Rimbaud será nosso poeta que
faz da vida, versos, da sua andança, sentido: “Que venha a manhã, com brasas de
satã, o dever é ardor. Ela foi encontrada. Quem? A eternidade é mar misturado
ao sol”.
Shakespeare nunca deixará de mostrar o horror de reinos, a
loucura de reis. Campos de Carvalho narrarei de cor. Continuará píncaro do espetacular. Lobos uivarão para a lua. Cachorros latirão uns para os outros.
Gatos se esconderão na escuridão. Sabiás cantarão antes do amanhecer, nos
despertando com a beleza da sua inconveniência. À noite, será sempre noite, por
vezes desesperadora, por vezes longa demais, dolorida e saudosa. Enfim, o sol
aparecerá. O ciclo das estações não se alternará. O minuto de daqui a pouco
será depois o minuto que se foi. O amanhã será ontem.
A Justiça não será parcial, a defender os que mais têm. A
verdade poderá nunca prevalecer. Mas nenhum doutor irá nos convencer do
contrário. A polícia continuará a reprimir, a defender o bem de quem os têm.
Mas nunca será eliminado o fato de sermos tão desiguais, de que quem não tem
luta para dividir. Os grilhões se romperam. As amarras se romperão. Apesar de
você.
Hoje é dia de poesia e samba. Todo dia é dia de samba. Apesar de
você, o sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, do mal
será queimada a semente, o amor será eterno novamente. Quero ter olhos pra ver,
a maldade desaparecer. Amanhã será um novo dia. Apesar de você."
Apesar de Você –
por Marcelo Rubens Paiva, [Escritor, dramaturgo, cronista], jornal Estado de S.
Paulo [Estadão], 20 de Outubro de 2018 – com imagem e sublinhados
nossos
J.M.M.
1 comentário:
Se esta pessoa ganhar, em termos políticos e sociais será um retrocesso civilizacional. Será atrasar o calendário várias décadas, pela pior das razões. Temo o pior em matéria de Direitos Humanos: perseguições a progressistas/ativistas de esquerda e Homens da cultura.Dói ver a Liberdade, a Luz que conduz a Humanidade para dimensões adequadas à sua dignidade, poder vir a ser amordaçada pelos seus potenciais inimigos, que vão soltar-se.
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