“A Paixão de Cristo em casa” –
por António Valdemar, in Revista do Expresso
Os museus estão fechados e até as missas foram canceladas. Mas
ainda há maneira de ver como a arte portuguesa representou a Páscoa
“A Páscoa tem profundas tradições na civilização ocidental. Não
se esgota na paixão, na morte e na ressurreição de Cristo. A sua origem
relaciona-se com a herança de Abraão e de Moisés, a terra do Egito, a
libertação do povo de Israel e a passagem do Mar Vermelho. A Bíblia, quer no
Antigo Testamento quer no Novo Testamento, descreve as etapas da festa judaica.
E, também, a génese das cerimónias que o catolicismo foi adotando, através dos
relatos dos Evangelhos e das Epístolas e de acordo com as posições doutrinais
introduzidas desde o Concílio de Niceia até ao Concílio de Trento.
Acrescente–se, a tudo isto, a profusão de todas as formas de culto das outras
igrejas cristãs.
Mas não é, apenas, na literatura, na efabulação narrativa, no
universo da criação poética e na exegese histórica, filosófica e teológica que
a Páscoa se reflete na área da cultura. As artes plásticas registaram, ao longo
dos séculos, o ritual das sinagogas, a prática litúrgica orientada pela
hierarquia católica ou, ainda, as manifestações populares que decorrem ao sabor
dos usos e dos costumes de cada país e, dentro de cada um, das várias regiões
que o constituem.
A VISÃO DE ÁLVARO PIRES
A pintura portuguesa dos séculos XV e XVI, à semelhança dos
grandes centros da Europa ou através da sua influência, consagrou as motivações
relativas à Semana Santa e à Páscoa. Reconstituiu a vida terminal de Cristo,
que principia ao ser julgado por Pilatos, que se prolonga à tortura no Calvário
e até à descida da cruz para o sepulcro. Finalmente, emerge na apoteose da
Ressurreição.
A recente exposição de Álvaro Pires, no Museu Nacional de Arte Antiga — um dos acontecimentos artísticos mais significativos, das últimas
décadas, que fica na história do Museu e que se inscreve no exercício da atual
direção de Joaquim Caetano e de Anísio Franco —, aproximou-nos da quase
totalidade da obra do notável pintor português que se afirmou em Itália no
começo do século XV. Permitiu uma análise comparativa do percurso de Álvaro
Pires em face de grandes mestres da época representados na exposição, facto que
a tornou ainda mais relevante.
Álvaro Pires nasceu em Évora, por volta de 1370-1380. Radicou-se
em Itália, a partir de 1410. A sua obra encontra-se, por exemplo, em quatro
cidades da Toscana: Prato, Lucca, Pisa e Volterra. Interpretou o ciclo da
Natividade e o ciclo da Paixão da Morte e da Ressurreição de Cristo. Mestre
entre mestres tem o domínio e virtuosismo da composição, através da nitidez do
desenho e da energia da cor que se associam à sagacidade do olhar e à capacidade
de análise e de síntese. Integra-se no contexto da pintura italiana, na véspera
do Renascimento. Sendo o primeiro pintor português de quem se conhecem obras
não deixa de ser também um pintor de acentuada feição italiana.
O CRISTO DAS JANELAS VERDES
Uma das mais enigmáticas obras da pintura, o “Ecce Homo” — antes
das investigações de Joaquim Caetano e que alteraram a erudição acumulada —,
permaneceu, durante largas décadas, no Museu Nacional de Arte Antiga, na mesma
sala — e por se julgar ser da mesma época — dos “Painéis de São Vicente de
Fora”. O “Ecce Homo” inspira-se no Evangelho de São João, e faz reviver o
Cristo flagelado, a coroa de espinhos e o manto de púrpura sobre os ombros. É a
primeira estação da Via Sacra.
É a imagem do condenado que tem numa das mãos uma vara e daí o
povo chamar-lhe o Senhor da Cana Verde. Todavia, a tábua do Museu de Arte
Antiga é um prodígio de simplicidade e de clareza. É uma figura hierática,
reduzida ao essencial, que transmite uma carga emotiva surpreendente. O mistério
que envolve os olhos cobertos elevou o conteúdo simbólico e incutiu tamanho
fascínio em Almada Negreiros que considerava ser a mais bela e a mais
impressionante de todas as pinturas que vira.
Os estudos publicados nas primeiras décadas do século XX da autoria
de José de Figueiredo, de Reinaldo dos Santos e de Jaime Cortesão, entre muitos
outros, consolidaram o renome nacional e internacional. Ficou denominado,
inclusive na classificação do próprio museu, o Cristo das Janelas Verdes,
enaltecido não apenas por historiadores e críticos de arte mas, também, por
inúmeros poetas e escritores portugueses e estrangeiros.
A ÚLTIMA CEIA
O tema da Última Ceia ficou, universalmente, celebrado por
Leonardo da Vinci, num painel, em que a instituição da eucaristia perante os
apóstolos se caracteriza pela harmonia cromática, pela técnica sóbria e pela
contenção do sentimento na essência e nas formas. Nos primórdios desta
representação iconográfica avultam o mosaico de Sant’Apollinare Nuovo, em
Ravena, e as três miniaturas do Evangeliário de Rossano, com a ceia, o
lava-pés, a repartição do pão e a distribuição do vinho.
Entre nós, podem citar-se numerosas figurações. Entre as mais
significativas assinalam-se as obras de Vasco Fernandes, que se radicou em
Viseu, na primeira metade do século XV. A “Última Ceia” que está em Viseu é uma
das suas obras mais empolgantes. Fez para Lamego o retábulo do Sé. Esteve em
Coimbra e passou em Lisboa pela oficina de Jorge Afonso. Dos trabalhos da sua
autoria, ou que lhe são atribuídos salientam-se, também os 16 painéis da igreja
matriz de Freixo de Espada à Cinta e o o tríptico oferecido, em 1945, ao Museu
Nacional de Arte Antiga pelos herdeiros do colecionador inglês Herbert Cook
(visconde de Monserrate).
Estas obras correspondem a períodos diferenciados. Mas sem nunca
deixarem de estabelecer um confronto direto com o artista vigoroso, de amplos
recursos técnicos, para comunicar, através da pintura religiosa, os grandes
problemas e as grandes angústias humanas.
A TRAGÉDIA DO CALVÁRIO
O itinerário da Cruz, as sequências da Via Sacra atingem,
naturalmente, maior dramatismo e, quantas vezes, a dimensão da tragédia ao
pormenorizar o encontro de Cristo com a mãe; a ajuda de Cireneu, o pranto das
mulheres de Jerusalém; a Verónica, a limpar o sangue; o suplício no Gólgota e,
por último, a descida para o túmulo.
O “Calvário”, de Vasco Fernandes, é uma das obras-primas da
pintura no Museu Grão Vasco. Outro artista que se distinguiu na conceção e no
imaginário da paixão e da morte de Cristo foi Cristóvão de Figueiredo.
Ignoram-se as datas e locais do nascimento e da morte. Mas sabe-se que
trabalhou em Coimbra, em Lamego e em Lisboa. Cunhado de Isabel Pires, mulher do
imaginário francês João de Ruão, tinha laços de parentesco com os pintores
Jorge Afonso, Francisco Henriques, Garcia Fernandes e Gregório Lopes.
Divergem os investigadores e os eruditos a propósito da
identificação de painéis que dizem ser de Frei Carlos, oriundo da Flandres. Não
restam, contudo, dúvidas de que exerceu atividade, entre nós, e é um dos
maiores pintores da época.
Um dos factos averiguados da biografia de Frei Carlos reside no
ingresso no Convento do Espinheiro, próximo de Évora. Admite-se a passagem por
outros mosteiros, como Santa Marinha da Costa, em Guimarães, e os Jerónimos, em
Lisboa. Terá falecido em Alenquer, no Convento do Mato, perto daquela vila.
Contudo, quando se fala de Frei Carlos, o que vem à memória é a
famosa oficina no Espinheiro onde havia, em 1834, por ocasião da extinção das
ordens religiosas, muitos dos quadros que vieram a pertencer ao fundo do Museu
Nacional de Arte Antiga.
Évora também possui um retábulo alusivo à Paixão. Terá sido,
inicialmente, da capela da Piedade, mais conhecida pela capela do Esporão. Mais
tarde, deu entrada na Sé de Évora, por determinação do donatário, D. Manuel de
Vasconcelos e no cumprimento de um voto de sua esposa D. Helena de Noronha.
As hipóteses, quanto à fatura e à origem, são várias: Raczynski
indicou analogias com Memling; José de Figueiredo emitiu outra opinião, seria
de um pintor de Lovaina. Próximo de nós, Dagoberto Markl alertou para
influências dos pintores de Gand e de Bruges, com a predominância de Gerard
David.
Évora tornou-se ponto de convergência de personalidades
emblemáticas da cultura e da arte europeias. Quando, em 1428, Van Eyck se
deslocou a Portugal, por indicação de Filipe III de Borgonha, a fim de retratar
a infanta D. Isabel, filha de D. João I, e depois, duquesa de Borgonha, visitou
a corte instalada nos Paços Reais de Évora.
Por outro lado, Francisco Henriques, que se presume natural da
Flandres e casou em Portugal com uma irmã do pintor Jorge Afonso, não se pode
dissociar, igualmente, de Évora, haja em vista os retábulos que lhe são
atribuídos e destinados para o altar-mor e os altares laterais da igreja de São
Francisco.
A problemática religiosa, da Semana Santa e da Páscoa, na obra
dos pintores portugueses dos séculos XV e XVI reveste-se de características
específicas. O desenvolvimento do tema e a subordinação do artista a
determinados pressupostos verificam-se na composição, no tratamento da cor — e
como destacou a corrente nacionalista da História de Arte —, na incorporação
das arquiteturas regionais e nas referências objetivas de costumes, de
tradições e de paisagens portuguesas. Tudo quanto contribui para definir alguns
dos traços fundamentais do carácter e do temperamento do homem português. Quer
seja na conceção do mundo, quer seja na atitude perante a vida, quer seja,
ainda, na relação que mantém com o sobrenatural.
A Paixão de Cristo em casa – por António Valdemar [Jornalista e
investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], E revista do Expresso, 10 de Abril 2020, pp. 57-59
– com sublinhados nossos.
J.M.M.
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