“Cartas para hoje” – por António Valdemar, in Revista do Expresso
[Segunda edição das
cartas que Manuel Teixeira Gomes mandou a João de Barros, selecionadas por
Manuela de Azevedo. Fragmentos de umas memórias que não chegaram a existir]
“As
memórias de Teixeira Gomes fizeram parte de vários projetos. Memórias políticas
com a militância partidária republicana, a carreira diplomática e o exercício
da Presidência da República. Memórias literárias resultantes do convívio com
escritores, poetas, pintores e músicos. Em Coimbra, onde fez o secundário. No
Porto, onde estudou Medicina sem concluir o curso. Em Lisboa, onde frequentou
as principais tertúlias do fim do século XIX e começo do século XX. Somem-se as
memórias familiares do Algarve — as relações difíceis com o pai e ainda mais
difíceis com a mãe, que o deserdou, por viver maritalmente e ter filhos de uma
empregada; e as do comerciante de figos com meios para passar metade do ano em
viagens através da Europa. Finalmente, as memórias do exílio voluntário, após a
renúncia à Presidência da República em 1925, que lhe permitiu retomar com
intensidade a escrita. Nunca concretizou o grande livro de memórias que
prometeu, mas deixou em correspondência pessoal, política e literária
reminiscências de 80 anos de existência repleta de contrastes.
Desde
sempre as cartas foram para Teixeira Gomes um modo de comunicar. Publicou em
vida três livros de cartas: “Cartas Sem Moral Nenhuma”, “Cartas a Columbano” e
“Miscelânea”, com relatos de viagens e reflexões literárias e estéticas.
Castelo Branco Chaves também recolhera, no âmbito das edições promovidas em
1960, no centenário do nascimento, outros volumes de correspondência. Mas além
da epistolografia coligida em livros existia correspondência inédita e dispersa
para amigos, em especial o poeta João de Barros e que o seu filho Henrique de
Barros selecionou, incumbindo Manuela de Azevedo da edição. A investigação tem
prosseguido com António Barros, o neto de João de Barros, que ficou a cuidar do
espolio do avô para novas edições.
Ficamos
a saber, através do próprio Teixeira Gomes, o que pensava dessa literatura de
testemunho que praticou com abundância: “Eu tive sempre, mais ou menos, a mania
epistolar, e pouca gente terá havido que escrevesse tantas cartas como eu, no
decorrer desta minha agitada, longa, e curiosa vida. (...) Talvez porque o meu
temperamento se compraz no desalinho da conversação despretensiosa, e repugna
às composições oratórias; seja qual for a razão o certo é que, escrever uma
carta nunca me foi pesado.”
Confidenciou
nas cartas a João de Barros: “Como sabe, nunca fui popular, mas a Presidência
da República tornou-me detestado. Situação que abrangeu também, um pouco, os
meus amigos pessoais. (…) Sem ter feito nada de bom, nem de mau, limitei-me ao
estreito cumprimento das minhas obrigações de mestre de sala — levantei, no meu
país, contra mim, os ódios que só costumam levantar os grandes benfeitores da
Humanidade.”
Em
vida e depois da morte, Teixeira Gomes foi muito criticado. Sem nunca lhe ter
falado, Miguel Torga, no “Diário”, ao registar a morte de Teixeira Gomes não
hesitou a chamar-lhe “manjerico”. Antes e depois do exílio, tinha inimigos de
estimação, como Bernardino Machado, por incompatibilidades políticas
recíprocas; João Chagas, que o insultou no “Diário”; ou Augusto de Vasconcelos,
que despreza por motivos de carácter e ausência de lealdade política. Fez
comentários arrasadores a Ginestal Machado, chamando-lhe “o seráfico Ginestal
Machado a quem os rapazes de Santarém cognominaram o cu frouxo”. Mas um dos
grandes ódios de estimação foi Cunha Leal, que lhe movera uma campanha
sistemática na tribuna de São Bento ao ler, quando era Presidente da República,
as passagens dos livros com referências sexuais. A divulgação provocou os
efeitos desejados: Teixeira Gomes não perdoou a Cunha Leal.
Era
com desdém que o antigo Presidente se pronunciava acerca de intelectuais
portugueses que, em vida, o lisonjearam e depois o atacavam e de forma
insultuosa. Júlio Dantas, além da ferocidade do manifesto de Almada Negreiros,
não escapou à sátira de Teixeira Gomes. Chamou-lhe “merdiflor”. E acrescentava,
entre outras considerações fulminantes: “Deve-se-lhe um invento genial: a
aplicação dos pastéis de nata em supositórios. Uma vez na confeitaria Marques,
engoliu, por ‘ali’ uma grande bandeja cheia deles.”
Augusto
de Castro é outro visado, e com extrema contundência. Refere que lhe devia,
quando Presidente da República, favores políticos, ao desejar interromper a
direção do “Diário de Notícias” para ingressar na carreira diplomática, em
Inglaterra e em Itália, junto do Papa. Outra crítica virulenta atingiu Afonso
Lopes Vieira, com quem tivera, aliás, relações muito cordiais e expressas em
correspondência. A opinião alterou-se quando Lopes Vieira derivou para a
exaltação de Fátima, de que terá sido o primeiro poeta oficial.
A
opinião de Teixeira Gomes acerca da literatura portuguesa era radical.
Considerava-a “um mito” e insistia: “Nós parecemos tudo menos o que na
realidade somos, isto é, plagiários inveterados, do princípio ao fim, de uma
literatura de décima ordem.”
Mesmo
assim, demonstrou apreço por algumas obras e escritores, como Camões — “o
melhor exemplo de uma repentina e salutar renascença, de pureza de formas e
claridade de ideias e de estilo”. “No entanto”, advertia, “o publico pouco se
importa com o genuíno Camões, que não distingue senão pelo nome (e por ventura
pelo olho de menos) dos demais poetas dos tempos idos”. Era Fernão Mendes Pinto
a figura que “sempre exerceu fascinação irresistível”, sobretudo “pela graça e
cristalina simplicidade do seu estilo, que parece de agora”. Eça não o satisfaz
tanto como Camilo, que apontou como o maior escritor português do século XIX.
Bernardes e Castilho são referências assíduas e cita Bernardim Ribeiro quando
pretende justificar estados de alma.
Perante
os seus contemporâneos, Teixeira Gomes é um clássico. Condenava o desalinho e a
confusão. Rejeitava a forma rebuscada e pomposa, a frase seca e o “estilo
embaçado como se fosse temperado com sumo de marmelo cru”. Para ser espontâneo teria
de haver um trabalho de “ferreiro, que passa da forja à bigorna, e daí à lima”.
A
Republica desiludiu-o: “Sabia muitíssimo bem que, na incapacidade de resumir os
seus ideais em princípios, o nosso povo os havia encarnado em meia dúzia de
figuras representativas da Republica, e avaliava o que ela sofria em desdoiro e
desonra, com os insultos infâmias que esses homens, sem o menor rebuço e
desbragadamente, se assacavam e lançavam uns aos outros.” O modo como foi
tratado quando exerceu a Presidência da República magoou-o profundamente. Em
abril de 1927, escrevia a João Barros: “É, ou parece, um país de réprobos, onde
todos vociferam, ardendo em ódio, consumidos de inveja.”
De
país em país encontrou, finalmente, em Bugia (Argélia francesa) o local para se
instalar nos últimos dez anos de vida. Passara já os 70 anos de errância
contínua. Por diversas vezes, Teixeira Gomes falou do envelhecimento, das
doenças que o atingiram. Porém, manteve até ao fim uma espantosa memoria. Na
reta final, não deixou de confidenciar: “Estas cartas já se vão dando ares de
‘capítulos de memórias’, que não é intenção minha escrever. (...) Eu sigo,
tanto quanto possível, saboreando este resto de vida, como criança que come o
seu último bolo, às migalhas.”
Ao
corresponder-se com João de Barros, Teixeira Gomes sabia que as cartas não
seriam destruídas e, mais cedo ou mais tarde, seriam publicadas. Construiu a
imagem que fazia de si próprio e que teria sido adulterada, a propósito da ação
que exerceu na vida publica. Escreveu sempre para a posteridade”
Cartas para hoje – por António Valdemar [Jornalista e
investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências] – E revista
do Expresso - 22 de Fevereiro de 2020, pp. 69 – com sublinhados nossos.com sublinhados nossos.
J.M.M.
Sem comentários:
Enviar um comentário