“João Ataíde, memória e exemplo” – por António Valdemar, in Publico online
Magistrado, autarca e deputado, de grande integridade, absteve-se na Assembleia da República na votação da eutanásia e faleceu ao chegar a casa.
«Há
viver e há morrer. Sempre nas circunstâncias mais diferentes e, muitas vezes,
mais insólitas. Foi o que se verificou agora com João de Ataíde. Homem do seu
tempo, com posições ideológicas inequívocas para enfrentar a atualidade e uma
clara visão integradora do futuro. Marcou a sua presença como advogado, como
magistrado (membro do último governo) e, entre várias outras funções, como
Presidente da Câmara da Figueira da Foz.
Em
todos estes e outros cargos João Ataíde distinguiu-se pela dedicação, pela
competência e abertura às situações concretas do quotidiano. Entendeu, também,
a Figueira da Foz na sua extensão poliédrica: o conjunto natural, o mar, o rio
e a serra; a realidade social, política e humana; o legado histórico, as
solicitações do presente e os imperativos do futuro.
João
Ataíde não se limitou à defesa e à valorização da paisagem, à urgência de
viabilização de estruturas e infraestruturas fundamentais para assegurar as
necessidades e as condições de vida da população. Evidenciou– se pelo respeito
que lhe merecia a cidade, o concelho, o distrito e a própria região, no âmbito
de um património material e imaterial incomum em relação ao País e também
abrange um excecional conjunto de personalidades tão significativas e tão
diversificadas; umas, naturais da cidade e do concelho; e outras, das suas
periferias geográficas.
Há
poucos dias, João de Ataíde marcou um almoço comigo – sem horas de acabar e
discussões a propósito de quem iria pagar a conta –, a fim de elaborarmos uma
proposta a submeter ao atual presidente da Câmara, Carlos Monteiro, e ao
vereador da cultura, Nuno Gonçalves, para incluírem ou acrescentarem na agenda
de 2020: os 60 anos da morte do poeta João de Barros e, também, os 60 anos da
morte de Jaime Cortesão, cujo último texto que escreveu – e encontrei no
espólio – foi dedicado à Figueira da Foz. O almoço – no qual deveria estar o
nosso comum amigo António de Barros – foi adiado em consequência de ocupações
inadiáveis.
João
Ataíde deslocou-se na última quinta-feira à Assembleia da República, como
deputado do Partido Socialista. Não era uma sessão igual às outras. Estava na
ordem do dia a eutanásia, uma questão cercada de controvérsias e repleta de
manipulações. Ao exercer o direito de voto absteve-se. Tanto quanto presumo,
agora, depois de votar confrontou-se, possivelmente, com sucessivas e
dilacerantes interrogações.
Tinha-lhe
recomendado, há meses, a leitura obrigatória do Drama de Jean Barois,
de Roger Martin Du Gard, Prémio Nobel da Literatura, que, feitas algumas
descircunstancializações pontuais e atualizadas as notas de pé de página,
mantém a maior das atualidades. A reeditar, é de manter a escrupulosa tradução
de António Lobo Vilela.
Pouco
depois de chegar a casa, João Ataíde sentiu-se mal. As interrogações,
porventura, voltaram a acentuar-se através da noite e da madrugada. As
pulsações aceleraram. Parou o coração. Os fantasmas persistiram. E
estrangularam-no. Nunca conseguiu libertar-se da interioridade secreta de
rotinas ancestrais, desvincular-se de superstições e erradicar os terrores
incutidos na infância e na adolescência. Estes estados de incerteza e dúvida
precipitaram-lhe o fim.
Mas
um facto é certo. Em face do irremediável, da viagem sem regresso do amigo
querido e fraterno João Ataíde, que não voltarei a ouvir e a ver, cumpre
apresentar condolências à família, e à Figueira da Foz, através do Presidente e
vereadores da Camara Municipal, pelo muito que fez pela terra. Sempre de mãos
limpas.
Resta
apresentar, ainda, condolências a titulares de cargos judiciais, aos que
dignificam e honram a profissão, num momento em que se assiste a uma crise da
mais extrema gravidade, trazendo para o ruído da praça pública os mais
lamentáveis episódios pessoais, profissionais e institucionais: a denúncia da
existência e do funcionamento próspero de uma ou mais empresas
pertencentes e associadas a juízes aposentados e que alegadamente faturam
milhões de euros por ano, para efetuarem – em condições a averiguar pelas
instâncias competentes, e até aos mais pequenos
pormenores e implicações –, as peritagens e avaliações que terão
prestado.
Será
possível esquecer o espetáculo, também público do ódio indisfarçável – que
ferve, uiva e explode – nos depoimentos proferidos por juízes e procuradores e
que invadiram as televisões, os jornais, as rádios e as redes sociais? Será
ainda possível assistir sem indignação, sem repulsa e sem perplexidade à
lavagem de roupa suja de elementos de uma classe que é um dos órgãos de
soberania e que, diante de todos nós, não hesitam a manifestar-se uns contra os
outros?
No
mínimo, e se forem apuradas todas as responsabilidades, estamos a assistir à
generalização da máscara corroída e leprosa da Justiça. Perante isto – que
suponho ainda no princípio –, a personalidade humana, a raiz ética e a
autenticidade moral de todo o percurso de João de Ataíde constituem um exemplo.
Raro. Edificante. Presente.
João Ataíde, memória e exemplo –
por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências] – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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