Morreu VPV. Inútil falar nas qualidades intelectuais patenteadas nos seus diferentes escritos, compêndios que gulosamente lambiscávamos e soletrávamos, a fermosa estrivaria rinchava e o raminho da fazenda púbica caluniava. Eles aí estão, curveteados à falta de liberdade, para contar. Tomem lá arremedos, Ó mestres d’aldeia.
Obrigado VPV. Obrigado pela prosa no Almanaque. Obrigado pelo
receituário no Tempo e o Modo. Obrigado pelas diatribes no Indy e na Kapa. Obrigado
pelas mil crónicas & outros tantos artigalhos. Definitivamente … Obrigado! [J.M.M.]
► “ … Deus sabe que eu
nunca fui assim. Não falo do corpo. O corpo está lá, sei perfeitamente. E já
não está tão bom como era, concedo. Há sinais de que, por cerimónia, omito a
descrição. Uma vez por ano, resolvo meter o corpo na ordem. O ano passado, por
exemplo. Não lhe dei de comer e, sobretudo, de beber. Tirei-lhe quarenta
cigarros por dia. Dobrei-o e estiquei-o, com método e persistência, em várias
direcções. Corri com ele à borda do rio. Introduzi-o numa piscina que
tresandava a desinfectantes e lá o fiz andar de um lado para o outro até o pôr
de rastos.
O sofrimento que estas coisas lhe causaram, e me causaram a mim,
não se descreve. Se ele não ficou melhor, ficou, pelo menos, diferente. Alguns
íntimos e amigos pareceram apreciar as modificações. Presumo que os traços da
tortura física auto-infligida indicam elevação moral. Ignoro se indicam saúde.
Sobre essa matéria o meu corpo não se pronunciou.
Estes acessos de loucura não tendem, normalmente, a durar. E eu
torno a cumprir os meus deveres. Um corpo da idade do meu já merece que o
deixem em sossego e o poupem a cenas ridículas. Ele não quer ser mais novo. Eu,
às vezes, quero que ele seja. Mas sou eu, não é ele, coitado. Ele nasceu em
1941 e não tem vergonha nenhuma. Até aqui, aliás, não se portou mal. Houve uma
época em que me inquietava. Perdi muito tempo a exibi-lo inutilmente a
médicos. Hoje não me inquieta. Ele que decida o que lhe apetecer, quando lhe
apetecer. Eu parto do princípio de que ele não existe. Evito incomodar-me. Dali
não me virá com certeza nada de bom. Nestes casos, a melhor política é a
indiferença. Uma indiferença fingida, escuso de esclarecer. Afinal, a qualquer
momento, ele pode acabar comigo.
Depressa ou devagar, com alguma dignidade ou impensáveis
humilhações. Eu assisto à óbvia incompetência dele, calado e quieto. Para não o
provocar e para não lhe ceder. Recuso-me a tratá-lo como se ele fosse um velho;
com mimos e cuidados de velho. Ele que se aguente. Ou não se aguente.
[DESTINOS] Deus sabe que eu nunca fui assim e eu também sei que
não fui. Só não sei o que fui. Falta à minha vida ordem e finalidade e, por
isso, não posso dizer «fui assim» e, a seguir, «assim». Uma carreira ajudava.
Fui tenente, major e capitão; deputado e ministro; assistente e catedrático. Uma
vocação ajudava: fui filho, pai e avô. Uma obra ajudava; o meu primeiro livro,
o segundo, o terceiro. Tudo isso ou parte disso talvez me permitisse dividir,
arrumar, organizar o passado. Até uma grande ambição ajudava: estive mais longe
ou mais perto, ganhei mais dinheiro ou ganhei menos. A mim, infelizmente, as
coisas sucederam-me sem nexo ou deliberação. Comecei e desisti. Desisti e
recomecei. Desejei e não desejei. Dei meia volta ou a volta inteira.
Se me obrigassem a escrever a minha biografia, não era capaz de
escrever uma história coerente. Nem sequer com alguma arrumação de superfície.
Mesmo pelas regras mais simples: infância, adolescência, juventude, maturidade,
velhice. Era velhíssimo na adolescência, adolescente na maturidade e toda a
gente me acha simultaneamente infantil e soturno. E não me lembro de períodos
fixos, de mudanças drásticas, lembro-me de acontecimentos. De uma noite, à
saída de Lineacre College, em Oxford, com muito frio e uma neve brilhante, em
que me senti, por qualquer razão trivial, a mais admirável criatura terrestre.
Do elevador em que me levaram à sala de operações subterrânea de uma clínica de
Biarritz, inerme e nu, como pura carne. De um café vazio, à noite, no Luso, com
mesas de fórmica e o chão molhado, onde de repente verifiquei que não havia
motivo plausível para sair dali.
Quando penso na minha vida, penso nestes episódios e noutros
como estes, que não permitem a separação em «antes» e «depois» e não revelam qualquer
curso, honroso ou não. Em cinquenta anos, não notei indícios de um destino
manifesto ou de um destino humildemente necessário. o que eu escolhi, ou que me
sucedeu sem eu escolher, foi um acaso e eu próprio sou um produto de
coincidências improváveis, de circunstâncias efémeras, de emoções sem
substância. Os factos consumaram-se sempre por mecanismos obscuros, totalmente
estranhos à minha vontade. «O que é que eu estou aqui a fazer?», perguntava eu,
desastre após desastre. «Como é que eu vim aqui parar?». Péssimas perguntas.
Durante muito tempo supus que viver bastava, por simples acumulação,
para me definir uma personagem e um caminho. Definiu, excluindo, como com toda
a gente. O poder físico e o poder intelectual diminuem. Algumas pessoas
acreditam que nos conhecem e retiram-nos o benefício de certas dúvidas. E,
principalmente, numa sociedade doméstica como a portuguesa, cresce o número dos
nossos inimigos, tácitos ou confessos. Se eu me defini, defini-me a coleccionar
inimigos. Eles mostram o que eu sou e eu sou o que eles mostram. Mas que as
possibilidades se reduzem à medida que se roda para o fundo do funil é um
antigo lugar--comum e nem sequer se distingue por ser verdadeiro. Descontado o
irremediável (já de si relativo e ambíguo), sobra ainda quase tudo. O caos persiste.
[INTIMAÇÕES DE MORTALIDADE]. Não há transição. A infalibilidade
e a confiança perdem-se de repente. Ontem corria tudo bem, hoje corre tudo mal.
Ontem não se fazia um erro, hoje só se fazem erros. A pessoa é a mesma: o corpo
e a cabeça. As circunstâncias são as mesmas, os outros são os mesmos. Por mais
que se procure nada mudou. Só mudou o efeito que se produz no mundo. Um homem
deita-se com o mundo aos pés e acorda com ele às costas. As mulheres fogem, os
amigos desaparecem, os telefones desligam-se. Dantes andava-se e esquecia-se.
Agora, a vida pára. Repete-se. Um mês é igual ao anterior e ao próximo e ao
seguinte. Não acontece nenhuma coisa diferente, só acontecem coisas
indiferentes. Por qualquer razão obscura, na° se consegue descobrir o sítio
onde as coisas acontecem; e elas 0 na° acontecem onde aconteciam.
Um pequeno pânico instala-se. Ao princípio, pensou-se que era um
estado passageiro, uma época de azar ou de mau jeito. Mas depois o estado não
passa, a sorte não vem e o mau jeito continua. Conta-se com angústia o tempo
para trás e, a certa altura, conta-se com terror o tempo que sobra. Deixa-se de
ter quarenta e três ou quarenta e sete anos e têm-se treze anos até aos
sessenta ou dezoito até aos sessenta e cinco E não será optimismo os sessenta e
cinco? E vale a pena? Acontecem coisas aos sessenta e cinco? Não com certeza as
coisas que acontecem aos trinta.
Eu penetrei na impropriamente chamada meia idade desta maneira:
ou seja, aflito. O céu caiu-me em cima sem aviso. Nestas crises, segundo o
costume, as pessoas agarram-se: à família, ao trabalho, às ambições. Reparei
que os meus amigos se agarravam. Um a um, consoante a sua natureza,
transformaram-se em secretários de Estado, políticos respeitáveis, académicos
triunfantes, altos funcionários ou pais extremosos. Vários preferiram a
virtude, ideológica ou sexual. Com meritórias excepções, quase todos se
encaminharam. Mas precisamente eu não pretendia encaminhar-me Deus sabe que eu
nunca fui assim”
“Eu Sempre fui Assim: Auto-retrato aos 50 anos” – por Vasco Pulido Valente, in Retratos me Auto-Retratos, Assírio e Alvim, 1992 (aliás in revista Kapa, Fevereiro de 1992) – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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