segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O LAGARDE PORTUGUEZ OU GAZETA PARA DEPOIS DO JANTAR


O Lagarde Portuguez ou Gazeta para depois do Jantar. Ano I, nº1 (21 de Novembro de 1808) ao nº 8 (15 de Dezembro de 1808) [mudou de título em 22 de Dezembro de 1808 para Telégrafo Português ou Gazeta para depois de Jantar; depois para Telégrafo Português, ou Gazeta Anti-Francesa: tem este Telegrafo a colaboração de Teodoro José Biancardi]. Redactor: Luís de Sequeira Oliva e Sousa Cabral (1778-1815); Oficinas da Impressão Régia de Lisboa, Lisboa, 1808, VIII numrs.

«O inimitável Lagarde, redactor francês da Gazeta de Lisboa de 1808, até o memorável mês de Agosto, abandonou a capital com tanta precipitação que não se pôde presumir por que motivo nos privou da sua  amável presença. A Gazeta de Lisboa tem, é verdade, continuado; mas quanto está longe de ser redigida com aquele sal, candidez e frescura com que o era no tempo em que este hábil gazeteiro nos mimoseava com as suas pitorescas descrições! Esta consideração obrigou o autor deste papel periódico a ensaiar se poderia imitá-lo, quando não fosse no estilo nervoso, salitroso e sulfúreo com que nos pintava a situação da França, carater, e prosápia do grande Monarca, que a impera, ao menos no grotesco com que tornava em ridículo as vozes, que a maledicência espalhava contra o governo francês em Portugal. Por isso por se chegar o mais possível ao original, condecora o autor este papel com o título de Lagarde Português, semelhante nisto aos Especuladores, e Entrepreendedores de Casas de Pasto, ou Café, que sempre tomam emprestado um nome famoso para chamariz dos fregueses».
[inAdvertência do Redactor da Presente Folha”, nº1]

Trata-se de uma publicação periódica, de luta contra os invasores franceses, que saiu sob anonimato mas que o sábio Inocêncio nos diz ter como seu redactor, Luís de Sequeira Oliva e Sousa Cabral. Foi uma das várias (e bem curiosas) publicações jocosas e satíricas anti napoleónicas surgidas entre 1808 e 1811, após a invasão de Junot (este género de escritos eram editados em Lisboa e em Coimbra). Alguns desses periódicos (e folhetos) são peças bibliográficas notáveis e muito raras [ver sobre este assunto António Pedro Vicente, Panfletos anti-napoleónicos durante a Guerra Peninsular, in Historia das Ideias, nº20; ver, ainda, Les Pamphlets Portugais Anti-Napoléoniens, Paris, 1978; José Amaro Albuquerque de Oliveira, A Ideologia panfletária durante as invasões francesas, 1963, António Ventura, Os panfletos anti-franceses: subsídios para a sua História, 2007] e, além do que apresentamos supra, podemos apontar a Gazeta do Rocio [apresentava no seu cabeçalho uma águia de pernas para o ar; é atribuída a António Maria do Couto], o Mentor da Moda (redactor António Manuel Policarpo da Silva) e a Gazeta de Almada ou Telescópio Portuguez (redactor José Anastácio Falcão). De poucas páginas (à volta de 4) esta imprensa era lida avidamente nos botequins, cafés e casas de pasto e tinha um número elevado de leitores.

Este Lagarde Portuguez não fugiu à regra: saia duas vezes por semana (Segunda e Quinta-feira), tinha habitualmente duas folhas (4 páginas) e apresentava no seu título o nome do Intendente Geral da Polícia, Pierre Lagarde, cargo que exercia, por indicação pessoal de Napoleão Bonaparte, desde Março de 1808, troçando dele, evidentemente. Lagarde era ao mesmo tempo o redactor oficial da Gazeta de Lisboa (a partir de 5 de Abril de 1808; tornado órgão oficioso do governo francês, não por acaso, mandou Lagarde retirar as armas reais portuguesas do cabeçalho do jornal) e, ao que parece, ditava em francês os artigos que eram traduzidos por oficiais portugueses. José Acúrcio das Neves, na sua valiosa obra, História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino [1810; existe uma edição mais recente (1984) pela Afrontamento], diz-nos o seguinte:

Lagarde, que ao emprego de Intendente geral da polícia reunia o de conselheiro do governo, arvorou-se em redactor da Gazeta de Lisboa: ainda existem muitos dos originais escritos pela sua própria letra, e é admirável a fluidez com que os fazia. Muitas vezes estava com gente, e dando expedição a outros negócios; mas continuando sempre a escrever rapidamente, improvisava gazetas, e transmitia ao público o que a sua imaginação inventava. Causavam umas vezes riso, e outras indignações, as reflexões, e os coloridos, com que enfeitava e dispunha os factos, segundo convinha ao seu partido; não cessava de inspirar terror; mas o ridículo e a impostura manifestavam-se a cada passo”.

 
Luís de Sequeira Oliva e Sousa Cabral (1778-1815) nasceu em Casfreires (Sátão), filho do bacharel de direito e almoxarife ouvidor e capitão-mor de Ferreira de Aves, Luis Félix Sequeira e Loureiro, e de Micaela Luísa de Oliva e Sousa Cabral. Depois dos seus estudos, foi para a Universidade de Coimbra onde obtém (1802) o bacharelato em Direito [vide Inocêncio F. Silva, Dicionário …, vol V, pp. 320-321; ver, com proveito, Carla da Costa Vieira, Animar a Pátria, refutar Napoleão ...]. Exerceu a profissão de advogado na sua terra natal, mas “reconhecendo em si pouca inclinação para a vida do foro” partiu para Paris, onde tirou química com o célebre professor Louis Nicolas Vauquelin, regressando depois à pátria. Integra-se como primeiro-tenente do Real Corpo de Engenheiros, químico do Arsenal e fábricas de pólvora, e tem a seu cargo a direcção da fábrica de refinação de salitre na vila de Moura.

Perante as invasões francesas, Luís de Sequeira Oliva, demitiu-se das suas funções militares para não ter de obedecer a uma autoridade estrangeira, ingressa nas "hostes dos patriotas do Exército do sul" (C. C. Vieira, ibidem)  e entendeu “defender a pátria” pela escrita, como outros o fizeram pelas armas. Assim, redigiu além do Lagarde Portuguez, e do importante, e já citado, Telégrafo Português, ou Gazeta Anti-Francesa (que lhe sucedeu e que existe até ao fim das invasões), curiosos folhetos, a saber:
Verdadeira vida de Bonaparte até á feliz restauração de Portugal. Offerecida ao Ill.mo e ex.mo sr. M… do L… Lisboa, Imp. Regia 1808, 147 p.; Dialogo entre as principaes personagens francezas, no banquete dado a bordo da Amavel por Junot no dia 27 de Septembro de 1808. Lisboa, Typ. Lacerdiana, 1808, 44 p.; Restauração dos Algarves, ou os heroes de Faro e Olhão: drama historico em 3 actos. (Em prosa), Lisboa, Imp. Reg., 1809, 82 p.; Dialogo entre Bonaparte, seu irmão José, Berthier, e Lasnnes : ácerca da declaração de guerra pela Austria, 1809; Carta dirigida a S. A. Mr. Massena, general em chefe da expedição contra Portugal, pelo author do antigo Telegrapho Portuguez, em que se pertende demonstrar a inconquistabilidade da Hespanha, e o absurdo de pertender conquistar Portugal, 1810; Supplemento à Carta dirigida a Massena, 1810; Memoria lida na Academia Real das Sciencias de Lisboa, sobre a fabrica de salitre que se estabeleceu na villa de Moura, in Investigador portuguez, n.º XV, de pag. 457 a 461; Discurso sobre a Independencia do sábio na carreira da vida, 1814.

Como curiosidade, diga-se que Luís de Sequeira Oliva considerando-se “injuriado” pelo padre fundibulário José Agostinho de Macedo, no seu célebre poema satírico Os Burros ou o Reinado da Sandice, onde eram principalmente vilipendiados os frades Bernardos, fez requerimento competente às autoridades pelo abuso do padre. A Secretaria do Reino, em 11 de Fevereiro de 1812, fez um Aviso para apreensão do opusculo que supostamente corria sob redação do padre mas que o próprio negou a sua autoria. Não surtiu, porém, o efeito desejo e até mesmo os Bernardos procuraram amansar o padre, porque, perante a tentativa de desencaminho do padre à freira Maria Cândida do Vale, os frades Bernardos “fizeram vista grossa e transigiram que o padre vivesse de casa e pucarinho com a freira bernarda”.

Morre Luís de Sequeira Oliva e Sousa Cabral  no sítio do Lumiar, “atacado de uma disenteria crónica”, a 1 de Junho de 1815. Deixou à Academia Real das Ciências, de que era sócio, “um legado humanitário de 400:000 réis, destinado para coroar a Memória que indicasse o methodo seguro de curar radicalmente as dysenterias chronicas, seja qual for a sua causa, fundado em princípios, e confirmado por observações praticas” [in Inocêncio F. da Silva, ibidem]. Foi casado com Ana Senhorinha de Barros Lassence.

J.M.M.

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