“Um Poema Premonitório do 24
de Agosto de 1820” [Extracto] – por Luís Miguel Queirós, in Público, 17 de Agosto
de 2020
No dia 15 de Junho de 1819, um jovem estudante de Leis, que
pouco antes começara a usar os apelidos Almeida
Garrett, escreveu no Porto, sua cidade natal, um poema que resumia com
veemência quase pitoresca a indignação e rancor que a presença e o ascendente
dos militares ingleses vinha alimentando na sociedade portuguesa.
"Opressora da Lusa liberdade/Esta canalha d'Al b-on
soberbo/ aqui fixou seu trono./ De botelhas coroadas, e d’olhos, boca,/ Das
orelhas, nariz e doutras partes/ Esguichando cerveja, numa glória/ De espesso
nevoeiro,/ Pousou seu génio bruto em nossos muros;/ Co nacional God-damn, e o
frasco a pino,/ Nos bebe o vinho, nos esbulha as bolsas."
Mais curioso é que neste poema, intitulado Férias, Garrett parecia também adivinhar não só
que a revolta estava para breve, mas que nasceria no Porto, como efectivamente
veio a acontecer um ano depois, no dia 24 de Agosto de 1820.
“Ressurgir[á] daqui" a "nobre independência de outras
eras", escreve, acrescentando um voto que é todo um programa
revolucionário: "Oh! quando te hei-de eu ver, pátria querida/ Limpa de
ingleses, safa de conventos,/ E varridas tuas ruas da imundície/ Do fidalguesco
lixo!”
Férias foi recolhido uma década mais tarde, em 1829,na primeira
edição da Lírica de João Mínimo,
publicada em Londres, e é justamente numa nota a estes versos que Garrett inclui um dos seus ditos mais célebres:
"Se na nossa cidade, há muito quem troque o b por v, há muito pouco quem
troque a honra pela infâmia, e a liberdade pela servidão."
Garrett veio a envolver-se na revolução liberal, viu aquele que seria o
seu primeiro poema impresso, o Hino
Patriótico, ser recitado no Teatro de S. João logo no dia 27 de Agosto de
1820, e chegou a ser secretário particular de José da Silva Carvalho, um dos líderes civis do movimento. Não é, pois,
implausível que em meados de 1819 já lhe tivessem chegado alguns ecos da
actividade do Sinédrio, para o qual um seu amigo próximo, Duarte Lessa, fora cooptado em
Fevereiro do ano anterior. Mas talvez não lhe fosse necessário estar ao
corrente da conspiração, ou possuir dotes divinatórios, para prever que mais
tarde ou mais cedo se desencadearia uma revolta e que a probabilidade de ela
vir a eclodir no Porto era considerável.
O magistrado José Maria
Xavier de Araújo, penúltimo
membro a ser recrutado pelo Sinédrio - o último foi o coronel Bernardo Sepúlveda, que a exemplo da
generalidade dos oficiais implicados no pronunciamento de 24 de Agosto passou
para o campo absolutista logo na Vilafrancada -, deixou umas memórias da
Revolução de 24 de Agosto, na qual via "o resultado necessário dos
acontecimentos que conduziram o Príncipe Regente de Portugal ao Brasil no ano
de 1807, onde lançou as bases de um novo Império, com uma Administração
separada, um Erário separado, e todos os Estabelecimentos próprios de uma Monarquia
absoluta". E prosseguia: "Se este sistema não fosse levado ao seu extremo
resultado, o Povo Português (...) toleraria por mais tempo a pesada carga, e
digamos ainda, a humilhação de ser Colónia do Brasil, [mas] (...) o jugo
tinha-se tornado, além de pesado, odioso, desde que o mais insignificante
emprego temporário ou vitalício era dado do Rio de Janeiro com grande despesa
de dinheiro e tempo."
Xavier de
Araújo constatava ainda: "O nosso
Exército, governado em chefe por um general Inglês, e na maior parte das
Divisões e Brigadas, também por Ingleses, era conservado no pé de guerra com
grave peso do nosso Tesouro." Se o domínio britânico sobre o Exército e a
administração pública era um dos mais óbvios focos de descontentamento, a cruel
execução, em Maio de 1817, de Gomes
Freire de Andrade e dos oficiais que com ele tinham conspirado para derrubar
o Governo, acirram o ódio aos ingleses. Xavier
de Araújo não hesita mesmo em sugerir uma relação de causa e efeito entre o
enforcamento dos conspiradores, atribuída a Beresford, e a criação do Sinédrio: "Cousa notável, e que
evidentemente mostra a inutilidade da pena de morte aplicada a delitos
políticos! No mesmo ano da morte de Gomes Freire foi assentada a Associação que
produziu a Revolução de 24 de Agosto de 1820."
No entanto, era no país de Beresford
que se imprimiam os vários jornais portugueses que contribuíram para difundir o
ideário liberal nos anos que antecederam a revolução, como O Português, do bacharel
Bernardo da Rocha Loureiro, ou O
Campeão Português, de José Liberato
Freire de Carvalho. E foi em Inglaterra que vários revolucionários do
vintismo, incluindo Silva Carvalho e
Xavier de Araújo, procuraram refúgio
após a reviravolta absolutista da Vilafrancada, em 1823.
Como o principal ideólogo da revolução, Fernandes Tomás, salientará no seu Relatório sobre o Estado e Administração do Reino, no qual pormenorizou perante as Cortes, em Fevereiro de 1821, a situação calamitosa da agricultura e do comércio, da indústria e das finanças, o país estava arruinado. Mas continuava a manter, em tempo de paz, um exército numeroso e oneroso, cujos postos principais eram ocupados por britânicos, que bloqueavam a progressão dos oficiais portugueses. Um aspecto que ajuda a explicar, aliás, a circunstancial conjugação de interesses, pouco duradoura mas instrumental para o sucesso da revolta, entre as ilustradas elites burguesas portuenses, genuinamente empenhadas numa viragem liberal, e um grupo de militares nortenhos, intrinsecamente conservadores, que se tinham em muitos casos distinguido nas guerras peninsulares e que agora se viam a marcar passo.
[…] O Porto, uma cidade burguesa, onde a presença da nobreza de sangue
era residual e o poder estava nas mãos de uma elite de juízes, desembargadores,
grandes comerciantes e industriais, ressentiu-se particularmente. A urbe crescera
muito na segunda metade do século XVIII, tornando-se mais ampla e desafogada com
as ambiciosas intervenções dos Almadas, e beneficiou de um forte dinamismo económico
muito devedor do comércio do vinho do Porto, cujas exportações triplicaram no último
quartel do século.
No mesmo período, a importância das relações comerciais com o Brasil,
não só do Porto, mas também dos principais pólos urbanos do Minho, crescera consideravelmente.
E se é verdade que este período afortunado acabou de algum modo com as invasões
francesas e os anos de guerra, a recuperação que depois se iniciou foi fortemente
abalada pelo fim do exclusivo comercial com o Brasil e a concorrência dos produtos
ingleses, que contribuiu também para a decadência das fábricas portuenses, que deixaram
de conseguir escoar os seus produtos.
Se somarmos a estas circunstâncias a proverbial independência da
cidade face ao poder central, a circulação de jornais, panfletos e livros que lhe
faziam chegar as novas ideias filosóficas e políticas que se discutiam na Europa,
ou ainda a rede de contactos que a elite burguesa do Porto mantinha em toda a região
norte, e que abarcava os comandos militares, talvez se deva reconhecer que a convicção
de Almeida Garrett de que seria o Porto a libertar o país, embora plasmada em verso,
nada tinha de lírica.
Não só a revolução nasceu no Porto, como durante algumas semanas
a junta de governo proclamada na cidade liderou de facto o país, conseguindo quase
de imediato o apoio do Minho, e avançando depois numa digressão nacional que foi
encontrando pouquíssima resistência, até entrar no dia 1 de Outubro em Lisboa, que
entretanto aderira já ao movimento revolucionário na sequência da revolta de 15
de Setembro, na qual o povo da capital tivera participação decisiva. E apesar das
várias disputas internas que de imediato marcaram o período de preparação das Cortes,
e que desde logo testemunharam a fragilidade da aliança entre os líderes civis e
militares, a junta Provisional do Supremo Governo do Reino, que resultou da fusão
da junta portuense com o governo interino de Lisboa, seguiu, no essencial, o programa
delineado pelos juristas do Sinédrio.
No entanto, segundo o testemunho de Silva Carvalho, a associação,
em bom rigor, não tinha sido originalmente criada para promover uma revolução, mas
antes para assegurar que não lhe faltariam líderes esclarecidos quando ela rebentasse.
Convicto de que o Governo de Fernando VII, que restaurara o absolutismo com mão
pesada, não poderia durar, e que o inevitável levantamento espanhol não deixaria
de ter repercussões em Portugal, o que Fernandes
Tomás propôs aos seus amigos Silva Carvalho
e Ferreira Borges foi a formação de um
grupo de homens íntegros que deveria preparar-se em segredo para uma revolta que
não poderia deixar de se dar e que lhes competiria a eles tentar orientar para os
melhores fins.
Mas quando as suas previsões finalmente se cumpriram e estalou uma
revolta liberal em Espanha, iniciada no dia 1 de Janeiro de 1820 com um levantamento
militar que impôs o restabelecimento da Constituição de Cádis de 1812, a organização
portuense, então já alargada a oito membros, a que se juntariam ainda mais cinco
a partir do final de Maio de 1820, não esperou por um contágio que tardava a materializar-se
e começou a manter contactos com os revolucionários espanhóis e a mobilizar os chefes
militares de que carecia para lançar a revolução.Os homens do Sinédrio viam-se como moderados e fizeram sempre questão de assegurar a sua fidelidade ao rei e à religião católica - raras revoluções terão começado com as tropas em parada a assistir a uma missa campal, como aconteceu no Porto -, mas nem por isso o seu programa deixava de ter alguns aspectos profundamente radicais. Se a libertação da tutela inglesa, a exigência do regresso do rei ou mesmo a frustrada reivindicação de que o Brasil revertesse à condição de colónia, respondiam diretamente às circunstâncias, já a insistência numa Constituição que emanasse de uma assembleia eleita e representativa da nação, e à qual o próprio rei ficaria subordinado, representou uma revolucionária primeira pedra do edifício jurídico do Portugal moderno, que ainda levaria bastantes anos a consolidar-se.
Um Poema Premonitório do 24 de Agosto de 1820 – por Luís Miguel Queirós,
[Jornalista], jornal Público, 17 de Agosto de 2020, pp. 34/35 – com sublinhados
nossos.
J.M.M.
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