terça-feira, 13 de outubro de 2020

ALMADA NEGREIROS E OS “PAINÉIS”. A POLÉMICA INACABADA


Almada Negreiros e os ‘Painéis’. A Polémica Inacabada” – por António Valdemar, in Revista do Expresso

Almada Negreiros, 50 anos depois da morte, recebe homenagem, com honras institucionais, em duas exposições, com o retábulo imaginado que, durante anos, concebeu para integrar os “Painéis” na Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha

A questão dos “Painéis” — e basta apenas dizer isto — chegou até nós no fim do século XIX, percorreu o século XX e projetou-se no século XXI. Envolveu historiadores, críticos de arte e artistas, de várias tendências ideológicas, políticas e estéticas, em sucessivas polémicas. Incidiu sobre a autoria das tábuas, a nacionalidade do autor e sua formação profissional, a existência de uma oficina, a definição do tema central e identificação das figuras representadas, a fusão dos dois trípticos num políptico e o local para onde os “Painéis” se destinavam.

Mas entre tantas dúvidas e suspeições nunca foi posto em causa que os “Painéis” constituíam obra única na história da pintura, um diálogo de culturas e de abertura ao mundo, num tempo em que Portugal se mostrou recetivo às grandes inovações e atingiu uma presença universal. Cada geração que se tem aproximado dos “Painéis” e os tem investigado, ao abordar problemas fundamentais, não resistiu à tentação de introduzir as suas próprias conceções.

A polémica — que não se pode dar por terminada — tem decorrido, muitas vezes, entre os protagonistas, com louvores incondicionais em panegíricos retóricos, ou derivou, então, para a intransigência, o sectarismo, o insulto, a agressão verbal e pessoal e até para a fraude documental, que chegou a provocar um suicídio, o do investigador Henrique Loureiro.

Nos anos 50 do século passado, apesar da agitação política e social, de revoltas no Exército e na Marinha e de ruturas na Igreja — que apoiavam o regime de Salazar — e dos primeiros sinais de fragmentação do império colonial, os “Painéis” motivaram numerosos estudos, designadamente o aparecimento de livros, a publicação de entrevistas, a realização de debates em conferências e colóquios, que evidencia­ram diferenças e contrastes de opinião. E também coincidências inesperadas, sem o suporte arquivístico que fundamenta estes estudos.

Em 1958, Almada Negreiros, contrariando o que já escrevera em “A Chave Diz — Faltam duas tábuas e meia de pintura no todo da obra de Nuno Gonçalves”, publicou, numa sistematização cronológica, tudo quanto elaborara neste domínio. Afinal, os “Painéis”, o políptico de seis tábuas, fazia parte de um todo de 15 tábuas “chamadas Nuno Gonçalves umas, outras Escola de Nuno Gonçalves”, para o Mosteiro da Batalha. E concretizou o local: “A parede norte da Capela do Fundador no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha.”

Os “Painéis” e a sua explicação através da Geometria transformaram-se numa obsessão contínua para Almada. Ele próprio o confessava. Recordo-me de o ver folhear vagarosamente o “Paris Match” e dizer com ênfase (e procuro citar textualmente): “Morreu Georges Braque. Merece honras nacionais. Não pode ficar eclipsado por Picasso. Penso muito em Braque...” E repetia a advertência de Braque, que Almada adotara e até incluíra num autorretrato: “J’aime la règle qui corrige l’émotion. J’aime l’émotion qui corrige la règle. Penso nisto todos os dias. Talvez várias vezes por dia. Diante de Nuno Gonçalves, da obra-prima da pintura primitiva portuguesa.”

Todas as conversas com Almada principiavam ou acabavam sempre nos “Painéis”, na exaltação do “Ecce Homo” e na Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha. O contacto com a Batalha vinha de longe, disse-me, e mais tarde confirmei. Regressara a 7 de abril de 1920, no dia em que completava 27 anos, da primeira viagem a Paris. Fora a possível aproximação em relação à vanguarda europeia, iniciada em Portugal com os Delaunay, com Diaghilev e a Companhia dos Bailados Russos. A seguir multiplicou-se para outras incursões. Com José Pacheko e Stuart Carvalhais, entre muitos outros, participou, em 1920, num filme extraído do romance “O Condenado”, de Afonso Gaio. A obra e o autor são hoje desconhecidos, mas, na transição do século XIX para o século XX, tiveram êxito e até suscitaram o interesse de Garcia Lorca. Enquanto se efetuaram as filmagens houve deslocações a Ourém, a Tomar e à Batalha. Nunca mais esta será esquecida por Almada como símbolo e memória de Portugal.

Os anos 20 corresponderam a um período de enorme criatividade artística, literária e especulativa de Almada Negreiros. A “A Invenção do Dia Claro”, publicada em livro com a chancela da Olisipo, uma das aventuras editoriais de Fernando Pessoa, marcou o reencontro da poesia com o desenho e a prática da pintura; a relação da palavra com a imagem e, através dela, a reflexão sobre a condição humana. Tempo do Bristol Clube, do romance “Nome de Guerra”; tempo da Brasileira do Chiado, de dois quadros, também de Almada, para aquele café, onde todos os artistas, escritores e jornalistas se encontravam e onde tudo acontecia. Tempo dos “Painéis” e das ruidosas intervenções públicas. Começou na Brasileira do Chiado o conflito permanente de Almada com José de Bragança, que se vai arrastar pela vida inteira: a quem pertence a descoberta da perspetiva dos ladrilhos dos “Painéis”? E a quem pertence a ordenação dos dois trípticos num políptico? Troca de cartas em jornais, conferências na Sociedade de Geografia, um manifesto e inclusivamente uma cena de pugilato, na própria Brasileira, entre José de Bragança e Almada.

Constituiu um êxito a divulgação dos “Painéis” numa exposição inaugurada a 6 de maio de 1910, depois do restauro de Luciano Freire e do livro de José de Figueiredo acerca de Nuno Gonçalves. Os dois trípticos deram entrada no Museu Nacional de Arte Antiga e ficaram em lugar de honra. Era recuperado o maior pintor português do seu tempo e de todos os tempos, Nuno Gonçalves, que nasceu e viveu no século XV, citado e enaltecido por Francisco d’Holanda ao salientar o enorme prestígio que alcançara entre os grandes artistas de Itália. Era, também, o autor das tábuas para a Sé de Lisboa, com as quais pretendia homenagear São Vicente, padroeiro da cidade.

Ao mesmo tempo que a identificação desencadeava contestações, o nome e a obra de Nuno Gonçalves fascinavam críticos de repercussão interna­cional, como Salomon Reinach e, em especial, Émile Bertaux, que destacou o génio de Nuno Gonçalves na “História de Arte”, das edições Albin Michel. Um dos mais notáveis escritores da época e, pouco depois, Prémio Nobel da Literatura, Romain Rolland, não hesitou em incluir os “Painéis” entre as grandes obras da pintura universal.

A controvérsia só ganhou repercussão, a partir de 1925, quando José Saraiva publicou “Os Painéis do Infante Santo”. O livro, editado em Leiria, teve audiência nacional e radicalizou duas fações: de um lado, os seguidores de José de Figueiredo, entre os quais Jaime Cortesão, diretor da Biblioteca Nacional, e Reinaldo dos Santos; do outro, os adeptos de José Saraiva, historiadores, eruditos e artistas, entre os quais José de Bragança e Almada Negreiros. A tese que identificava a personagem central como D. Fernando, em vez de São Vicente, foi aceite, mas levantou duas novas polémicas: a fusão dos dois trípticos num políptico e o restauro de Luciano Freire, em especial na “sigla”, para facilitar a atribuição da autoria da pintura a Nuno Gonçalves.

Dividiram-se as opiniões. Luciano Freire demorou cerca de um ano no restauro. As tábuas, que mandou fotografar, foram agrupadas em dois trípticos. Fez duas cópias para se embrenhar na técnica da pintura. Indigitado pela Academia de Belas-Artes, deu informações a propósito da evolução do trabalho, debatendo com outros académicos os problemas complexos que se lhe depararam. Ramalho Ortigão aproveitou a passagem por Lisboa do crítico de arte e colecionador holandês Abraham Bredius (1855-1946) e convidou-o a ir a uma sessão da Academia, para se pronunciar acerca das novas técnicas de restauro.

Perante objeções pejorativas que se multiplicaram, surgiu em defesa de Luciano Freire, numa carta a José de Figueiredo, que viria a ser publicada, Manuel Teixeira Gomes, escritor, colecionador de arte, antigo embaixador de Portugal em Londres, Presidente da República e frequentador do ateliê de Luciano Freire. Enalteceu a idoneidade pessoal e todos os outros méritos do “artista milagroso que tanto lázaro ressuscitou”.

Mas será melhor completar a opinião de Teixeira Gomes, […

Em 1940, no âmbito da grande Exposição do Mundo Português, a exposição intitulada “Os Primitivos Portugueses”, orientada por Reynaldo dos Santos, apresentou os “Painéis”, pela primeira vez, a nível oficial, integrados num políptico. Perante esta opção, João Couto, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, promoveu uma série de consultas institucionais, de que resultou vir a ser adotada a disposição dos “Painéis” num políptico na sala do Museu Nacional de Arte Antiga que reunia os tesouros da pintura portuguesa do século XV.

Amargurado com incidentes pessoais e preocupações económicas, Almada decidiu, em 1927, radicar-se em Madrid, onde ficará até 1932. Distinguiu-se como ilustrador muito assíduo dos principais jornais e revistas, inseriu-se nos núcleos artísticos e literários mais significativos e fez decorações murais para cinemas e teatros. Este primeiro trabalho conjunto com arquitetos será decisivo para o seu futuro em Portugal, tendo consolidado a parceria com Pardal Monteiro em grandes obras públicas.

O REGRESSO DE ALMADA

Foi nos anos 50 que Almada Negreiros retomou, em público, os seus estudos sobre os “Painéis”. Primeiro, como já mencionámos, em “A Chave Diz”, ao preconizar a integração do políptico na Sé de Lisboa, tendo no meio das figuras centrais uma imagem de São Vicente, com os seus atributos tradicionais; depois, em 1958, ao anunciar um todo destinado ao Mosteiro da Batalha, em artigo publicado no “Diário de Lisboa”; finalmente, em 1960, com a primeira apresentação da montagem fotográfica dos “Painéis” num conjunto de outras tábuas à dimensão do altar. Tive o privilégio de publicar, entre 9 de junho e 28 de julho de 1960, no “Diário de Notícias”, oito longas entrevistas com Almada Negreiros acerca da integração dos “Painéis” e das outras pinturas primitivas na Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha (republicadas em 2015 no livro “Almada. Os Painéis, a Geometria e Tudo”).

A indigitação da Batalha pareceu, em 1958, a muitos historiadores e críticos de arte, insólita e inaceitável. Por exemplo, Adriano de Gusmão, que admitira a solução avançada por Almada de que os “Painéis” se destinariam à Sé de Lisboa (“visionou com acerto”), logo se insurgiu perante a hipótese de terem sido concebidos para a Batalha, e com esta reprovação pertinente: “As dimensões dos ‘Painéis’ e de qualquer lugar que para eles se imagine como seu destino não são argumento decisivo, pois tudo consentem.” Tanto mais que não existia qualquer indicação nas fontes documentais relativas ao Mosteiro da Batalha. As obras de Mário Chicó, a maior autoridade no assunto — e um dos convivas de uma tertúlia de que faziam parte Almada, João Couto, José Cortez, Jorge Segurado e Leopoldo de Almeida —, não mencionavam qualquer alusão para sustentar a tese de Almada.

As oito entrevistas que Almada me concedeu, publicadas semanalmente no “Diário de Notícias”, tiveram sempre o antetítulo genérico “Assim Fala Geo­metria”. Logo na primeira das entrevistas, e para se demarcar dos outros estudos, Almada afirmou: “Não foi por erudição que eu conduzi o meu trabalho.” E insistia: “A eruditos apresento o resultado.” Chegara a esta conclusão através da perspetiva dos ladrilhos, reivindicando, mais uma vez, a descoberta da fusão dos dois trípticos num políptico; e, por outro lado, através da irreprimível atração do “Ecce Homo”, tábua incluída no século XV, por José de Figueiredo, e que a nível nacional e internacional era celebrada como o Cristo das Janelas Verdes. Almada não hesitava em mostrar-se “absolutamente subjugado pela mais bela pintura que, até hoje, os meus olhos viram por toda a parte”. Não imaginava que os “Painéis” o levariam da “pintura para a História”, pois nunca fora essa a sua “curiosidade inicial”.

Na companhia de José Cortez, Jorge Segurado e Leopoldo de Almeida, fez deslocações ocasionais à Batalha, mas, no ateliê, enquanto permanecia no “tu cá tu lá com a geometria”, servia-lhe de guia do interior da Batalha, “mesmo com os seus erros”, o levantamento de Murphy, realizado no final do século XVIII. Embora declarasse que “a obra-prima da pintura primitiva portuguesa nunca tivesse sido colocada no seu destino”, a Geometria dera-lhe a Luz e a certeza para concluir que “o plano inicial da Capela era do mesmo dia que o plano inicial dos ‘Painéis’”.

Enfrentando o ceticismo e a ironia dos historiadores e dos críticos de arte, proclamava que existia uma unidade tripartida no conjunto: “Unidade de composição de 15 painéis; unidade da parede onde se destinava a obra; e a unidade do retábulo e da moldura dos 15 painéis com o respetivo altar, sem os quais não foi possível reconstituir a unidade do todo da obra”.

Tendo sempre as tábuas como documento, Almada “no todo imprevisível dos 15 painéis” encontrou, com extraordinário júbilo, “duas maiúsculas góticas evidentíssimas” e que identificavam “a principal personagem nos ‘Painéis’”. Descobriu-as nas “faixas vermelhas que, nas dalmáticas, circulam as golas e descem, numa em duas ordens e na outra numa ordem apenas”. E acentuava com deslumbramento: “O pintor simulou um D e um F góticos”, equivalentes a D. Fernando, o Infante Santo.

Relativamente à “sigla”, nunca evitou afirmar que houvera “imperdoável ajeitamento para con­cluir letras que estão ainda hoje evidentes”. “A sigla”, prosseguia Almada, “foi unanimemente o ponto débil dos estudiosos dos ‘Painéis’, os quais ignorantes ou descrentes da Geometria ousaram preconcebê-los.” Para salientar, noutro passo: “Não é numa bota, por mais humilde vassalo que se fosse do Senhor na Idade Média, o lugar devido a iniciais de nomes próprios de gente que, neste caso, seriam, precisamente, nem mais nem menos que o autor ou doadores dos ‘Painéis’. A ser como queriam, estes estudiosos da sigla, chegava-se ao resultado de o doador ter o nome próprio na sua própria bota, o que o doador não admitiria ao autor do retrato, ou o autor ter o nome próprio na bota do doador, o que o autor não consentiria ao doador, nem que lhe custasse a tença. (…) Uma bota não é o lugar indicado para outros sinais que não sejam neutros.”

E comentava: “Faz violência à verdade, exagerando os limites do sítio que ele julga o mais nobre no pé de uma pessoa, o peito do seu pé.” Contudo, avançava com esta revelação: “A sigla está pintada bem por debaixo do tornozelo e sem outra relação com a bota e a sua respetiva personagem, se não a de ficar ali, bem concisa e discreta, precisamente, à altura da vista do bom entendedor, diante do todo da obra reconstruída agora.” Posta de parte a “sigla”, que surpresa ainda permanece, no decurso do restauro, em torno desta indicação de Almada acerca da assinatura do pintor e “à altura da vista do bom entendedor”?

A atribuição da autoria dos “Painéis” a Nuno Gonçalves mereceu sempre a Almada extrema cautela. Refugiava-se na fórmula “‘Painéis’ chamados de Nuno Gonçalves”. Mas nunca hesitou em dizer ou escrever, e com veemente convicção: “Obra intransigentemente portuguesae que prova “a existência de uma escola portuguesa de pintura”. E Portugal, que “arrastava o seu nome na última linha das estatísticas das nações mais subdesenvolvidas em arte”, podia congratular-se por ter tido na História quatro grandes nomes: “Fernão Lopes, autoria dos ‘Painéis’, Pedro Nunes e Luís de Camões.

Deve-se a Lima de Freitas a validade do reconhecimento das teorizações propostas por Almada. Contudo, nos últimos anos, o tema voltou a ser aprofundado por Simão Palmeirim e Pedro Freitas, que interpretaram e clarificaram as passagens das entrevistas mais difíceis de descodificar. O primeiro, para contextualizar as soluções geométricas; o segundo, para apresentar a metodologia específica de Almada Negreiros. A investigação, publicada em “Livro de Problemas de Almada Negreiros”, esclareceu que o trabalho de Almada, tantas vezes menosprezado em vários aspetos, constitui “um todo consistente de cunho marcadamente original e pessoal”.

Daí a oportunidade da exposição no Museu Nacional de Arte Antiga e de outra exposição no Mosteiro da Batalha. A apresentação pública da montagem da composição encontrada no espólio de Almada Negreiros — o retábulo imaginado dos “Painéis”, para a Capela do Fundador no Mosteiro da Batalha — é o rosto visível de largos anos de trabalho, dramaticamente solitário, acintosamente menosprezado e incompreendido pelos seus contemporâneos. Reabilita, a título póstumo, a autenticidade de um dos aspetos da personalidade multifacetada de Almada. As outras homenagens à memória de Almada eram previsíveis, mas esta entre todas não era espectável.

Recorde-se, a propósito, que um ano depois de Almada escrever no “Diário de Lisboa” sobre a integração dos “Painéis” na Batalha, Jaime Cortesão, que, embora retratado por Almada, defendia posições políticas, estéticas e literárias radicalmente antagónicas — era um dos chefes da oposição ao regime de Salazar —, ocupou-se dos “Painéis”, no “Diário de Lisboa”, e também para os enquadrar no Mosteiro da Batalha. O orgulho nacional, os fatores democráticos da formação de Portugal caracterizam a obra de Jaime Cortesão, historiador que se baseia no rigor documental, estabelece encadeamentos lógicos, mas em cuja escrita nunca perdeu os rasgos poéticos nem abandonou, como lhe reconheceu Fernando Pessoa, uma tendência para “embriagar-se de heroísmo”.

Jaime Cortesão considerava “o maior acontecimento da História portuguesa, a batalha de Aljubarrota, alicerce sobre que assenta, definitivamente, a independência da Pátria”. Assim, o Mosteiro da Batalha “é o monumento mais representativo e emotivo da História de Portugal. Desenvolve-se através de três séculos e da maior das nossas dinastias. Ali se memoram os fastos mais vivos da nação: Aljubarrota, a expansão marroquina e o sacrifício do Infante Santo, Descobrimentos e, na parte manuelina do mosteiro, mais que tudo, no portal das Capelas Imperfeitas, o esplendor final da Índia”. Noutro passo observa, com a habitual eloquência: “É, talvez, na Capela do Fundador que nos domina mais a sensação inefável de enraizamento do ser nacional, da sua livre respiração e ampla projeção no mundo”.

Apesar da afirmação categórica da importância da Capela do Fundador, ao percorrer os vários espaços, Jaime Cortesão acentuou: “Bem diferente se nos mostra o claustro de D. Afonso, que lhe fica ao norte, gótico, mais sóbrio, mais robusto, austero e franciscano de aspeto, alteado e projetado no céu pelo segundo e gracioso piso, e sob cujas abóbadas, entre os fustes que sustentam os arcos, nos parece recortar-se o cenário recolhido que melhor poderia enquadrar as graves figuras dos Painéis de São Vicente.” A designação “Painéis de São Vicente”, escrita e publicada em 1959, demonstra que Jaime Cortesão manteve a argumentação da tese de José de Figueiredo, não só em relação à autoria de Nuno Gonçalves mas também quanto à identificação da figura central como São Vicente, padroeiro da cidade de Lisboa […]

Um dos maiores contributos recentes para conhecer a amplitude e o significado da pintura portuguesa dos séculos XV e XVI foi a exposição inaugurada em 2010, no Museu Nacional de Arte Antiga, “Primitivos Portugueses (1450-1550): O Século de Nuno Gonçalves”. Fica na história do museu. A equipa constituída por José Alberto de Carvalho, Joaquim Caetano e Celina Bastos procedeu a uma investigação em estreita conjugação com o sector de Conservação e Restauro, dirigido por Susana Campos, e os Serviços Laboratoriais, chefiados por António Candeias.

O “Ecce Homo” — que diria Almada Negreiros? — que José de Figueiredo e João Couto situaram no século XV e atribuíram a Nuno Gonçalves, a pretexto de afinidades estilísticas, inseriu-se na exposição “O Século de Nuno Gonçalves”, mas foi objeto de reclassificação. O estudo realizado por Lília Esteves e Peter Klein e a investigação de Joaquim Caetano conduziram à integração da obra no terceiro quartel do século XVI. Aliás, existem cópias, ou versões muito próximas, nas reservas do Museu Nacional de Arte Antiga, no Museu de Setúbal/Convento de Jesus e no Museu Rainha D. Leonor, em Beja. O comissário da exposição e diretor do Museu de Arte Antiga, José Alberto de Carvalho, escreveu, em 2010, no prefácio do catálogo: “A exposição não constitui um ponto de chegada, antes um ponto de partida para o aprofundamento de conhecimentos sobre este património dos séculos XV e XVI. Agora sabemos muito melhor o que ainda não sabemos.”

Principiou em maio, e vai prolongar-se por mais dois anos, o restauro dos “Painéis”, de acordo com a mais moderna tecnologia: a intervenção de profissionais experientes, o acompanhamento de dois laboratórios de conservação e restauro portugueses e uma equipa de consultores internacionais. Joaquim Caetano, atual diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, já declarou que, até ao momento, apenas se detetaram “elementos decorativos” na “bota” onde, desde José de Figueiredo e Luciano Freire, se indicava estar a “sigla”, uma das chaves dos enigmas dos “Painéis”. Tudo faz supor que se multipliquem “novas interpretações nos próximos 100 anos”. Mas “é um direito constitucional de cada português ter uma teoria sobre os ‘Painéis de São Vicente’”. A prioridade deste restauro — acrescentou — não é trazer novidades sobre a obra e o autor ou autores, mas “intervir para evitar que a imagem que dela temos seja cada vez mais diferente daquela que Nuno Gonçalves nos deixou”. “Haverá sempre”, concluiu Joaquim Caetano, “perguntas por responder nestes ‘Painéis’.”

“As coisas têm todas vidas próprias. É tudo uma questão de lhes acordar a alma.” Estas palavras de Melquíades, visitador de Macondo e vendedor de prodígios, em “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, explicam situações de confronto e diálogo entre o sagrado e o profano, de proximidade e distância, de leitura explícita e de alusão oculta. Em face dos “Painéis” perduram três valores dominantes: a fidelidade à memória, o deslumbramento do olhar e a interpelação da pintura e do génio do pintor.



Almada Negreiros e os ‘Painéis’. A Polémica Inacabada – por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], E revista do Expresso, 10 de Outubro 2020, pp. 38-45 – com sublinhados nossos.

J.M.M. 

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