“Camilo Pessanha faria hoje 100 anos. Águia de Prata oferecia-lhe
Lisboa” – por António Valdemar, in Diário
de Notícias, 7 Setembro de 1967
Um inédito do poeta que
se deixou devorar pelo ópio para matar as “violentas saudades”
A vida das coisas interiores, o que há dentro da noite, o sonho o sono, tudo que é raiz e cimento
de ausência e não pertence à face do quotidiano, fez-se verbo, tomou-se carne e
habitou em Camilo Pessanha, uma das
mais altas e mais puras vozes da poesia portuguesa do nosso tempo e de todos os
tempos.
Se fosse vivo, Camilo Pessanha faria hoje um século.
Era da mesma idade de António Nobre
e de Raul Brandão. Entre eles não há
qualquer espécie de afinidade. Só o ano de nascimento os aproxima para podermos
dizer que, há cem anos, nasceram em Portugal três indivíduos, de três pontos
diferentes do Pais e que na história da literatura constituem três casos
definidos. Só os ligou, na primeira fase da vida - antes de uma devoção comum e
particularíssima por Verlaine -, o mundo de interrogações, de ansiedades e de
perturbadora descoberta de Antero de Quental.
De todos, porém o que
mais sentiu, o que mais se apaixonou por Antero foi, talvez, António Nobre. A
tal ponto que, em certo passo desse monólogo plangente que o «Só», exclamou: … Quero / ir á ilha rezar sobre a campa de
Antero. E não há dúvida de que realizou esse desejo, em Maio de 1897, num intervalo da sua viagem à América, sendo acompanhado, em S. Miguel, por um
amigo de Coimbra, o açoriano dr. Eugénio Pacheco [1863-1911], figura eminente
de cientista, de intelectual e de cidadão que o próprio Antero muito estimava e
elogiava.
Raul Brandão não sei se
esteve no cemitério do São Joaquim, junto do modesto e abandonado túmulo de
família em que repousam os ossos de Antero. Todavia, na sua viagem aos Açores,
em Maio de 1924, de que nos deixou testemunho nas páginas de «As Ilhas Desconhecidas»,
demorou-se, uns momentos no Campo de São Francisco, rondando a cerca do
Convento da Esperança e parando em frente do banco onde o Poeta, na tarde
opressiva de 11 de Setembro de 1891 foi ao encontro da morte.
Talvez o céu nesse dia apresentasse
as mesmas brumas carregadas a que Antero do Quental era tão sensível e que
Oliveira Martins disse serem a razão daquele acto desesperado. Talvez Raul
Brandão ficasse preso mais uma vez a essa atmosfera agoirenta que perpassa frequentemente
nos seus livros. Talvez entrasse logo em diálogo com o poeta e a sua tragédia.
A própria torre do mosteiro, que é pequena e airosa, pareceu-lhe «enorme e
maciça».
Que teria então escrito
se reparasse que por cima daquele banco onde o poeta se suicidou há uma âncora
na base da qual se lê a palavra esperança?
E se Raul Brandão saísse da sombra em que mergulhara e conseguisse saber que o
mesmo banco está junto do muro do convento cujo terreno para a sua fundação foi
oferecido pelo décimo avó do poeta Fernão de Quental e sua mulher Margarida
de Matos?
[…] Camilo Pessanha
nascido em Coimbra, foi menino e moço pura os Açores. Viveu na vila das Velas,
em São Jorge, uma vez que que o pai ali esteve a exercer funções de magistrado.
Não teve contudo, nessa altura, pois andava entre três e os sete anos, a
curiosidade de ir a São Miguel cumprir a promessa de António Nobre ou fazer o
roteiro de Raul Brandão.
Antero de Quental […] influenciou
toda a geração de Pessanha […] A edição dos «Sonetos Completos» publicados e prefaciados
por Oliveira Martins em 1886, embora seja mais divulgada entre os simbolistas depois
de 1889-1890 por Carlos de Mesquita
[1870-1916; poeta, ficcionista, jornalista, professor na FLUC, natural da ilha
das Flores, considerado um importante vulto do simbolismo coimbrão; morre,
apenas com 46 anos, em Coimbra] que insistia em colocar [Giacomo] Leopardi e Antero
como pré-simbolistas, chegou primeiro ao conhecimento de Camilo Pessanha. E
esta circunstância verifica-se através de um companheiro a quem ficou indissoluvelmente
ligado a vida inteira - Alberto Osório de Castro.
Alberto Osório de
Castro, com efeito não só nutria especial admiração por Antero como, também, se
correspondeu com ele. Ao próprio Antero enviava - lê-se numa das cartas do
autor dos Sonetos -, à medida que ia
saindo o jornal O Novo Tempo de Mangualde,
de que era redactor e proprietário e onde Camilo
Pessanha deu por exemplo à estampa as poesias «Interrogação» e «Crepuscular»
e o soneto «Estátua».
A propósito do soneto é
de perguntar: não teria sido devido à leitura de Antero que preferiu Camilo
Pessanha organizar naquela forma a quase totalidade da sua obra? E a propósito
de Antero, não é também de perguntar: os
sonetos na floresta dos sonhos dia a dia e para além do universo luminoso não
teriam contribuído em grande parte e juntamente com diversas alusões do
prefácio de Oliveira Martins, que mais tarde o meu querido Mestre António Sérgio apreciou no penetrante
ensaio «Um Problema Anteriano», para uma aproximação de Camilo Pessanha com o
Oriente?
Pessanha e o Oriente é
com certeza o tema de maior importância a estudar. Por enquanto, na sua vida e
obra, João Gaspar Simões já se pronunciou sobre o assunto e com a autoridade
que o caracteriza, na «História da Poesia Portuguesa do Século Vinte». Ester do Lemos, em «Camilo Pessanha e a
Clepsidra» teve outros objectivos. Isto não se verificou, porém com Dias Miguel ao carrear subsídios biográficos,
muitos deles em primeira mão, e sobretudo com Danilo Barreiros que se tem ocupado assiduamente, de Camilo
Pessanha em trabalhos de notável interesse.
Camilo Pessanha tem sido
citado como paradigma de assimilação dos valores orientais, consequência
directa daquela interpretação que Gilberto Freyre - discípulo do prof. Franz
Boas da Universidade de Columbia -, nos seus ensaios antropológicos de
historiador turista, mostra o português, qualquer que ele seja e de qualquer
época, exemplo flagrante de absoluta comunicação humano-telúrica em todos os continentes
e oceanos. Aliás já se pretendeu demonstrar o mesmo em relação a Camões, o Camões
das endeixas de Bárbara Escrava, do soneto à Dinamene e de certos passos dos «Lusíadas».
É claro que Pessanha neste aspecto nunca se assemelha ao António Feijó do
«Cancioneiro Chinês» ou a Eugénio de Castro que nunca saiu de Coimbra, a não
ser para ir a Paris e Bruxelas e que bebeu o orientalismo que denuncia em
diversos poemas através dos Goncourts e de Flaubert.
Trinta anos - descontado
o tempo das estadias na metrópole - permaneceu Camilo Pessanha no Oriente. Foi
em Macau professor do liceu – um dos seus fundadores com Wenceslau de Morais —,
advogado e conservador do Registo Predial.
Metade da sua vida decorreu naquela terra longínqua, em contacto com os seus usos, costumes e tradições. As
suas economias gastou-as em grande parte adquirindo peças de arte chinesa que ofereceu
ao Estado e a que José de Figueiredo não soube reconhecer o valor, antes pelo
contrário, mantendo-as em caixotes por abrir, anos sem fim (Resultado edificante,
Camilo Pessanha, antes da sua morte, deu outro destino a muitas outras peças
que também possuía e que tencionava mandar para a Metrópole, para o Museu de Arte
Antiga, se José de Figueiredo não tivesse tão lamentável e acintoso procedimento.
Alfredo Guisado nos anos vinte sobre tão insólita atitude e manifesta incúria
ergueu a voz no Parlamento em enérgico protesto).
Características […] da
civilização chinesa foram, ainda, analisadas por Camilo Pessanha, nomeadamente,
a maneira do ser do povo, a literatura e a estética. Interesses dos chineses
que punham em jogo a sua própria liberdade individual - Camilo Pessanha tomou a
peito, como jurista em muitas causas, algumas das quais célebres, defendendo
questões difíceis e com uma solicitude que transpôs as fronteiras de uma vulgar
actividade profissional. A recolha de alegações da sua lavra nos arquivos dos
tribunais de Macau torna-se indispensável para mais profunda apreensão, não só
do jurisconsulto, sua argúcia e proficiência, como também da sua atitude perante
a problemática oriental.
Resta-nos o poeta, o
poeta e Macau, o poeta que muitos consideram integrado nas raízes da China. E
dele, evidentemente, a «Viola Chinesa»: Ao
longo da viola morosa / vai adormecendo a parlenda // … Sem que o meu coração
se prenda. Parece-me que além destes, nenhuns outros versos têm o apelo de motivações
orientais. Saliente-se, ainda, que a generalidade da sua obra não é realizada
em Macau. A não explicação deste pormenor representa um dos vários impedimentos
para um estudo completo de Camilo Pessanha.
A «Clepsidra», na
primeira edição, enferma de várias lacunas que infelizmente, se repetiram na
segunda edição, preparada por João de Castro Osório. Foram eliminados os locais
e as datas dos sonetos e poesias - particularidade a que não era indiferente
Camilo Pessanha. O nome dos amigos a quem ofereceu aqueles versos também foi
suprimido. Por descuido? Por desconhecer a sua enorme importância? Por ignorar
o facto? Por se julgar desnecessário?
Se isto acontece nas
duas edições da «Clepsidra» é igualmente patente no livro «China» onde se
baniram as dedicatórias das traduções que fez das «Oito Elegias Chinesas» […]
[…] Se o poeta na sua
obra não é um produto de Macau, e vejamos que a «Clepsidra» tem quarenta composições
– uma sobre o Oriente, «Viola Chinesa» e nove com a indicação de serem ali
escritas, Camilo Pessanha não se identificou como ser humano com a vida e um domicílio
de trinta anos em Macau.
Manteve-se, é certo,
vivendo com diversas mulheres a exemplo de muitos chineses. Antes de morrer tinha
apenas uma companheira Kuoc Ngan Yen, Marta Yeng pelo baptismo, e irmã do
próprio filho de Camilo Pessanha - João Manuel de Almeida Pessanha [NOTA: JMAP
(1896-1941); era filho de Camilo e da concubina Lei Ngoi Long, comprada a um
corretor]. [Kuoc]
Ngan Yen, a famosa «Águia de Prata» como lhe chamava o poeta, foi assinalada na
dedicatória de uma fotografia dessa pequena chinesa oferecida a Carlos Amaro
nos seguintes termos: «Para que através de algum seu instante de nostalgia do
desconhecido possa perpassar em uma alucinação olfática, a remota evocação do
meu país de exílio». Camilo Pessanha nesse país de exílio deixou-se fotografar
— como Eça de Queirós em Paris — vestido de mandarim. Usou e abusou do ópio como
é vulgar nos habitantes de Macau.
Revelou este vício
Alberto Osório de Castro, primeiro numa entrevista concedida à «Capital» no último
trimestre de 1915, depois num artigo na revista «Atlântico» em 1942 [31 de
Outubro]; revelou-o António de Albuquerque (o autor do «Marquês da Bacalhoa») numa
crónica publicada no «Diário de Lisboa» em 1926; revelou-o ainda Sebastião
Costa na «Seara Nova» de Abril de 1926. E, quando o Leal Senado de Macau, a 3
de Março de 1926 rendeu homenagem à memória de Camilo Pessanha, ficou exarado
na acta este depoimento: «Clepsidra» poema que foi com certeza idealizado num
daqueles momentos de êxtase em que o espírito de Pessanha se evolava às mais
belas regiões do sonho envolvido pelo fumo do veneno destilado das rubras
papoilas».
Que a «Clepsidra»
resultasse no total do ópio - pelo que já expusemos sobre o número de produções
feitas em Macau - não se pode aceitar. É uma fantasia, apesar de ser de alguém
que fora da sua privança. Mas seria fantasia o que disseram Alberto Osório de
Castro, António de Albuquerque, Sebastião Costa, e o então vice-presidente do
Leal Senado? Félix [Borges Medeiros
da] Horta [1889-1961; natural de
Ponta delgada; republicano, carbonário, poeta, advogado; seguiu a carreira
diplomática exercendo funções consulares na China, no Brasil, no ex-Congo Belga
e em Inglaterra; foi director, proprietário e editor do jornal académico de
Coimbra, Gente Nova (1912-1913); colaborou em diversos periódicos, entre
os quais O Combate de Macau] muitas vezes contou-me que era verdade.
Repetiu-mo também o cardeal D. José da
Costa Nunes [1880-1976] que foi, cerca de 25 anos, companheiro de Pessanha.
Para que não restem dúvidas
podemos hoje dia do centenário do poeta, publicar um trecho de uma carta sua,
dirigida a Henrique Trindade Coelho [datada de 8 de Novembro de 1916] e
obsequiosamente cedida por sua viúva, srª D. Maria Cristina Trindade Coelho. Camilo
Pessanha, após revelações extraordinárias inéditas de capital importância para
o seu conhecimento e interpretação acentua:
“… de regresso a casa,
deitei-me segundo o costume ao comprido - perinde
ac cadaver - a remirar-me no bom acabamento da obra feita (refere-se C. P.
a umas alegações para o tribunal). Naturalmente, enquanto Águia de Prata (em
breve mandarei ao sr. Trindade Coelho um retrato da pobre bicheza) ia
preparando e dando-me a aspirar o inefável tóxico consolador (li há poucos
dias, pela primeira vez, o Macbeth, de que encontrei um exemplar nos tintins
– a Feira da Ladra d’aqui: the innocent sleep… sore labor’s bath… balm of
hurt minds) produzia-se pouco a pouco em mim esse delírio lúcido,
característico, dizem, da intoxicação pelos hipnóticos, em que, sem se perder a
consciência da situação em que se está, se evoca no espírito, com absoluta
fidelidade e perfeita nitidez, uma outra situação, em outro lugar ou em outro
tempo, como se vivessem simultaneamente duas vidas, muito distantes uma da
outra.
A imaginação, já se vê,
transportou-me para aí, para a agitação estéril desse meio lisboeta, para esse
tumulto, agressivo e vão, por entre o qual andei a ser amachucado e sovado
durante cinco angustiosos meses. Vieram todas essas figuras delirantes, de
segunda plana, que eu tive melhor ocasião de conhecer: o Braga da peça, os
olhos, aflitivos de demência, do Américo de Oliveira, o Rocha corticeiro, o
Burnay dos camochos, o caricaturista, o poeta Antunes Belo, o judicioso Solano;
e mais a formiga preta, e a formiga-branca, e os elementos civis, e os
redentores da Ilíria, e os Adelaides, e os da Nutricia e a apoteose patriótica
do Dominó, e o [paneleiro] do Diabo a quatro … “.
Tão valioso documento
leva-nos a várias conclusões. Camilo Pessanha não fazia parte dos clubes de opiómanos
que se reuniam em Macau para enquanto fumavam se entregarem aos caprichos do sonho.
Era um opiómano solitário, se bem que não o escondesse quando os amigos o
procuravam em casa.
Através do heterónimo Álvaro
de Campos, Fernando Pessoa num dos seus mais belos poemas e como quase todos
processados no crânio à margem de uma experiência vivida, diz: É antes do ópio que a minha alma é doente /
sentir a vida convalesce estiola / e eu vou buscar o ópio que consola. / um
oriente ao oriente do Oriente. Camilo Pessanha mediante uma experiência
vivida na mais perturbadora e inveterada habituação recorria à droga para encontrar
vivências opostas. Poderia, é certo, buscar no ópio o sonho, o sono, a
hibernação, o estado de apatia de ociosidade, de interioridade difusa para
conseguir esquecer as crispações de um espirito e de uma saúde atormentada e
débil. Todavia, como ele declara a Trindade Coelho, refugiou-se no ópio e
surgiu-lhe e ganhou presença a Pátria ausente, aquela Pátria que recorda no
limiar da «Clepsidra».
Eu
vi a luz em um país perdido / A minha alma é languida e inerme / Oh! Quem
pudesse deslizar sem ruído! / No Chão sumir-se, como faz um verme.
Um europeu em Macau um
Oriental na Metrópole deslumbrando os amigos das tertúlias do Martinho, do
Royal e do Londres com descrições surpreendentes de bazares, bonzos amarelos, […]
pagodes e uma imensa e misteriosa vida humana. As próprias elegias chinesas que
traduziu com eficiente colaboração de José Vicente Jorge, seu dedicadíssimo amigo
abordam na maioria a saudade, o exílio, o regresso. Aí se lêem expressões como
estas: «embargam-no as saudades violentas», «desterrado da pátria e sem notícias
dela / para essas bandas volvo de contínuo os olhos», as «flores soltas me
fizessem cortejo, à despedida no regresso à pátria», «dói-me ao recordar vozes
amigas», «país de exílio», «o alarme pra o regresso». Não houve bem entendido adulteração
do texto original para acentuar emoções pessoais. Camilo Pessanha teve mas foi
o cuidado de seleccionar elegias com as quais se identificava, que exprimiam
iguais estados de alma e de vida.
Pensando no «regresso à Pátria», «desterrado da pátria e sem notícias dela / para essas bandas volvo de contínuo os olhos», assim consumiu a vida essa estranha personalidade. E tais eram as saudades - «violentas saudades» - que, para se não deixar esmagar por elas, foi-se a pouco e pouco devorando pelo ópio num acto de entrega total e alucinada. E se a saudade da pátria não o matou deixou-se matar por ela.
“Camilo Pessanha faria hoje 100 anos. Águia de Prata oferecia-lhe Lisboa” – por António Valdemar, in Diário de Notícias, 7 Setembro de 1967 - com sublinhados e notas nossas.
J.M.M.
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