terça-feira, 24 de novembro de 2020

A PIDE, OS JORNAIS E FERNANDO NAMORA - POR PAULO MARQUES DA SILVA


Se a Censura era uma realidade, e os jornais vinham tão “limpos” que parecia que vinham “de um País onde não acontecia nada”, como se referia na época com vincada ironia, complementada com expressões como aquela que dizia “se queres saber o que se passa em Portugal, compra o Le Monde”, porque estão então os processos da PIDE inundados de recortes de notícias de jornais publicadas? No caso do processo principal de Fernando Namora verificamos que os documentos que estão em maior número são mesmo os recortes ou cópias de páginas de jornais. Mas, o caso de Namora não é único, bem longe disso.

É claro que todos os elementos serviam para compilar um quanto mais robusto processo, melhor. Mas, pergunta-se: mesmo com notícias ditas “inocentes”, que já haviam passado pelo crivo da Censura? A resposta é sim!

Após a análise dos processos da PIDE de Namora verifiquei que, muitas vezes, as notícias publicadas nos jornais pareciam resultar no principiar de diligências ou investigações por parte daquela Polícia. Vejamos alguns exemplos.

O jornal República, de 12 de Junho de 1951, anunciava a exibição no cinema Tivoli do filme Les Visiteurs du Soir, de Marcel Carné, no âmbito das denominadas “terças- feiras clássicas do Tivoli”, com comentário inicial de Fernando Namora. E lá esteve no cinema Tivoli um agente da PIDE que produziu, no dia seguinte, o seu relatório sobre a intervenção do escritor. 



Já o Diário de Lisboa, de 17 de Março de 1957, destacava um encontro de escritores, realizado na Casa do Alentejo, com a presença de cerca de 60 escritores portugueses, para debater assuntos relacionados com a actividade literária. A notícia terminava com a indicação de que se passaria a realizar, entre os escritores nacionais, uma reunião mensal a ocorrer no primeiro Domingo de cada mês. Quando, no dia 28 de Abril, se realiza novo encontro dos escritores, já será sob a vigilância do agente da PIDEFernando Moutinho, cujo relatório também podemos apreciar no processo de Fernando NamoraTambém, muito provavelmente, a notícia publicada na imprensa diária nacional, sobre um banquete de homenagem a Fernando Namora, por este ter conquistado o prémio Ricardo Malheiros, atribuído pela Academia das Ciências, a realizar no Salão de Chá Imperium, no dia 19 de Dezembro de 1953, terá originado um acompanhamento muito próximo do evento por parte da PIDE, com um primeiro relatório sobre os preparativos do banquete, e a presença no referido jantar de um agente da PIDE, cujo relatório, com seis páginas, sobre quem esteve presente e o que ali se disse, foi elaborado nos dias seguintes. Mas, sem qualquer sombra de dúvida, é a partir de um apontamento noticioso veiculado pelo Diário de Notícias, de 5 de Fevereiro de 1957, que publica uma notícia com origem na Rádio Moscovo, anunciando a participação de obras de escritores portugueses, entre os quais Fernando Namora, numa exposição de livros em Moscovo que, dois dias depois, os serviços de informação americanos, referindo expressamente aquela notícia de jornal, solicitam à PIDE elementos sobre os escritores mencionados na notícia, sobre quem confessam nada saber: Fernando Namora, Manuel Mendes, Carlos de Oliveira e António José Saraiva.



Concluindo, e talvez paradoxalmente, se a Censura cortava cerce, a PIDE ainda conseguia, após o viso daquela, desenvolver investigações e vigilâncias a partir da leitura da imprensa.

PAULO MARQUES DA SILVA

[NOTA  IMPORTANTE: 

Este artigo foi publicado originalmente no jornal Terras de Sicó, 2ª Quinzena de Novembro de 2020Ano 7, nº 139, p. 16, com a epígrafe - Pequenas histórias da PIDE e da Censura.

Itálico, negritos e tratamento da imagem da responsabilidade de A.A.B.M.]

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