Volto ao processo da PIDE de Fernando Namora, mais cedo do que previsto, com um único intuito: homenagear Isabel Freitas, que nos últimos anos dirigiu a Casa Museu Fernando Namora, em Condeixa. Isabel Freitas deixou-me gravado na minha memória o seu sorriso aberto e franco e a sua simpatia permanente, nos vários contactos que tivemos nos últimos anos, em especial, a partir da preparação do centenário de Fernando Namora. Partiu cedo demais para a viagem que todos havemos de fazer.
No processo de Fernando Namora
saliento que, logo após os recortes e as cópias de jornais, os documentos que
ali surgem em maior quantidade são as cartas interceptadas pela PIDE.
A intercepção postal
estava integrada no sector da Informação da PIDE, conjuntamente com a escuta
telefónica, os ficheiros, a vigilância directa e os informadores, tendo sido
aquela, como sabemos, uma prática largamente utilizada.
Durante algum tempo, os
CTT colaboraram com a PIDE na violação da correspondência, recorrendo a alguns
dos seus funcionários, denominados os “catadores” ou “farejadores”. Na posse de
listas de moradas dos suspeitos, fornecidas pela Polícia, os carteiros
separavam a correspondência, que depois era remetida para a PIDE.
Posteriormente, segundo a
historiadora Irene Pimentel, devido a queixas sobre desvio de dinheiro de
emigrantes, entre outras situações, a tarefa dos “catadores” ou “farejadores”
terminou. A PIDE passou a tratar directamente desse serviço recorrendo a
agentes seus, na Estação Central dos Correios, no Terreiro do Paço.
Este processo decorria de
forma simples: a correspondência suspeita era aberta, lida, fotocopiada e
colocada de novo no envelope, que era fechado e devolvido aos CTT, seguindo
depois o seu caminho. Outras vezes, o original era interceptado e o
destinatário nunca o recebia. Os elementos recolhidos eram depois analisados,
sendo a carta posteriormente arquivada no processo do visado.
Ora, a partir de certa
altura, os homens ligados à oposição com problemas com o regime, sabiam que a
sua correspondência era vigiada e tentavam minimizar o problema, quer não
mencionando nelas nada que não se quisesse que a PIDE soubesse, quer utilizando
outras estratégias. Vamos verificar um desses subterfúgios, através de um
exemplo de uma carta escrita por Miguel Urbano Tavares Rodrigues a Fernando
Namora, a partir de S. Paulo, no Brasil, em 17 de Fevereiro de 1968.
Miguel encontrava-se exilado no Brasil e o seu irmão, Urbano Tavares Rodrigues, estava preso há cerca de um mês, aqui em Portugal. E, na verdade, esta carta de Miguel dirigia-se à sua cunhada, a mulher de Urbano, Maria Judith. Mas, como Miguel sabia que a correspondência da cunhada estava a ser vigiada, endereçou a carta para Fernando Namora, pedindo-lhe depois que este entregasse a carta e documentação anexa à mulher de Urbano, explicando-se na carta:
“Para escrever a minha cunhada tenho de recorrer de cada vez a um amigo, pois a correspondência que lhe é endereçada está sob vigilância”.
No final da carta, Miguel Urbano indicava, numa nota manuscrita em post scriptum, na margem esquerda, a forma como devia ser contactado no Brasil, caso Namora assim o entendesse, explicando:
“Para
me escrever peça um endereço à minha cunhada. Em meu nome não convém fazê-lo”.
Em suma, o processo era
mais ou menos o mesmo. Endereçar a carta para uma morada de alguém conhecido
que, supostamente, não estivesse debaixo do olhar das autoridades, e que depois
fizesse chegar a carta ao verdadeiro destinatário. O que se tornava necessário
era acertar neste critério de análise. E, neste caso concreto, Miguel não
acertou, pois a correspondência de Namora também era vigiada, como podemos verificar
pela elevada quantidade de cartas existentes no seu processo. E, esta carta a
que nos referimos, é mais uma dessas que ficou fotocopiada nos arquivos da
PIDE, onde, muitos anos depois, a fomos encontrar.
Publicado originalmente na edição em papel do Jornal Terras de Sicó
Paulo Marques da Silva
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