terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

A VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA PELA PIDE - EPISÓDIO

Fig. 1 - Miguel Urbano Rodrigues (1925-2017)

Volto ao processo da PIDE de Fernando Namora, mais cedo do que previsto, com um único intuito: homenagear Isabel Freitas, que nos últimos anos dirigiu a Casa Museu Fernando Namora, em Condeixa. Isabel Freitas deixou-me gravado na minha memória o seu sorriso aberto e franco e a sua simpatia permanente, nos vários contactos que tivemos nos últimos anos, em especial, a partir da preparação do centenário de Fernando Namora. Partiu cedo demais para a viagem que todos havemos de fazer. 

No processo de Fernando Namora saliento que, logo após os recortes e as cópias de jornais, os documentos que ali surgem em maior quantidade são as cartas interceptadas pela PIDE.

A intercepção postal estava integrada no sector da Informação da PIDE, conjuntamente com a escuta telefónica, os ficheiros, a vigilância directa e os informadores, tendo sido aquela, como sabemos, uma prática largamente utilizada.

Durante algum tempo, os CTT colaboraram com a PIDE na violação da correspondência, recorrendo a alguns dos seus funcionários, denominados os “catadores” ou “farejadores”. Na posse de listas de moradas dos suspeitos, fornecidas pela Polícia, os carteiros separavam a correspondência, que depois era remetida para a PIDE.

Posteriormente, segundo a historiadora Irene Pimentel, devido a queixas sobre desvio de dinheiro de emigrantes, entre outras situações, a tarefa dos “catadores” ou “farejadores” terminou. A PIDE passou a tratar directamente desse serviço recorrendo a agentes seus, na Estação Central dos Correios, no Terreiro do Paço.

Este processo decorria de forma simples: a correspondência suspeita era aberta, lida, fotocopiada e colocada de novo no envelope, que era fechado e devolvido aos CTT, seguindo depois o seu caminho. Outras vezes, o original era interceptado e o destinatário nunca o recebia. Os elementos recolhidos eram depois analisados, sendo a carta posteriormente arquivada no processo do visado.

Ora, a partir de certa altura, os homens ligados à oposição com problemas com o regime, sabiam que a sua correspondência era vigiada e tentavam minimizar o problema, quer não mencionando nelas nada que não se quisesse que a PIDE soubesse, quer utilizando outras estratégias. Vamos verificar um desses subterfúgios, através de um exemplo de uma carta escrita por Miguel Urbano Tavares Rodrigues a Fernando Namora, a partir de S. Paulo, no Brasil, em 17 de Fevereiro de 1968.

Fig.2 - Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013) e Maria Judite de Carvalho (1921-1998)

Miguel encontrava-se exilado no Brasil e o seu irmão, Urbano Tavares Rodrigues, estava preso há cerca de um mês, aqui em Portugal. E, na verdade, esta carta de Miguel dirigia-se à sua cunhada, a mulher de Urbano, Maria Judith. Mas, como Miguel sabia que a correspondência da cunhada estava a ser vigiada, endereçou a carta para Fernando Namora, pedindo-lhe depois que este entregasse a carta e documentação anexa à mulher de Urbano, explicando-se na carta:

“Para escrever a minha cunhada tenho de recorrer de cada vez a um amigo, pois a correspondência que lhe é endereçada está sob vigilância”.

No final da carta, Miguel Urbano indicava, numa nota manuscrita em post scriptum, na margem esquerda, a forma como devia ser contactado no Brasil, caso Namora assim o entendesse, explicando:

“Para me escrever peça um endereço à minha cunhada. Em meu nome não convém fazê-lo”.

 

Fig. 3 - Fernando Namora (1919-1989)

Em suma, o processo era mais ou menos o mesmo. Endereçar a carta para uma morada de alguém conhecido que, supostamente, não estivesse debaixo do olhar das autoridades, e que depois fizesse chegar a carta ao verdadeiro destinatário. O que se tornava necessário era acertar neste critério de análise. E, neste caso concreto, Miguel não acertou, pois a correspondência de Namora também era vigiada, como podemos verificar pela elevada quantidade de cartas existentes no seu processo. E, esta carta a que nos referimos, é mais uma dessas que ficou fotocopiada nos arquivos da PIDE, onde, muitos anos depois, a fomos encontrar.

Publicado originalmente na edição em papel do Jornal Terras de Sicó

Paulo Marques da Silva

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