As “oito luas” de Gomes leal nunca foram sepultadas – por António Valdemar, in Expresso
Poeta de surpreendentes
ruturas e inovações, exerceu influência na sua geração e projetou-se no século
XX ao ser reconhecido pelos movimentos de “A Águia”, do “Orpheu”, da
“Presença”, dos surrealistas e outros representantes das atuais tendências
literárias
1921 foi
um dos anos horríveis da república. Vivia-se num sobressalto contínuo.
Multiplicavam-se as guerrilhas partidárias, as revoltas militares, as
reivindicações sindicais. Lisboa concentrava o auge do tumulto que se
repercutia através do país. A situação atingiu o rubro com a “noite
sangrenta”, o 19 de outubro, os assassínios do primeiro-ministro, do
fundador da república e outras altas personalidades civis e militares.
Mercenários contratados, por adversários políticos, foram buscá-los a casa,
introduzidos numa “camioneta-fantasma” para serem abatidos a tiro. A sangue
frio.
O poeta Gomes Leal
faleceu a 29 de janeiro. Quase todos os jornais encontravam-se em greve. Não
havia as condições que permitiram, na 1ª República, os funerais apoteóticos de Cândido dos Reis, Miguel Bombarda, Sidónio
Pais, Guerra Junqueiro e Teófilo Braga, os três últimos com
honras de Panteão Nacional, ainda nos Jerónimos.
Gomes
Leal caíra em desgraça. Pessoal, política e social. Apesar de tudo
isto, prestaram-lhe homenagem o chefe de Estado, António José de Almeida, e compareceram, no cemitério do Alto de
São João, Henrique Lopes de Mendonça,
presidente da Academia das Ciências, outros poetas e escritores, muitos
estudantes universitários. Fernando
Pessoa consagrou-o em versos emblemáticos: “Seus três anéis irreversíveis
são/ a desgraça, a tristeza, a solidão./ Oito luas fatais fitam no espaço. (…)
Inúteis oito luas da loucura/ quando a cintura tríplice denota/ solidão e
desgraça e amargura!/ Mas da noite sem fim um rastro brota,/ vestígios de
maligna formosura:/ é a Lua além de Deus, álgida e ignota.”
Em maio de 1910, morrera a mãe com quem sempre vivera. Gomes Leal estava com 62 anos. Os
efeitos devastadores do alcoolismo aceleraram a progressiva desagregação física
e intelectual, enquanto resvalava na mais deplorável miséria. Nesta situação de
angústia e desespero, Gomes Leal — o
poeta com relâmpagos satânicos, mas com um cristianismo afetivo que se
manifestara em “História de Jesus” (1883), um dos seus livros de maior êxito —
é levado a converter-se ao catolicismo. Repetia-se a situação que Roger Martin du Gard analisou no livro
“O Drama Jean Barrois”, Premio Nobel da Literatura em 1913.
A conversão de Gomes
Leal transpôs o domínio da privacidade. Ficou devassada na “Carta
aos Sacerdotes Christãos”. Entre outras afirmações que deram brado, avulta
esta confissão perentória: “Solenemente declaro que me retrato, repilo, abjuro
de todos os escritos e poemas em que se mantém matéria contrária aos ideais que
atualmente professo, e que foram de escândalo para Cristo e a sua Igreja.”
Foi a 2 de agosto de 1910, no jornal católico e monárquico “A
Liberdade”, órgão do Partido Nacionalista que relatou a conversão de Gomes
Leal. Pouco antes Gomes Leal mantivera uma coluna de opinião n’ “O Mundo”, a
tribuna oficial do Partido Republicano. A 5 de outubro implantou-se o regime
que tivera nele um dos mais inflamados propagandistas, mas que, na hora da
vitória, o encontrou no outro lado da barricada
MEMÓRIA NA CIDADE
Numa época de exacerbado anticlericalismo, a conversão de Gomes Leal e o seu aproveitamento deram
lugar a muitas especulações e afastaram-no de antigos correligionários. Pouco
depois também era abandonado por católicos e monárquicos. Ficou só. Pobre,
desamparado, sapatos rotos, calças esburacadas, fato velho e cheio de nódoas. Assobiado
e apedrejado nas ruas, pelos garotos e pelos vadios, sem ter onde comer e
dormir, passava as noites nos bancos do Rossio e da Avenida.
Transformara-se na imagem que visionara, em 1880, em ‘Fome de
Camões’ ao reconstituir os passos do poeta, a caminhar “altas horas, ao frio
das nortadas,/ é Camões que de fome se definha/ nas ruas de Lisboa
abandonadas.” (…) “Triste, velho, sem-abrigo,/ faminto, abandonado e
vagabundo,/ tenta esmolar também pelas esquinas.” (…) “A mão recusa-se a suster
o passo/ a fome roí-o, curva-o o cansaço./ Cospem-lhe a neve, a chuva os
aguaceiros./ Ó calçadas fatais! nas enxurradas/ vai muito fel de lágrimas
choradas.”
Perante o farrapo humano e intelectual a que Gomes Leal chegara, Teixeira de Pascoaes ofereceu-lhe a sua
casa em Amarante. Não quis sair de Lisboa. Jaime
Cortesão, ao tempo deputado, fez um apelo veemente ao Parlamento para que
lhe pagassem uma pensão de sobrevivência. Graças à solidariedade de um dos
poucos amigos, o deputado socialista Ladislau
Batalha, foi recolhido em sua casa onde viria a falecer. Fez na semana
passada cem anos.
A memória de Gomes Leal
revive em Lisboa, numa rua da cidade, num pequeno jardim e ainda num monumento
no cemitério do Alto de São João, logo à entrada, no centro da alameda
principal. Inaugurado em dezembro de 1925 ficou a dever-se ao poeta Alfredo Guisado, quando pertencia à
Câmara de Lisboa, à última vereação da 1ª República. Em vez do retrato físico
de Gomes Leal o escultor Francisco dos
Santos (1878-1930), um dos autores do busto da República e da estátua do
Marques de Pombal, optou pela figuração simbólica. Incorporou Gomes Leal na
representação mitológica de “Orpheu”.
AS
DUAS FACES
Nas últimas décadas do século XIX, Gomes Leal arrebatou Lisboa — e Lisboa era o país — com torrentes de sátira feroz e de harmonias líricas. Em 1872, a revista “Espectro de Juvenal”, que fundou com Magalhães Lima, incluía no estatuto editorial: “Juvenal é para nós o símbolo da consciência indignada. Nós somos a indignação. Nós somos incorrigíveis.” Esta declaração programática — que se acentuará em publicações de audiência diária como, por exemplo, o jornal “O Século” — vai marcar toda uma trajetória.
Desafiou o poder e os poderosos em situações pontuais com protestos
incendiários que o levaram aos tribunais e às prisões. Batia-se por causas
políticas e objetivos sociais. O escândalo suscitado pelo Tratado com a
Inglaterra para a venda de Moçambique foi um dos momentos retumbantes de
intervenção pública, no poema ‘A Traição — Autópsia de um Rei’. Não
poupou o rei D. Luís, nem os ministros envolvidos neste processo.
O mesmo sucedeu ao interpelar o jornalista António Rodrigues Sampaio que, ao ascender a membro do Governo e a
primeiro-ministro, era acusado de perseguir a imprensa, esquecendo o seu
passado revolucionário: “Eis-me, em frente de ti velho urso na caverna (…)
perguntando-te, ó Velho — onde está o Direito?/ o que fizeste ao Povo, á
Consciência ao Brio?/ Onde está o pudor, rude ancião sombrio?/ Quem és? Quem
és? Quem és — velho cheio de fel?/ Onde está, ó Caim o teu irmão Abel?/Quem és?
Quem és? Ó Gloria! Ó nome hoje aviltado!/ Tu foste a alma do povo, hoje um
renegado.”
Mas Gomes Leal teve,
desde sempre, a consciência da precariedade destas intervenções, ao advertir
“um panfletário é uma bexiga inchada/ de cólera, de fel, de inveja e dinamite/
que um dia explodirá assim que o fogo excite/ fazendo rebentar o mundo em
estilhaços”.
A amplitude do seu génio literário — ele próprio o sabia — não
se limitava à cólera dos panfletos, à ferocidade de gargalhadas nas implacáveis
anotações do quotidiano. Tem outra face, num outro universo que construiu em
vários ciclos e que mergulha nas vulnerabilidades da natureza humana. Atingiu
em ‘Mulher de Luto’ e ‘Serenadas de Hilario no Céu’ a
interioridade dos prantos sem resposta, que se deparam nas redondilhas de Camões, ‘Sobolos Rios’; em ‘Elegia
do Amor’, de Teixeira de Pascoaes;
e na invocação à ‘Noite’, de Álvaro
de Campos.
REIVINDICAÇÃO GEOGRÁFICA
Uma das referências da obra de Gomes Leal situa-se em 1875 ao publicar “Claridades do Sul”.
Coincidiu com a versão definitiva de “Odes Modernas”, de Antero de Quental, e a primeira versão
de “O Crime do Padre Amaro”, de Eça
de Queiroz. Gomes Leal tinha 27
anos e logo se afirmou um dos maiores poetas, em face dos seus contemporâneos.
Teve uma celebridade precoce.
A grande viragem na poesia verificara-se
com Antero, a partir de 1864, em
“Odes Modernas”. Introduzia uma nova linguagem que se afastava das confissões
ultrarromânticas, dos madrigais empolgantes, dos sentimentalismos bucólicos,
para integrar a poesia nos ideais humanitários da revolução, no projeto do
socialismo e na campanha para instaurar o Partido Republicano.
O aprofundamento literário, filosófico político e social vai
desenvolver-se, na polémica “Bom Senso e Bom Gosto”, liderada por Antero contra António Feliciano de Castilho e seus epígonos. Acompanhou Gomes Leal este movimento e o debate
ideológico desencadeado com a realização, em 1871, das Conferências do Casino.
Obra de inovação e de rutura, “Claridades do Sul”
assinala, no próprio título, uma reivindicação geográfica, em face dos outros
centros literários: de Coimbra das centenárias tradições culturais repartidas
entre a Universidade e o Mondego; das névoas e brumas do Porto e de outros
locais do norte, por vezes, em intercâmbio com a Galiza.
Lisboa, muito antes de Orpheu (1915), além de capital política,
desde tempos remotos, possui vida cultural autónoma. Estabelece a transição com
áreas de forte significação cultural: o Sado e a Arrábida, definidos na
geografia de Orlando Ribeiro e
reintegrados na literatura por Frei
Agostinho da Cruz, de Sebastião da
Gama e João Bénard da Costa; a
planície do Alentejo, que revive nas obras de Ficalho, de Brito Camacho
e de Manuel da Fonseca; e o Algarve,
da serra e do litoral, entre o Atlântico e o Mediterrâneo, recriado por Teixeira Gomes, João Lúcio e Ramos Rosa.
Num poema sobre Lisboa, Gomes
Leal exalta a luz, a cor, os aromas, a singularidade das colinas e a
configuração dos bairros, enquanto se detém nos anacronismos e contrastes das
populações: “A cidade é beata: e às lúcidas estrelas,/ o vício à noite, sai aos
becos e às ruelas,/ sorrindo, a perseguir burgueses e estrangeiros.../ E à
fosca e dúbia luz dos baços candeeiros,/ — em bairros imorais, onde se dão
facadas —/ rola, às vezes, o vinho e o sangue nas calçadas.”(…) “As mulheres
são gentis. — Umas frágeis, morenas,/ graves, sentimentais, amigas de novenas,/
ébrias de devoções, releem as suas Horas./ — Outras fortes, viris, os olhos cor
de amoras,/ os lábios sensuais, cabelos bons, compridos,/ às vezes, por enfado,
enganam os maridos!” (…)
Prossegue a dissecação dos hábitos, superstições e outros
comportamentos inveterados que marcam a rotina. É implacável ao denunciar (tese
de Antero) os fatores de atraso e
mediocridade que, há séculos, contribuíram para a decadência social e cultural
não só da cidade, mas do próprio país: “No entanto, a sua vida, é quase
intermitente./ Chafurda na inação, feliz, gorda, contente./ E, eclipsando as
ações dos seus navegadores,/ abrilhanta a batota e as casas de penhores./ Faz
guerra à arte, à Ação, ao Ideal… e, ao cabo,/ — é talvez a melhor amiga do
Diabo!”
PROJEÇÃO E ATUALIDADE
Poesia de largo fôlego — onde tudo é sempre levado aos extremos
— deixou dezenas de livros e folhetos, recentemente publicados em edições
críticas da Assírio & Alvim. Exerceu influência na sua geração e nas
gerações seguintes: Cesário Verde e Camilo Pessanha. Abriu caminho à poesia
do século XX: aos poetas da Águia e da Renascença Portuguesa, Teixeira de Pascoaes, Augusto Casimiro, Jaime Cortesão e Afonso
Duarte não hesitou até em considerá-lo “o maior poeta português de todos os
tempos”.
Louvado pelos poetas do “Orpheu”: Fernando Pessoa, Mário de Sá
Carneiro, Alfredo Guisado, Luís de Montalvor e Raul Leal, alguns dos quais o
reconheceram como mestre. Teve a maior audiência no grupo e na geração da “Presença”:
José Régio, António de Sousa, Edmundo de
Bettencourt e Vitorino Nemésio
que o biografou e antologiou. Os surrealistas Mário Cesariny, Natália
Correia e Alexandre O’Neill, e
outros representantes das atuais tendências literárias identificaram-se com as
explosões de quimeras, de acasos, desvarios, sarcasmos e soluços de Gomes Leal.
Apesar de todas as adversidades nunca foi ignorado, nem
esquecido. As “oito luas” de Gomes Leal
nunca foram sepultadas. Se perdeu a relação imediata com o grande público que
só se entusiasma com incursões pontuais, Gomes
Leal também construiu um outro universo apenas com fronteiras na própria
poesia. A posteridade reencontrou-o sempre nesse território intemporal, que
encerra o que há de mais íntimo e mais secreto, dentro de todos nós.
As “oito
luas” de Gomes leal nunca foram sepultadas – por António Valdemar [jornalista
e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], in E revista do Expresso, 5 de fevereiro de 2021, p.58-59 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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